Ilha do Príncipe — A hora da mudança
18 Mar 2021

Ilha do Príncipe — A hora da mudança

António José Cassandra
Presidente do Governo Autónomo do Príncipe

Natural da ilha do Príncipe, António José Cassandra cedo abandonou a segurança da família em busca de melhores oportunidades. Com onze anos de idade partiu para a capital do país para ingressar no ensino secundário. À época, não existiam liceus no Príncipe. Em pleno período pós-independência, a oportunidade pela qual o jovem António tanto esperava surgiu do outro lado do Atlântico. A forte ligação política entre o Governo Socialista são-tomense e Governo de Cuba, iria proporcionar a muitos jovens são-tomenses viajar até à terra de Fidel Castro para completarem os seus cursos. António José Cassandra foi um desses jovens. Em Cuba completou o ensino secundário e, mais tarde, licenciou-se em Engenharia Técnica de Transportes. Quando regressou a São Tomé e Príncipe ingressou o setor privado e onde se manteve até 2006, altura em que toma a decisão de abraçar a política ativa. Cumpre, atualmente, o seu terceiro mandato como Presidente do Governo Autónomo do Príncipe.

Após tantos anos a trabalhar como quadro superior numa empresa privada ligada ao setor dos transportes, decidiu, em inícios dos anos 2000, abandonar a carreira e ingressar na vida política ativa. O que o levou a tomar esta decisão?

Essencialmente porque estava inconformado com a estagnação e o rumo que o país estava a tomar. Quis ter um papel mais interventivo, que permitisse combater o estado de inércia em que se tinha caído. Na altura, vivia-se no Príncipe uma situação muito difícil. Há quinze anos, as carências eram grandes e as dificuldades imensas. Entrei para a vida política através de uma coligação partidária entre o PCD e o MDFM. Quatro anos depois, com a queda do Governo, surgiu um movimento denominado “Novo Rumo” ao qual me aliei e pelo qual concorri às eleições no Círculo Eleitoral do Príncipe. Conseguimos eleger um deputado. No entanto, não estava satisfeito com a vida parlamentar, por isso, em 2005, decidi concorrer às eleições regionais para o Príncipe. Constituiu-se o movimento “União para a Mudança e Progresso do Príncipe” e, em 2006, concorremos e ganhámos as eleições com uma maioria absoluta. Entretanto, e porque o trabalho que temos vindo a merecer o crédito do voto popular, e estamos, atualmente, a cumprir o nosso terceiro mandato. Esta estabilidade política tem permitido a realização de um trabalho sustentável que se tem traduzido numa melhoria generalizada das condições de vida das populações do Príncipe.

E como classifica o desempenho do seu Governo nestes últimos dez anos?

Tem sido bastante gratificante poder ter participado no trabalho que se tem vindo a desenvolver nestes últimos dez anos. É com enorme satisfação que tenho vindo a liderar este combate em prol do desenvolvimento do Príncipe e, em última análise, do país. É com orgulho que sinto que as pessoas voltaram a ter esperança em dias melhores, e voltaram a acreditar que é possível melhorar. Muitas já têm energia elétrica, água potável e cuidados de saúde. É certo que, temos feito um enorme esforço para conseguirmos proporcionar estas condições básicas e que fazem toda a diferença no dia-a-dia das nossas populações. Os recurso são escassos, como tal, o desafio é grande. Lentamente, temos conseguido cumprir, de forma realista, os nossos objetivos. Não é por acaso que, ao longo destes últimos dez anos, obtivemos três maiorias folgadas em três atos eleitorais. As populações reconhecem o nosso trabalho e o nosso esforço.

É claro que ainda há muito por fazer. Hoje, quem vem pela primeira vez ao Príncipe, é capaz de dizer que nada foi feito; que tudo é mau e que não se vê desenvolvimento. No entanto, se cá tivessem vindo há dez anos e vissem as condições que na época existiam, então poderiam agora sentir o verdadeiro desenvolvimento e a grande evolução que temos vindo a empreender no Príncipe. 

Quais as áreas estratégias que definiu como prioritárias nos os seus mandatos?

