18 Mar 2021
Herdeiros da Escravatura — Legado dos contratados cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe
O 4X4 avança com esforço num terreno que, outrora, teria sido menos difícil de transpor. À medida que o tempo vai passando e a viagem vai chegando ao seu término, também as dificuldades se vão avolumando. A inevitável comparação entre este solo pedregoso, cheio de obstáculos e dificuldades, encontra eco nas vidas daqueles com quem me vou encontrar. Um ressalto mais violento desperta-me da letargia a que já me começava a acostumar e tomo, pela primeira vez, plena consciência do espaço que me rodeia. O mato tropical cresce de forma rápida e imparável. Ano após ano, a farta vegetação vai engolindo as férteis e produtivas terras das antigas roças de São Tomé e Príncipe. O abandono a que se assiste é generalizado. Só com algum esforço se consegue ver os outrora abundantes e afamados cacaueiros e pés de café. O mato selvagem toma conta de toda a paisagem.
Lanço os olhos ao meu bloco de notas e releio de forma mecânica e inconsciente o nome da roça que estou prestes a conhecer: Uba Budo. Imediatamente vêm-me à memória as duras imagens do modo de vida dos habitantes destes esquecidos espaços de produção agrícola que, na véspera, numa outra antiga roça não muito distante, tinha presenciado. Por momentos, enchi-me de esperança e justifiquei para mim próprio que, a degradação a que tinha assistido no dia anterior, seria apenas um caso isolado. Cheguei a esboçar verbalizar a quase certa convicção de que as restantes comunidades de cabo-verdianos que povoam estas antigas roças de São Tomé tinham merecido melhor sorte. Enganei-me!
Uns metros mais à frente, o denso mato, apenas cortado pela teimosamente denominada “estrada principal”, abre-se numa imensa clareira de vida e vidas. Velhos, menos velhos, jovens e crianças deambulam por toda a área. Os meus olhos, ainda a habituarem-se à súbita mudança da paisagem, fixam-se numa imensa casa, omnipresente a todo o espaço circundante. Pelas linhas arquitetónicas marcadamente coloniais e a posição central a todo o espaço – habitual em todas as roças de São Tomé – rapidamente a identifico como a antiga Casa da Administração da roça. Primeiro, penso que talvez o infortúnio de algum incêndio lhe tenha levado a dignidade de outrora. Depois, apercebo-me que a sua inusitada aparência é somente fruto da extrema e profunda degradação acumulada ao longo dos últimos 40 anos. O meu choque acentua-se ao constatar que, apesar das condições degradantes, da total insegurança da estrutura e da completa falência de condições de habitabilidade, aquela gigantesca casa colonial é ainda um espaço concorrido, abrigo de muitas famílias e o centro das vidas dos que nela insistem em a tornar sua. Sou despertado por uma voz que, ao meu lado e quase em sussurro, me diz que “nas dependências o cenário é ainda pior”. Custa-me a acreditar, mas desta vez já não questiono a veracidade da afirmação; limito-me a abanar lentamente com cabeça como que em sinal de contida reprovação do que os meus olhos presenciam. Perante tal cenário de degradação física e humana, interiorizo vezes sem conta as já fadadas perguntas: o que de tão grave se terá passado durante as últimas quatro décadas para que tamanha degradação anímica tenha tomado conta destas gentes? Que eventos terão contribuído para isolar social e economicamente estas comunidades em terras de São Tomé e Príncipe? Porque é que, contrariamente às emigrações de cabo-verdianos para outras latitudes, estas, ocorridas para o arquipélago do equador, tiveram este triste desfecho?
Os contratados do regime colonial
Para entender um pouco melhor o que esteve na origem desta afronta à dignidade humana e que eventos se conjugaram para que milhares de pessoas se sentissem excluídas da sociedade, preciso de me situar na história das roças deste pequeno arquipélago equatorial africano. Talvez assim consiga explicar para mim próprio os motivos que originaram tamanho desequilíbrio social.
