Vasco Martins: A genialidade de um progressista
17 Jun 2012

Vasco Martins: A genialidade de um progressista

Nasceu em Portugal, filho de mãe portuguesa e pai cabo-verdiano. Com nove anos de idade, veio para Cabo Verde, para a cidade do Mindelo, onde cresceu e aprendeu os seus primeiros acordes musicais. Vasco Martins sempre se inspirou na terra que o acolheu. A vivência das suas gentes, aliada ao meio envolvente e ao ambiente musical, foram o trampolim da sua força criativa, progressista e musicalmente revolucionária. Com obras executadas em países como Portugal, França, Austrália, Colômbia, Brasil, República Checa e Japão, Vasco Martins é o único sinfonista de Cabo Verde.

Começou a tocar em grupos de baile aos 19, fortemente influenciado pela ambiência musical da época. O apelo musical era tão forte, que resolve sair de casa dos pais para seguir uma carreira profissional na área da música. A música tradicional de Cabo Verde tinha então uma expressão muito forte. Contudo, Vasco Martins e alguns outros colegas, estavam bastante atentos ao que lá fora se ia fazendo de mais inovador, nomeadamente na música rock e pop. Conforme diz, “estávamos muito entusiasmados com o que o Jimmy Hendrix, Santana, Osibisa e outros executantes mais progressistas estavam a desenvolver, o que para nós era fonte de inspiração e algo que pretendíamos testar aqui no país”. Inicia então as primeiras experiências com a guitarra elétrica, mas, conforme revela, “a determinada altura, algo de inexplicado começou a fazer com que me sentisse cada vez mais atraído para a chamada música clássica. Era como que um chamamento interior, talvez influenciado pelas audições de alguns clássicos que o meu pai e o meu tio costumavam ouvir”, diz o compositor.

Vasco Martins- Historia _9_Nos GentiEste apelo para a música erudita fez com que, um ano após ter participado na formação do agrupamento Kolá, abandonasse o projeto. “No dia que saí, escrevi numa espécie de livro de atas que tínhamos, que abandonava o grupo porque me queria dedicar a compor sinfonias, e essa minha intenção ficou para sempre ali registada”, recorda Vasco Martins.

Também as suas duas tias, Lili e Bibi Medina, que eram na altura as únicas professoras de piano que lecionavam no Mindelo, o influenciaram na sua opção musical. Para Vasco Martins, o ambiente familiar, foi sem qualquer dúvida, determinante nas suas opções musicais, pois conforme diz, “num país sem orquestras sinfónicas, onde não há tradição de composição clássica, o facto de eu ter deixado tudo para compor sinfonias, é um pouco misterioso, no entanto, apesar de ainda hoje não saber muito bem porquê, ouvi esse chamamento e tomei consciência que era precisamente isso que eu queria fazer”.

Apesar do ânimo que sentia, compor música erudita em São Vicente, não se revelava uma tarefa fácil. Conforme descreve, “a música erudita, não tinha qualquer expressão em São Vicente. Apenas havia um programa de rádio que passava alguma música clássica e nada mais. Na altura, eu era um verdadeiro autodidata, pois como não haviam professores de composição, eu tinha que mandar vir de Portugal livros, e com esforço e dedicação, aprender por mim”.

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Após a Independência, Vasco Martins, aliado a Daniel Vitória, grava a sua primeira cassete. Conforme ironiza, “tinha um nome pomposo – De quando nasce um homem mas  que me permitiu ganhar dinheiro para comprar um piano acústico vertical. Transportava o piano para todo o lado, a dar concertos. Tocava as minhas músicas e clássicos intemporais de Beethoven, Chopin e outros”.

Estes concertos, chamaram a atenção do então Presidente da República Aristides Pereira, que convida o músico para uma série de recitais no Palácio Presidencial, na cidade da Praia. Conforme recorda Vasco Martins, ” entre 76-78, sempre que vinham entidades importantes visitar o País, dava concertos no Palácio da Presidência, num piano de cauda que na altura tinham adquirido”, e adianta que, “foi num desses concertos que o Aristides Pereira me serviu de intérprete com Léopold Senghor. Na altura tinha 20 ou 21 anos e aquele momento ficou-me para sempre na memória”. Eram concertos em piano solo, ou em conjunto com a pianista Tututa Évora. “Com ela foi uma grande experiência, quer em termos humanos, quer em termos técnicos”, refere o músico.