A educação é das áreas em que mais temos investido. Quando começámos a nossa governação, tomámos a decisão de não tentarmos, de uma só vez, resolver todos os problemas com que nos deparámos. Havia que selecionar setores estratégicos e, então, investir fortemente nesses setores — até para não diluirmos recursos e energias. A infraestruturação foi uma dessas áreas. A outra foi precisamente a educação. 

Lentamente, temos vindo a construir escolas e jardins-de-infância no interior; fizemos chegar energia a esses pontos remotos (a energia elétrica estava confinada à cidade) e criámos condições para que as crianças tivessem também acesso ao ensino. Com muita persistência e trabalho, fomos galgando as dificuldades. Criámos campanhas de sensibilização para alertarmos as famílias que a educação era essencial ao desenvolvimento futuro do país e fomentámos o ensino também nas populações adultas. Para tal, abrimos aulas noturnas e qualificámos diversos quadros da Administração Pública Regional que não tinham qualificações para muitos dos cargos que exerciam. Quando cá chegámos, existiam apenas quatro quadros superiores na Administração Pública. Hoje, existem mais de trinta. A capacidade de gestão, quer da Administração Pública Regional, quer do Governo, é muito mais qualificada que no passado, por isso, a massa crítica também melhorou significativamente nestes últimos anos. Por fim, também conseguimos realizar alguns convénios no exterior para receberem os nossos estudantes. No passado, os estudantes do Príncipe dificilmente conseguiam uma bolsa de estudos para formação no exterior. Agora é mais fácil e há muitas mais oportunidades.

Todas estas ações têm permitido que se eleve significativamente a qualidade dos serviços prestados e se tenha melhorado o nível de vida das nossas populações. 

Que estratégias tem para continuar a fomentar o desenvolvimento do Príncipe?

Os recursos financeiros para suporte do Orçamento Regional são muito baixos, quase insignificantes, incapazes de fazer frente a todas as nossas necessidades, consequentemente, a aposta atual passa pela captação de investimento estrangeiro. Quando nos apercebemos que o país e, naturalmente, o Príncipe, não tinham capacidade para empreender todas as ideias que ambicionávamos, tivemos que adicionar mais um eixo estratégico aos dois anteriores. A atração do investimento estrangeiro é o terceiro pilar na nossa estratégia de crescimento sustentável. Este investimento estrangeiro terá que ser a alavanca para o desenvolvimento da região. 

No nosso segundo mandato, ao apostarmos na atração do investimento privado, demos primazia à arrecadação de receitas que nos permitissem atuar noutras áreas fundamentais ao desenvolvimento da ilha. Também conseguimos fomentar o modelo que idealizámos para o crescimento do turismo no Príncipe — um modelo vocacionado para os segmentos altos. Ao contrários de outros países, não temos capacidade de adotar modelos de turismo de massas — até pelas limitações próprias das infraestruturas aeroportuárias que na altura existiam e pela falta de recursos humanos qualificados — como tal, decidimos apostar no segmento alto, mais restrito, mas igualmente com um bom retorno financeiro do investimento. Foi desta forma que começámos a promover o Príncipe internacionalmente. Iniciámos uma candidatura à UNESCO que possibilitasse qualificar o Príncipe como reserva natural da biosfera e trabalhámos em candidaturas para a obtenção de galardões internacionais que sirvam de incentivos à vinda desses turistas de alta renda. Apresentámos programas culturais, históricos e arquitetónicos.

E essa aposta no investimento privado já está a ter retorno?

Sim. Temos vindo a celebrar alguns contratos com grupos privados estrangeiros, o que nos tem permitido melhorar alguns setores essenciais, como a saúde, educação, reabilitação de algumas estradas e a habitação social. Nesta última área, é com satisfação que posso afirmar que o Programa de Habitação Social, que começou há quatro anos com as primeiras construções, encontra-se atualmente em fase avançada de execução. Tal só foi possível através das receitas provenientes do investimento estrangeiro. Contudo, o maior impacto desse investimento externo tem sido ao nível do capital humano. O Príncipe tinha a maior taxa de desemprego do país. Atualmente é no Príncipe que se regista o menor índice de desempregados a nível nacional. A perspetiva que temos é que, nos próximos dois anos, fruto dos investimentos estrangeiros que estão já a ser concretizados, essa taxa baixe ainda mais, atingindo apenas dois a três por cento da população, em comparação com os sete por cento atuais. 