As roças no arquipélago de São Tomé e Príncipe remontam aos finais do século XVIII quando, no arquipélago, foi introduzido pelo abastado proprietário João Maria de Sousa e Almeida – o Barão da roça Água Izé – o cultivo do cacau proveniente de terras do Brasil. A intensiva plantação que se viria a registar até meados do século XX obrigou à utilização de extensas áreas de terreno. Abrir estas gigantescas clareiras no meio do mato equatorial apenas era conseguido com o recurso a precários instrumentos agrícolas e a muita mão-de-obra trazida de outras colónias portuguesas, nomeadamente de Moçambique, Angola e Cabo Verde. O repetido e intenso roçar das foices e enxadas no solo destas férteis ilhas acabaria por dar nome às estruturas agrícolas que, distribuídas um pouco por todo o território, iam ganhando forma. O termo roça acabou, desta forma, por ficar indissociável da enorme importância que o arquipélago reclamou para si em meados da primeira década de novecentos, quando se tornou num dos maiores produtores mundiais de cacau. As roças iriam marcar para sempre a cultura e a história de São Tomé e Príncipe.
Até finais dos anos 20 do século passado, a economia do arquipélago prosperou em torno do cultivo do cacau e do café, contudo, com a crise mundial de 1929, os proveitos caíram abruptamente e de forma significativa. O regime colonial português, apostado em manter os dividendos das décadas anteriores, contrapôs esta queda de receitas com o aumento da produção. Para concretizar esta estratégia, teve que recrutar ainda mais mão-de-obra nas outras colónias. Começam a surgir em São Tomé e Príncipe os primeiros “contratados” cabo-verdianos que, contrariamente aos muitos angolanos e moçambicanos que faziam parte do grupo de serviçais das roças, iam para São Tomé e Príncipe por vontade própria, ou pelo menos assim lhes faziam querer. O facto é que, na altura, Cabo Verde enfrentava uma enorme crise alimentar. As secas que frequentemente assolavam o arquipélago cabo-verdiano tinham privado as populações dos meios mais elementares para a sua sobrevivência. Nos finais da década de quarenta a fome no arquipélago tinha já ceifado quase um terço da população. A única forma de escaparem a este flagelo era procurarem alternativas fora da sua terra natal. Numa época em que a emigração para os Estados Unidos da América e Europa ainda era rara e exclusiva de algumas ilhas do arquipélago, o Sul parecia a única fuga possível. A conjugação destes dois fatores — a necessidade de renovar a força de trabalho nas roças e a imposição de procurar meios de subsistência fora de Cabo Verde — viria a ditar o destino de milhares de cabo-verdianos e, mais tarde, dos seus descendentes. Também a ideologia da migração, a que não eram imunes os cabo-verdianos, contribuiu para a ideia de melhores condições de vida fora de um Cabo Verde oprimido, subalternizado e de difíceis condições de sobrevivência, muito por imposição do próprio regime colonial português.
À minha volta começaram-se a juntar algumas crianças e jovens curiosos com a minha presença em local tão afastado dos centros turísticos. Outras pessoas se juntaram e, de olhar inquisitivo, perguntaram-me o que estava ali a fazer. Disse-lhes ao que vinha. Ninguém se admirou ou achou estranho. Prontamente acederam a contarem-me um pouco da sua triste história. Abriram-me as portas das suas vidas e dos seus corações. Por umas horas fui mais um deles. Comecei por lhes perguntar porque é que tinham vindo para São Tomé e Príncipe? Da boca do mais velho, um homem com mais de oitenta anos, ouvi a já tão repetida e omnipresente palavra contrato.
Em Cabo Verde, ao invés da cassação forçada de pessoas que ocorria nas outras colónias, as autoridades portuguesas optaram por fomentar uma emigração induzida, ou seja, aliciada. O Governo colonial, para responder à necessidade de mão-de-obra nas outras colónias africanas, encorajava os cabo-verdianos à emigração, concedendo-lhes facilidades para a sua instalação nessas terras longínquas, longe de tudo e de todos. Contudo, essa facilitação era-lhes imposta por decreto ao determinar que todo o indivíduo que não pudesse prover o seu sustento poderia ser deslocado para outro território ultramarino. Dadas as carências que se verificavam em Cabo Verde, a vantagem competitiva dos cabo-verdianos como mão-de-obra barata e facilmente disponível, era evidente. Na verdade, o contrato para São Tomé era um recurso imposto pelo desespero da fome. Só acontecia quando o camponês já não tinha meios de sobrevivência para si e para a sua família. Era a única solução depois de vender o pedaço de terra herdado dos antepassados e as telhas da casa onde morava a família toda — isto para os casos raros de pessoas que tinham casas de telha pois a grande maioria morava em casas cobertas de palha, construídas nas terras do morgado. Chegados a esse ponto, a única saída era procurar os funcionários da SOEMÍ (Sociedade de Emigração) para se inscreverem na lista dos que deviam seguir no primeiro barco para São Tomé e Príncipe. Assinado o contrato, recebiam uma certa quantia em dinheiro chamada “avanço” como prova de assunção de um compromisso irreversível. Com essa quantia, o contratado garantia o sustento da família até à data da partida para as ilhas verdes do equador. A segunda prestação do valor do contrato só era entregue no momento do embarque. Dessa importância, metade ficava com os membros da família que não conseguiram um contrato e a outra metade ficava com o seu dono, para as primeiras despesas logo após a chegada a São Tomé e Príncipe.