Em 1979, grava o seu primeiro trabalho discográfico – Vibrações – que os críticos consideraram ser um disco inacessível ao grande público. Todo o registo se caracterizava por um “vanguardismo” de sons e frases musicais. O que poucos sabem, é que aquele trabalho, foi fruto da mais pura imaginação e ressonância musical interior que, aliada à vivência e experiência musical do compositor, se refletiu numa linguagem fluida e contemporânea dos temas gravados. Conforme recorda, “o disco é totalmente improvisado, pois a quando da sua gravação, nos estúdios da Valentim de Carvalho, em Portugal, o engenheiro de som, o reputado Jorge Ribeiro, indicou-me inicialmente o piano de estúdio para produzir o trabalho. No entanto, na sala ao lado, estava um piano Steinway de cauda inteira, que tinha sido alugado para gravarem um trabalho da Olga Prats. O Jorge Ribeiro ao ouvir os primeiros temas do meu disco, olhou para o relógio e viu que ainda tinha algumas horas até irem buscar o Steinway, e disse-me que o poderia utilizar na gravação, mas que tinha que ser rápido”, e continua”, a partir desse momento, todo o meu plano para a gravação ficou desfragmentado. O que eu tinha projetado para gravar, face à oportunidade de tocar naquele magnífico instrumento, simplesmente se eclipsou. Quando comecei a tocar, o sentimento e as sensações foram de tal ordem, que, maravilhado com o som reproduzido, fui acrescentando elementos à base dos temas que estavam preparados”.

A sua vontade de aprender mais, eram evidentes. Sentia a necessidade do contacto com outros compositores, mas na altura era extremamente difícil conseguir-se uma bolsa de estudo para estudar música no estrangeiro. Por coincidência, em finais da década de 70, Vasco Martins conhece o fotógrafo português João Oliveira, que se encontrava em Cabo Verde a fazer um trabalho de recolha etnomusical na Ilha de São Nicolau. Foi através dele, que o músico conheceu o maestro português Fernando Lopes Graça, que viria a ser professor em Lisboa. Numa pequena audição que fez na casa de Paredes do maestro, Vasco Martins revela a todo o seu potencial, e foi aceite pelo mestre. Com Lopes Graça, começou, em 1979, a aprender composição sinfónica.

Enquanto estudava em Portugal, recebeu um telegrama do seu amigo Cristian Valbert, antigo chefe da missão diplomática francesa para Cabo Verde, o qual havia conhecido no Mindelo, que o informava que lhe tinha conseguido uma bolsa de estudo em Paris com o mestre Henri Claude Fantapié. Conforme recorda Vasco Martins, “aquele momento foi particularmente especial, pois o Cristian Valbert, que apreciava muito a minha música, enquanto chefe da missão diplomática ainda em Cabo Verde, tinha prometido ajudar-me. Só que os anos foram passando e eu nunca mais recebi noticias dele, até ao momento do telegrama, que me deixou perplexo, mas feliz e entusiasmado”, conta.

Vasco Martins- Historia _2_Nos GentiJá em Paris, inicia a sua carreira de sinfonista. Fruto dessas experiências ao nível da composição, Vasco Martins, dirigido pelo seu professor e maestro Henri Claude Fantapié, edita o disco “Quinto Mundo”, com o qual participa na Tribuna Internacional da UNESCO de 1985. Foi um trabalho muito bem recebido pela critica internacional. Dentro da mundialidade da música erudita, o disco “Quinto Mundo” contém algumas passagens de surrealismo e modernismo.

Mas Vasco Martins jamais esquecera as suas origens, e em simultâneo vai realizando alguns estudos musicológicos e de composição da morna. Assina todos os temas do primeiro disco – Coraçon Leve – da intérprete cabo-verdiana Hermínia. Tal como refere, “nunca deixei de compor e estudar a morna, que é um estilo muito particular e forte. Além de incentivar o aparecimento de novos artistas dentro deste género musical tradicional de Cabo Verde, tenho também aproveitado a sua génese rítmica e melódica nas minhas composições sinfónicas”.

Fruto desta fusão entre a música tradicional cabo-verdiana e a música clássica, lança em 1985, em conjunto com Voginha, o álbum “Vivências ao Sol”, que é extremamente bem recebido pela critica. Dentro da guitarra cabo-verdiana, Vivências ao Sol é, ainda hoje, uma referência incontornável.

Vasco Martins- Historia _5_Nos GentiMas nem só de música erudita é feito o universo do compositor. São famosas as suas experiências musicais com sintetizadores. Vasco Martins foi igualmente responsável pela introdução da música eletrónica e dos primeiros sintetizadores em Cabo Verde. Realizou, na cidade da Praia, o primeiro concerto de música eletrónica do país. “Foi um concerto memorável”, recorda. “Tinha chegado recentemente de França e tinha trazido comigo uns sintetizadores ainda ‘primitivos’. As pessoas ficaram um pouco intrigadas com aquele som, que para a maioria era novo e algo intrigante”, e continua, “houve até quem me viesse perguntar o que era exatamente aquilo”, conta. O certo é que, ainda hoje, muitas pessoas se lembram dessa primeira experiência. Para Vasco Martins, “o que me entusiasmava nesse tipo de música, eram os sons produzidos pelas máquinas. São vibrações que mexem com o imaginário e isso sempre me cativou”. Gravou nove discos de música eletrónica, dos quais se destacam Sublime Deligth, Apeiron e Lunário Perpetuo.