Temos motivos para estar orgulhosos do nosso desempenho, pese embora algumas críticas de que somos alvo pela forma como avançámos para algumas das concessões. Até entendo que, no panorama atual, seja aceitável existirem algumas dessas críticas, contudo, quando há dez anos nos deparámos com taxas de desemprego na ordem dos 25 por cento, com fugas massivas de pessoas para a capital e com um sentimento generalizado de falta de esperança no futuro, tivemos que tomar decisões. Hoje, podemos olhar para algumas dessas decisões e dizer que, talvez, pudéssemos optar por outras estratégias, mas a verdade é que, na altura, era impossível. Em 2006, quando iniciámos o nosso mandato, fruto dessa fuga massiva de jovens, a nossa população rondava os cinco mil habitantes. Hoje, temos mais de sete mil. As pessoas estão a regressar. O investimento estrangeiro é o motor e o inventivo para esse regresso.

Muito do mérito deste crescimento tem que ser dado aos investidores privados que acreditaram no Príncipe. Seria muito mais fácil terem investido noutros países, como Cabo Verde, Angola ou Moçambique. Talvez até tivessem o retorno do seu investimento muito mais rápido do que terão ao investirem aqui, em São Tomé. Há quatro anos, quando se iniciou o programa de parcerias com os privados, não existiam muitos empresários a acreditar no Príncipe como potencial de investimento. Acredito que, atualmente, o Príncipe é muito mais apetecível. Se não tivéssemos incentivado o investimento privado, o Príncipe iria continuar estagnado, com elevados índices de desemprego e sem esperança para o futuro. 

Depois da independência, vários modelos económicos foram experimentados. A maioria desses modelos viria a revelar-se ineficiente face aos objetivos inicialmente traçados para o desenvolvimento de São Tomé e Príncipe. No entanto, o capital humano foi, e continua a ser, a grande mais-valia do país. De entre os recursos humanos disponíveis, a comunidade ainda existente de contratados do antigo regime, nomeadamente os cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos, assume especial relevância, quer devido à quantidade, quer à experiência que trouxe do tempo colonial. Enquanto filho da terra, qual o seu olhar sobre o processo destes contratados antes da independência nacional, e qual a importância deste grupo para o desenvolvimento futuro do país?

A história dos contratados em São Tomé e Príncipe é triste, sobretudo no período difícil do regime colonial. As pessoas sofreram muito. Para além de todas as dificuldades, esses nossos irmãos ainda faziam descontos para Providência Social. Com a independência de São Tomé e Príncipe, as primeiras palavras de Sua Exa. o Sr. Presidente da República Pinto da Costa — que ainda está hoje em funções — foram para esses contratados do regime colonial. Declarou que, todos os que estavam em São Tomé e Príncipe na data da independência seriam, a partir desse momento, são-tomenses. Depois, a história recente do país, demonstra que essas declarações não passaram à prática. 

O facto é que, na altura, não se tomaram medidas quanto à situação desses contratados do ex-regime colonial que descontavam para a Previdência Social do país ex-colonizador, Portugal. Devia ter existido um acordo com Portugal que assegurasse o futuro desses pensionistas. 

Depois, adotou-se um modelo de desenvolvimento para o país baseado em economia centralizada, e ninguém pensou nessas pessoas. Hoje, a maioria deles está na miséria e, por motivos legais, nem reforma têm em São Tomé e Príncipe. O Estado são-tomense ajuda com uma proteção social, uma vez que eles não descontaram para a Segurança Social do país. Como tal, entendo que o Estado são-tomense, em conjunto com o Estado português, deveriam ter acautelado, pelo menos, uma parte do futuro dessas pessoas. Ambos os Estados dever-se-iam ter responsabilizado por acutelar o futuro destes trabalhadores que, de facto, descontaram para que isso acontecesse. Tal não foi feito. 