Com efeito, a grande maioria dos cabo-verdianos que à época escolheu São Tomé como destino fê-lo de forma voluntária pois não lhes restava qualquer outra alternativa. A ilusão de melhores condições de vida e o facto de poderem deixar para trás as horríveis condições de sobrevivência que existiam em Cabo Verde, tornou desejável para muitos esta longa e penosa viagem.
As duras condições de vida nas roças
Convidaram-me a visitar as suas casas. Senti-me honrado por tamanha prova de confiança e amabilidade. Na grande maioria delas, as condições eram desumanas. Umas paredes enegrecidas com o passar dos anos, umas chapas de zinco a proteger das torrenciais chuvas tropicais e pouco mais. Comum a todas elas era a limpeza que lhes conferia um ar um pouco menos decadente. Partilharam comigo o que de melhor tinham para me oferecer. Por respeito e reconhecimento pelo seu abnegado e sincero altruísmo, aceitei. Provei o cuscuz acabado de fazer. O sabor era o mesmo daquele que costumava apreciar nas minhas muitas idas a Cabo Verde. Se não fosse o ar decrépito do pequeno quarto com janela aberta para a densa e verdejante vegetação tropical, quase podia afirmar que estava numa qualquer povoação do interior de Santo Antão. A adaptação cultural, o clima e o modo indiferenciado como foram tratados os contratados assim que chegaram a São Tomé e Príncipe, talvez tenham sido as maiores dificuldades que tiveram que enfrentar.
Uma vez chegados às roças de São Tomé e Príncipe foi-lhes dado a conhecer uma realidade muito diferente daquela que inicialmente tinham imaginado. Comerem de panelão — termo utilizado para o momento da refeição onde todos comiam da mesma panela — ou serem obrigados a comer fuba, cheia de bicho, com peixe salgado servido em folhas de bananeira era, para eles, no mínimo humilhante. Quando o dia terminava, tinham de ingerir a refeição em completo silêncio sob pena de serem severamente castigados pelos dirigentes da sanzala. Também a chuva constante que frequentemente assola estas ilhas equatoriais fazia com que os cabo-verdianos se sentissem deslocados do seu ambiente natural. Muitas vezes se viam obrigados a ter que secar as parcas roupas no fumo das cozinhas coletivas, o que os deixava bastante desconfortados.
Esta indigenização forçada era quase sempre opressiva e violenta. As relações sociais e laborais nas roças eram alimentadas pelo racismo omnipresente entre dirigentes e serviçais. A esmagadora maioria dos responsáveis pelas roças eram europeus boçais, de difícil trato, instigados pelo regime colonial a usurparem ao máximo a força do trabalho dos serviçais. Para eles, os trabalhadores eram apenas mão-de-obra temporária, a termo, o que os instigava a usarem-nos até ao limite das suas forças. Não raras vezes, empregavam castigos físicos ou psicológicos para os obrigar a executar as mais humilhantes tarefas, como por exemplo, terem de transportar por muitos quilómetros e debaixo de chuva intensa enormes cestas de estrume que, a custo, levavam à cabeça. Ao fim de algum tempo, a água suja que inevitavelmente escorria das denominadas cuales, misturava-se com o suor amargo que brotava dos rostos sofridos. Os cabo-verdianos não escapavam a estas provações e, rapidamente, se aperceberam que o estatuto que julgavam ter, era, de facto, uma mera ilusão.