Também no Jazz, Vasco Martins foi pioneiro. Em 1978 funda o Clube de Jazz do Mindelo, o qual deu origem à Galeria Nho Djunga. Em 1979, realiza o 1º Concerto de Jazz, onde ao piano, juntamente com Mário Lélis (contrabaixo), Osvaldo Lima (saxofone) e Carlos Gonçalves (bateria), atua perante uma plateia de mais de 160 pessoas, reunidas tanto no Salão Parocoial na Praia, como no anfiteatro do Liceu Ludgero Lima, no Mindelo. Estavam lançadas as bases do Jazz em Cabo Verde. Formou outros grupos e tocou por todo o país, sempre com o bom acolhimento do público. Conforme explica, “o Jazz é um género mais imediato, pois é essencialmente uma linguagem rítmica. Em termos de interação com o público, há igualmente uma ressonância muito mais vincada. Sendo um género musical mais energético, e com a grande vertente da improvisação, torna-se mais acessível, daí o facto de ter sido um estilo que foi muito bem acolhido, e que tem proporcionado boas oportunidades a muitos músicos “.

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Por todos considerado um progressista e exímio representante da genialidade musical cabo-verdiana, Vasco Martins, não se esgota na música. Editou várias obras literárias, entre as quais Universo da Ilha (1986), Navegam os olhares com o voo do pássaro (1989), Run Shan (2008), entre inúmeros poemas com os quais tem brindado a literatura cabo-verdiana.

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Prepara-se para lançar o álbum Azuris, onde ao longo de 10 temas evoca, através do ritmo, da melodia e improvisação, a celebração da vida. Para o compositor, “este trabalho, pretende fazer uma pausa com o que ultimamente tenho vindo a produzir, pois por vezes, são necessárias algumas interrupções para se poder entrar em novas evolutivas. Os compositores, fruto do seu trabalho, acabam por se tornar nuns seres solitários, e muitas vezes incompreendidos, e eu já componho há mais de 20 anos, por isso estava na altura de fazer algo diferente”, diz. Com este novo trabalho, Vasco Martins pretende restabelecer o contacto com o público, o qual, desde sempre, o tem considerado como um homem do seu tempo à frente do seu próprio tempo.

Da sua obra sinfónica pode-se destacar: «Danças de Câncer», Sinfonia 3 «Arquipélago magnético», Sinfonia 4 «Buda Dharma», Sinfonia 6 «Monte Verde», Sinfonia 8 «A procura da luz», Sinfonia 9 «Atlântico», além do concerto para piano e orquestra de cordas«Jy and Devotion», «4 notas na cidade» para clarinete e orquestra e «Sahasrara», suite para violino e orquestra de cordas.

Discografia selectiva: «Ritual periférico», «Lunario Perpetuo», «Danças de Câncer», «4 Sinfonias», «Lua água clara», «Li Sin» e brevemente «Azuris».

O que o move? Conforme confidencia, “energia, esforço e vontade de chegar ao fim”.


Cesária Évora – a eterna admiração

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“A Cesária foi um caso único, que se não fosse divulgada da forma que foi, seria mais um dos grandes valores de Cabo Verde, que jamais sairia do anonimato nacional. Fruto do trabalho primeiro do seu produtor José Da Silva, da label Melodie e da promoção dos jornalistas franceses, a Cesária começou a ser promovida, o que fez com que a sua carreira disparasse, com as consequências que todos nós conhecemos.
Mas a promoção, por si só, não é tudo. Há que ter algo de especial para apresentar, e a Cesária tinha essa aura especial. O seu jeito de estar, a maneira de se apresentar nos espetáculos e a forma como interpretava as músicas, e a sua «catedral vocal», contribuíram para o seu sucesso mundial. Tudo culminava num momento de magia. Esse momento, materializava-se quando subia ao palco. Lembro-me de assistir a um concerto no Bataclan de Paris, e apesar de já ter tocado inúmeras vezes com ela e de termos feito mesmo um projeto(que nunca chegou a ser), quando ela surgiu no palco e começou a cantar, aquela magia, aquela energia silenciosa que raros artistas têm – energia profunda e que mexe com a imaginação – toda essa envolvência podia-se sentir na pele.
Anos 80, foram tempos muito bons, pois entre nós, além de uma grande amizade, havia essencialmente respeito. Eu sempre senti uma grande admiração por ela, e penso que isso passava de forma natural no nosso relacionamento. Quando tocávamos, por exemplo, no Piano Bar, era uma envolvência subtil e poética, pois a música une as pessoas e como tal, a Cesária estará sempre unida connosco, nos nossos corações.”

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Comentários

  1. José Moz Carrapa Diz: Setembro 5, 2012 at 12:54 am

    Olá. O técnico dos Estúdios Valentim de Carvalho aqui referido não será antes o grande Hugo Ribeiro?
    JMoz

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