Por outro lado, o modelo económico inicialmente utilizado em São Tomé e Príncipe, por diversos motivos, também se veio a revelar ineficiente para a economia do país. As empresas começaram a degradar-se; a produção de cacau começou a baixar e a economia entrou em défice. Havia que alterar o modelo inicial e, como forma de reverter este cenário, avançou-se para a distribuição das parcelas de terreno das empresas pelos trabalhadores. Foi nessa fase que os antigos contratados do regime colonial assumiram fulcral importância no desenvolvimento do país. São Tomé e Príncipe reconheceu a importância que eles tiveram nas plantações de cacau, sobretudo dos cabo-verdianos, quando lhes foram atribuídas parcelas de terra como se de são-tomenses se tratassem. Não podemos esquecer que, no nosso ordenamento jurídico, os estrangeiros não têm direito a possuir terras, isto é, ela apenas pode ser concessionada, mas os ex-contratados receberam-nos por igual. 

Contudo, também este processo foi desvirtuado pois, não basta dar as terras às pessoas; é preciso dar ferramentas e formação para essas pessoas poderem rentabilizar as terras que lhes foram dadas. Não podemos esquecer que essas pessoas eram assalariadas e o Estado pagava-lhes muito pouco pelo trabalho que produziam. Quando lhes foram dadas as terras, as pessoas não tinham condições financeiras para se apetrecharem com o básico para iniciarem a atividade agrícola nas suas parcelas. Não foram feitos programas de formação nem de capacitação que os orientasse no início das suas atividades. Até financeiramente eram necessários esclarecimentos, pois eles não tinham capacidade de trabalhar toda a terra que lhes tinha sido dada. Pelo menos no período da colheita e da quebra do cacau, eles tinham forçosamente que recorrer a mão-de-obra contratada e, também nessa área não tinham formação económica e financeira para tal.

Todas essas limitações viriam a ditar o insucesso da iniciativa. Esperava-se que, com a distribuição das terras, os agricultores aumentassem a produção agrícola, elevassem os seus rendimentos, autofinanciassem os cultivos futuros e criassem riqueza para o país, mas não foi isso que aconteceu. 

Qual o motivo que esteve na origem da situação precária em que, atualmente, muitos deles se encontram?

Neste processo, segmentou-se a distribuição das terras por categorias: pequenas parcelas, médias parcelas e as grandes parcelas. Nenhuma obteve os resultados esperados. Os pequenos agricultores começaram a abater as árvores para comercializar a madeira e a colher o que já havia nos terrenos. Além disso, e porque a lei assim o permite, começaram a fazer o trespasse das concessões para novos proprietários. A terra cujo objetivo inicial era assegurar a rentabilidade do agregado familiar, passou a ser propriedade de outra família. O dinheiro da transação, por vezes, nem chegava para a família viver durante um ano, acabando esta sem quaisquer recursos para a sua sustentabilidade económica. A situação foi-se degradando, acabando muitas destas pessoas por ficarem na mais completa miséria. Muitos desses antigos contratados veem-se agora numa situação difícil, com pensões miseráveis insuficientes para fazer frente aos custos do dia-a-dia. O Estado tem, de uma forma assistencialista, tentado dar apoio a todas essas pessoas mas, devido à real falta de recursos financeiros do país, tem de contar com o apoio de outros Estados para fazer frente a esse problema. Ainda recentemente, o Estado cabo-verdiano anunciou a duplicação do valor da assistência que, trimestralmente, envia para estes cidadãos, passando dos atuais 10 euros, para os 20 euros trimestrais. Esta é uma excelente medida, uma vez que o Estado são-tomense é incapaz de acompanhar todas as suas necessidades. São Tomé e Príncipe continua a pagar aproximadamente vinte euros aos que têm reforma e, para aqueles que não estão abrangidos pelos sistema de proteção da Segurança Social, contribui com um pequeno apoio social, que ronda os cinco euros.

Mas não foram só as pessoas que caíram na miséria. As próprias infraestruturas das empresas agrícolas foram deixadas ao abandono, acabando muitas delas por irremediavelmente se perderem. Não terá, também ao nível deste património, existido desinteresse do Estado?