Volto-me para o mais velho. As marcas indeléveis que tem gravadas no corpo são a prova viva das provações e dos tempos difíceis porque teve de passar. Tal como os restantes companheiros, este agora velho, também teve que se resignar a cumprir as ordens, muitas das quais impossíveis de concretizar ou desprovidas de sentido prático. O seu incumprimento era, muitas vezes, repostado com o uso do chicote ou da palmatória, quer na formatura, que invariavelmente acontecia por volta das quatro da manhã no terreiro da roça, quer já durante os trabalhos no mato. A pressão psicológica também se fazia sentir ao nível dos castigos que, frequentemente, os administradores aplicavam a quem questionasse as tarefas para as quais tinham sido incumbidos. Quando não castigados fisicamente, os incumpridores eram punidos com o deslocamento para dependências mais distantes da roça, onde as condições de vida eram ainda piores, o que acabava por lhes quebrar o ânimo, subjugando-os à total e completa subserviência. Por vezes, a automutilação era a solução encontrada por alguns para tentarem obter uma indemnização e assim voltarem para Cabo Verde. Quando não resultava, tentavam a fuga ou, em casos extremos, o assassinato de europeus como forma de represália aos ultrajes sofridos. Contudo, apesar das abismais diferenças sociais na estrutura hierárquica das roças, os cabo-verdianos sentiam-se especiais, pois como muitos afirmam, estavam ali por vontade própria.
Alguns falam-me que no tempo do branco tinha que se trabalhar muito, mas não era assim tão mau como atualmente. Ouço-os sem nada dizer. Justifico comigo mesmo o que me dizem com o facto de que, com o passar dos tempos, talvez a memória dos maus-tratos que lhes foram infligidos se tenha diluído no passar dos anos. O facto é que, nos derradeiros anos do colonialismo em São Tomé e Príncipe as condições de trato e vida tenderam a melhorar. Para tal contribuíram a evolução política e a renovação das mentalidades dos dirigentes das roças. Também a modernização dos métodos produtivos aliada à menor quantidade de pessoal recrutado terá aligeirado as tensões até aí existentes. Não era difícil aos cabo-verdianos obterem emprego numa qualquer roça que não aquela para onde tinham inicialmente sido enviados. O trabalho já não obrigava às penosas formaturas matinais e, após o cumprimento das tarefas, os serviçais ficavam livres para organizarem o resto do dia como bem lhes aprouvesse. A muitos foi dada uma parcela de terra para cultivo próprio e, lentamente, pequenos lotes de mato foram sendo transformados em pequenas lavras. Se a este aliviar das tensões adicionarmos os laços familiares que foram sendo criados ao longo das décadas um pouco por todas as roças de São Tomé e Príncipe, constatamos que, o tão desejado regresso a Cabo Verde que muitos dos primeiros contratados almejavam, começou por perder força e importância, acabando muitos por decidir ficar definitivamente nas ilhas do equador.
A independência e a transição política
Saio para a rua. Ao longe, frente ao terreiro onde tantas vezes os mais velhos se devem ter perfilado — ainda o dia não tinha nascido — para a formatura que antecedia as longas e penosas horas de trabalho nas terras quentes da roça, observo quase incrédulo a bandeira da nação cabo-verdiana hasteada na antiga casa dos serviçais. Aquela bandeira gasta e rasgada pelo tempo é uma viva revelação do inglório presente dos cabo-verdianos por terras de São Tomé e Príncipe.
Para a grande maioria dos cabo-verdianos que tentaram sorte em São Tomé e Príncipe, ter que ficar por aquelas paragens revestiu-se de uma inevitabilidade à qual era difícil escapar. Findo o contrato, grande parte dos trabalhadores não tinha qualquer reserva financeira que lhes possibilitasse o regresso à terra natal. Se a este facto adicionarmos a interiorização da cultura migrante cabo-verdiana que classifica o sucesso pessoal pela fortuna amealhada durante o período de tempo que se esteve emigrado, facilmente encontramos motivos para muitos terem descartado a possibilidade de regressarem a Cabo Verde. Por outro lado, nada faria prever as dificuldades que se lhes iriam impor, pelo que a grande maioria optou por permanecer mais algum tempo e, assim, amealhar algum dinheiro que lhes possibilitasse regressar condignamente ao arquipélago cabo-verdiano. A melhoria das condições de vida que se tinha registado nos últimos anos da administração colonial, o facto de as roças providenciarem os bens essenciais à sua precária subsistência e os laços familiares que, entretanto, foram criados, também terá contribuído para a decisão de muitos não regressarem.
