18 Mar 2021
Maria Lopes de Brito
Nasci no dia 28 de dezembro de 1918 na Praia Maria, freguesia de Santiago Maior. Tenho 98 anos de idade, dos verdadeiros! Naqueles tempos era comum trocar-se os anos de nascimento das pessoas, mas eu tenho a certeza que nasci no dia 28 do último mês de 1918. Sou das mais velhas dos contratados vivos. Vim a primeira vez para São Tomé e Príncipe em 1952. Fiquei em Água Izé até 1955. Ali, durante os meses de janeiro a maio, quebrava coco. O resto dos meses do ano era para o cacau. Depois de cumprir esses três anos de contrato, regressei a Cabo Verde e por lá andei até 1958. Em Cabo Verde voltei ao trabalho que tinha tido antes do contrato: recolhia pedras para a construção de casas e muros. Como éramos muitos a fazer este trabalho, ganhávamos poucos. A vida era difícil, por isso, regressei em 1958. Vim para cá, para a roça Sundy a convite do senhor Carneiro, filho do senhor Caroço, o proprietário da roça. Fui aqui muito bem recebida. Ainda hoje cá estou, nunca mais de cá saí. Além do trabalho no mato, estive mais de 25 anos a trabalhar como cozinheira no hospital da empresa. Penso que, por ter passado tantos anos à frente de um fogão de ferro, que perdi a minha vista. A vida era difícil, mas não nos faltava nada. Embora o dinheiro fosse pouco, sempre dava para comprarmos umas roupas.
Depois veio a independência e tudo piorou. Não esqueço que os filhos do Príncipe foram ruins, malvados, sem préstimo nem para matar e dar as suas carnes aos cães. As primeiras frases que proferiram foram para os donos das roças. Diziam-lhes que não os queriam aqui, que as terras não eram deles, que o cacau não era deles, que tinham deixado de mandar, que era altura de irem embora. O senhor Carneiro, que era homem corajoso, ficou chateado! Porque não queria problemas, foi embora. Voltou uns anos depois para nos ver. Cumprimentou-nos um por um. Tinha esperança de reaver o que era do seu pai, mas não conseguiu. Acabou por ir embora e nunca mais voltou. A partir dessa altura instalou-se a degradação e a miséria em Sundy. Quem vinha para mandar, não percebia do negócio e as coisas foram-se deteriorando, ao ponto das cabras passearem livremente pelos quintais e casas das pessoas.
Depois distribuíram as terras, mas queriam que trabalhássemos como empregados. Queriam dar-nos vinte contos por um mês inteiro de trabalho. Era injusto e ingrato. Disse bem alto, para que todos ouvissem, que aqueles eram os vinte contos da pouca-vergonha. Não aceitei e, por isso, não tenho direito a reforma. Recebo uma ajuda de miséria apenas para ficar calada. Já lá vão sete meses que essa esmola não chega. Se não fosse a ajuda que Cabo Verde para cá manda, posso afirmar que teria de andar nua. É com esse dinheiro que consigo comprar o meu tabaco de cheirar. Fumo desde os doze anos e, no dia que deixar de fumar, certamente morrerei. Também tenho uma amiga que me envia tabaco de Cabo Verde. É o que me mantém viva. Posso viver sem pão, mas não consigo viver sem o meu tabaco.
A história que deu origem à ajuda que Cabo Verde envia para os ex-contratados passou-se comigo. Estava longe de imaginar o desfecho, mas até correu bem; ainda há pessoas de palavra. Certo dia, apareceu por cá um responsável de Cabo Verde que me pediu para me sentar ao seu lado e lhe contar a minha história. Assim o fiz. Disse-lhe que gostaria de morrer na minha terra, nem que para isso fosse preciso enviarem-me dentro de um saco e me atirassem ao mar. Ele ouviu e comoveu-se. No final, prometeu-me que me iria enviar uma encomenda. Disse-lhe que as encomendas da terra nunca cá chegavam, por isso, ele que não se incomodasse. Calmamente, confidenciou-me que esta encomenda era especial e que iria chegar. Cumpriu a sua palavra. A encomenda que ele falava era precisamente a ajuda que Cabo Verde nos envia. Mais tarde, vim a saber quem era aquele homem que me ouviu, que chorou comigo e que cumpriu a sua promessa era o embaixador Silvino da Luz. Nunca me esquerei dele.
Esta é uma terra de sacrifício e tristeza. Foi aqui que mataram o meu neto só porque era filhos de cabo-verdianos. O meu neto, na altura com 40 anos de idade e professor, tinha vindo para São Tomé e Príncipe bebé, com apenas cinco meses de idade. Um louco e assassino, que agora está preso em São Tomé, resolveu que haveria de matar todos os contratados que tinham vindo de Cabo Verde. O meu neto foi a sua primeira vítima. Estavam todos sentados ali no terreiro, no banco da má língua quando o mataram. Agora vivo sozinha com o meu filho Joãozinho. O Joãozinho nasceu em Cabo Verde em 1939 e veio comigo e com o pai para cá. Entretanto o meu marido morreu e eu passei a ser mãe e pai, tudo ao mesmo tempo. Foi por ele que me sacrifiquei aqui no Príncipe e agora, no final da minha vida, é ele que me ampara. Tenho outra filha em Cabo Verde, mas dela nada sei.
Estou grata a Deus por ter nascido menina e agora, com esta idade, voltar a ser novamente uma menina. Já vivi o suficiente, por isso, estou pronta para Deus me levar. Sinto-me tranquila e com o dever cumprido. Agora vão, está na vossa hora de ir embora. Fico feliz por ter falado de coração aberto convosco. Antes de partirem, deixo-vos uma bênção: “Deus vai convosco, que nos salvaguarde, tenham fé em Cristo Salvador, porque é a Cristo Salvador que devemos devoção”.
Roça Sundy – Príncipe