No período colonial, as pessoas não recebiam pelo trabalho que faziam. Elas recebiam o que o patrão entendesse pagar. Recebiam para comer, tinham alguns alimentos extras, tinham assistência médica – pois sem saúde não conseguiam produzir – e pouco mais. Após a independência, começou-se a pagar um salário a esses trabalhadores. Com o preço do cacau a baixar muito ao nível internacional, as empresas começaram a ser todas deficitárias. O Estado começou a transferir recursos de outros setores para minimizar os impactos na agricultura. O “buraco” financeiro foi aumentando ao ponto de se tornar insustentável. Foi o colapso de toda a economia nacional. 

O Estado são-tomense viu-se então impossibilitado de manter as empresas agrícolas e, consequentemente, zelar pela manutenção das mesmas, acabando por criar condições à degradação de todos os espaços físicos dessas empresas e das suas infraestruturas produtivas. Acabou por se assistir, de forma impávida, à completa degradação das casas coloniais e das estruturas que faziam parte das sedes das roças em São Tomé e Príncipe. Quem ficou responsável por essas empresas, foram são-tomenses que não tiveram capacidade de as manter e de garantir a sua manutenção. Foi um falhanço total que se viria a revelar numa perda incalculável para o património do país. Nós, os são-tomenses e o Estado são-tomense, temos que admitir que falhámos total e completamente nessa matéria. Alguns poderão alegar que era difícil, na altura (inícios dos anos oitenta) conseguir-se a atração de investimento estrangeiro para o país. Foi um período difícil para a produção, com o preço do cacau a baixar nos mercados internacionais, etc., mas tal não justifica o facto de deixarmos degradar o que era nosso.

Em muitas desses espaços, assiste-se hoje a relações interpessoais comunitárias fechadas, socialmente degradantes, muitas vezes no limiar da promiscuidade que, além dos valores morais, colocam em risco a saúde pública e o desenvolvimento saudável das futuras gerações. Tal evidencia uma desestruturação ao modelo que vinha do período colonial. Que medidas tem o Governo Regional tomado, ou que pensa tomar, para minimizar toda esta problemática, nomeadamente no que diz respeito às populações mais novas?

Esse é, precisamente, o combate que temos pela frente. O ambiente nas roças é, atualmente, muito mau. É uma degradação total que não passa apenas pelas condições físicas dos espaços. Ao nível social, a degradação é igualmente preocupante. Foi precisamente por isso que, das primeiras medidas que tomámos enquanto Governo, consistiu em levar as escolas e os jardins-de-infância para dentro dessas comunidades. Contudo, a solução para essa problemática tem de ser mais abrangente, pois apesar de a escola estar presente no seio da comunidade, no fim do dia, as crianças e os jovens voltam para o ambiente familiar, onde imperam os problemas. A maioria dessas famílias mora ainda nas antigas sanzalas que foram feitas com outros objetivos. São pequenos quartos, sem o mínimo de condições, onde ficam os pais junto com os filhos e isso é humanamente degradante. Se rapidamente não alterarmos esta situação, vamos ter duas ou três gerações perdidas. O problema tem de ser abordado no imediato, sob pena de se perpetuar esta situação às gerações vindouras. 

Este é um dos temas que está atualmente em estudo, pois temos plena consciência do problema que está a acontecer e quais as suas repercussões para o futuro dessas pessoas, do Príncipe e do país. Estamos atualmente a fazer o levantamento dos casos mais urgentes para, gradualmente, começarmos a transferir famílias para habitações mais condignas. São muitas famílias nessas situações, distribuídas por vários pontos do interior do Príncipe, por isso, não é uma tarefa fácil. Requer muitos recursos financeiros que não existem. Por isso, temos que ir fazendo de forma gradual, à medida que temos orçamento e, paulatinamente, ir transformando essas sanzalas, não em locais habitacionais, mas em património histórico capaz de retratar a realidade da escravidão dos contratados que ali trabalharam e viveram. Temos já um caso concreto, em Monte Belo. Era uma antiga roça que ficou totalmente destruída e que, fruto do nosso programa de investimento privado, transformou-se num hotel vocacionado para o turismo rural. Atualmente, o hotel Monte Belo é uma referência para o turismo do Príncipe.