Contudo, com o 25 de Abril de 1974 em Portugal, dá-se a queda do regime colonial e a situação nas ex-colónias portuguesas altera-se radicalmente. À semelhança do que aconteceu nas outras colónias em África, a retirada em massa dos europeus de São Tomé e Príncipe fez com que os cabo-verdianos ficassem vulneráveis aos desígnios dos naturais da terra. De forma quase imediata, os são-tomenses reclamaram como sua a terra onde outrora foram partilhados sonhos e esperanças. Os novos donos das ilhas equatoriais, imbuídos na luta pela independência, levaram a conflitualidade para dentro das roças, incentivando os serviçais à greve e ao boicote ao trabalho. Esta luta pela independência de São Tomé e Príncipe terá criado desavindas entre os são-tomenses — desejosos da autonomia — e os cabo-verdianos que não auguravam melhorias na sua condição de estrangeiros. Como tal, muitos opuseram-se às ações de reivindicação da independência. O súbito desabamento das estruturas hierárquicas que lhes eram familiares e o desaparecimento da quase totalidade dos europeus do território fez abalar o pequeno mundo em torno do qual começavam a refazer a sua vida. Com a perda de posição social dos europeus, os cabo-verdianos tomaram consciência da sua também precária situação.
Tendo em consideração esta nova realidade, alguns refizeram os seus projetos de vida com vista ao regresso a Cabo Verde. A sua partida ou permanência no território apenas dependia da colaboração das novas autoridades cabo-verdianas, uma vez que há muito que já tinham gasto o bónus da repatriação que o regime colonial lhes havia concedido para, quando terminassem o contrato e se assim achassem bem, quisessem regressar a Cabo Verde. Como a larga maioria tinha anteriormente optado pela sua permanência nas ilhas do equador, usaram esse dinheiro em prol de necessidades mais prementes. Portugal descartava-se assim de eventuais responsabilidades, ao mesmo tempo que, atirava para as novas autoridades são-tomenses e cabo-verdianas o ónus de repatriar quem assim o desejasse. Para o novo Governo de São Tomé e Príncipe, dispor de mão-de-obra para empreender desejada dinâmica impulsionadora da economia que se adivinhava necessária à autonomia do país, era de grande proveito pelo que não acarretava vantagens repatriar os milhares de cabo-verdianos que permaneciam nas roças. Por outro lado, para as novas autoridades cabo-verdianas a governar um jovem país cheio de debilidades, sem recursos e com graves carências sociais, o regresso de milhares de compatriotas em estado de completa miséria também não se afigurava uma situação de fácil resolução, pelo que declinou os pedidos de repatriamento de muitos dos cabo-verdianos que se encontravam em São Tomé e Príncipe e que mostravam genuíno desejo de regressar às suas terras de origem. Estes milhares de cabo-verdianos que se encontravam espalhados pelas roças das ilhas do equador ficaram, assim, irremediavelmente entregues ao seu destino. De um momento para o outro, viram-se isolados numa terra que lhes era agora estranha.
Durante a transição de regimes, a esperança — mesmo que por breves momentos — foi de alguma forma reposta. A convergência entre cabo-verdianos e são-tomenses criou algum alento aos que ficaram. As ideias antagónicas, as diferenças sociais e culturais existentes entre ambos os povos passaram, em prol das clivagens raciais contra os poucos colonos que resistiam permanecer em São Tomé e Príncipe, para segundo plano. Os cabo-verdianos prescindiram do seu sentimento de superioridade face aos são-tomenses e estes esbateram, embora de forma superficial, a demarcação social que tinham em relação aos serviçais das roças. Por um curto período de tempo esboçaram-se planos de crescimento baseados na igualdade. Adiantaram-se promessas de partilha de terras e conjeturou-se uma sociedade justa e igualitária. Contudo, uma vez nacionalizadas as roças, a continuação da utilização do modelo de exploração agrícola colonial sobrepôs-se aos slogans independentistas e, uma vez mais, aos cabo-verdianos foram vedadas quaisquer possibilidades do acesso às terras. Acabaram por se sentir frustrados e enganados. Terminava desta forma a ambição de ascenderem à tão desejada condição de pequenos proprietários. O destino voltou a tornar-se opressivo, não apenas pela condição social a que regressaram — a de serviçais — como pela rigidez reintroduzida pelos são-tomenses nas relações laborais nas roças.