Quarenta anos após a independência nacional, o processo de integração formal dos antigos contratados a residirem em São Tomé e Príncipe foi, oficialmente, iniciado com a atribuição da nacionalidade são-tomense. São pessoas que muito deram pelo desenvolvimento de São Tomé e Príncipe mas que, nesta fase final da sua vida, já não terão muito mais para contribuir. Qual a sua opinião sobre o reconhecimento que, apenas agora, lhes é dado?

Não ficaria bem com a minha consciência se não dissesse o que realmente sinto e penso sobre esse assunto. Houve uma má atuação do Estado são-tomense quando, em 1975, não formalizou e passou à prática a efetivação da atribuição da nacionalidade a todos quantos estavam na altura a trabalhar em São Tomé e Príncipe. Essa intensão foi anunciada, mas não foi efetivada. Este país foi construído com a inquestionável contribuição desses cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos. Depois de 1975, foram eles que continuaram a assegurar a produção do cacau, do café e da agricultura. Foram eles que cá ficaram e nunca abandonam os seus postos. Passados que estão quarenta anos sobre esse anúncio, formalizar a sua nacionalidade como são-tomenses pode ser considerado um reconhecimento à tenacidade e dedicação de todos eles, no entanto, peca por tardio. Parece ser um reconhecimento de favor, o que não deveria ser, pois a existir, ele foi conquistado por direito e mérito. 

No entanto, também considero que não houve qualquer tipo de descriminação relativamente a essas pessoas que não tinham nacionalidade são-tomense formalizada. Apesar de não terem um papel a dizer-lhes que eram são-tomenses, tiveram sempre os mesmos direitos que os nacionais. Sempre lhes foi garantido o acesso à saúde, à educação e ao trabalho. Só em 1991 é que lhes foi colocada uma restrição no ato eleitoral ao ser-lhes barrado o direito ao voto e a serem serem eleitos. Por isso, foi mau não se ter formalizado as intensões logo em 1975, pois certamente que hoje, as coisas seriam diferentes.

É com alguma mágoa que oiço alguns discursos políticos a tentarem tirar partido da atribuição de nacionalidade a estes ex-contratados. Tirar proveito político de pessoas que se não fossem elas não teria havido produção de cacau em São Tomé e Príncipe de 1975 até aos dias de hoje, nem o país não teria viabilidade económica para as gerações atuais e futuras, é deplorável.

Porque sempre entendi que essas pessoas mereciam o nosso reconhecimento, iniciei em 2007, pouco tempo depois de ter assumido o cardo de governação, um programa do qual muito me orgulho. Tomámos a iniciativa de levar os mais idosos até à sua terra natal. Muitos deles, após a sua chegada ao Príncipe, nunca tinham tido a oportunidade de voltar visitar a sua terra. Entendi que era um justo reconhecimento àqueles que aqui deram as suas vidas. Vieram jovens e aqui envelheceram. Dar-lhes a alegria de poderem voltar à sua terra e encontrarem os seus familiares era o mínimo que poderíamos fazer. Foi uma iniciativa da qual me orgulho muito e que me sensibilizou bastante. 

Acredito que, nos dias de hoje, não exista nenhum cabo-verdiano a viver no Príncipe que queira voltar definitivamente a Cabo Verde. Penso que a maioria deles assumiu esta terra como sua. Depois da língua portuguesa, o crioulo é o segundo idioma mais falado do Príncipe. Há manifestações culturais e gastronómicas cabo-verdianas que foram adotadas como sendo também do Príncipe, por isso, a ligação entre os dois povos é muito forte.

Que mensagem deixa a esses ex-contratados e aos seus descendentes relativamente ao futuro que, face às estratégias que estão a ser delineadas, se augura melhor para as populações ilha do Príncipe e, consequentemente, para todo o país?

Não faço distinção entre nacionais e estrangeiros, por isso, a minha mensagem é a mesma que transmito aos restantes são-tomenses. Peço-lhes que tenham esperança em dias melhores, pois é para isso que estamos a trabalhar. A luta que temos vindo a travar, não é apenas um combate nosso, também é deles. A grande verdade é que, mesmo sendo cabo-verdianos, angolanos ou moçambicanos, também são são-tomenses, por isso, esta luta por um Príncipe melhor, com melhores condições de vida e que proporcione melhores oportunidades aos nossos filhos, é de todos.


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