A degradação das condições dos cabo-verdianos após a independência
O que terá então corrido mal? Porque é que a grande maioria dos cabo-verdianos, outrora esperançados num futuro promissor em terras equatoriais, se veem agora como que apartados da sociedade? Em que período da história se deu o revés nas vidas destas pessoas? Dizem-me que a independência do país trouxe consigo a desgraça dos cabo-verdianos. De facto, após a conquista da autonomia política do território, as novas autoridades do país precaveram-se contra eventuais alterações na estrutura social que, fruto de reivindicações veladas, pudessem ocorrer nas roças de São Tomé e Príncipe. Para o conseguirem, nacionalizaram todas as explorações agrícolas existentes no arquipélago. Tal situação representou um rude golpe nas ambições dos cabo-verdianos que, há longos anos, aspiravam a uma cidadania condigna baseada no acesso livre à terra e, por conseguinte, numa atividade económica, senão independente, talvez semi-independente conforme haviam anteriormente conhecido em Cabo Verde. No entanto, com o receio de uma ascensão social que impulsionasse a soberania dos cabo-verdianos aos nativos são-tomenses, o Governo intensificou esforços para impossibilitar a conquista de terras aos ex-serviçais. Ao mesmo tempo que exaltava as capacidades de trabalho e a dedicação dos cabo-verdianos, o Governo são-tomense assegurou-se que as suas aspirações eram subalternizadas aos domínios das roças. A perpetuação das roças como pertença do Estado restringiu as oportunidades dos trabalhadores e, consequentemente, funcionou como mecanismo de exclusão da sua participação na vida política e social. Preservaram-se assim as assimetrias entre os diversos extratos sociais, apenas substituindo-se na gestão das propriedades agrícolas os antigos colonos pelos agora novos donos são-tomenses. Para agravar a situação, esta nova estrutura dirigente não possuía conhecimentos que lhes permitissem gerir e administrar, de forma adequada, este tipo de empresas agrícolas.
O sentido da posse coletiva, tão apregoado antes da independência, viria a ser total e completamente esquecido em prol do interesse estatal, numa primeira fase, e depois do interesse individual dos responsáveis administrativos que apenas estavam interessados em valorizar o seu bem-estar pessoal e ambições particulares, não se abstendo de delapidar o património existente nas roças. Tal apropriação do espólio das empresas agrícolas viria a originar fricções entre os responsáveis são-tomenses e os trabalhadores cabo-verdianos que não se reviam nos métodos de gestão utilizados. As tensões com base na injustiça laboral tomaram conta de todo o território com a consequente degradação das condições de vida dos trabalhadores. O seu desempenho passou a ser pautado em função da justiça dos seus dirigentes e, não raras vezes, a outrora dedicação e apego ao trabalho dos cabo-verdianos evoluiu de um escrupuloso cumprimento das tarefas para um desleixe na execução das mesmas.
Quando o colonialismo dava sinais de se ter esgotado, o acesso à terra, ainda que precário, representou uma importante vitória outrora inimaginável para os cabo-verdianos. Depois de 1975, o Estado são-tomense, sem capacidade de gerar receitas capazes de garantir a importação dos bens alimentares inexistentes no arquipélago, apostou numa agricultura de subsistência que permitisse o autossustento dos agregados familiares. Embora nunca o tenha decretado, o Governo, de certa forma, incentivou a exploração das pequenas lavras como forma de minimizar os efeitos da falta de divisas necessárias à importação de bens alimentares para as populações. Esta política viria a revelar-se desastrosa para o futuro das roças, fazendo com que a grande maioria entrasse em colapso e falisse. A economia nacional desagregou-se e a solução encontrada pelas autoridades foi a de entregar as roças nacionalizadas à exploração dos privados. Tal, obrigaria a uma nova redistribuição das terras. Esta nova redistribuição fez-se, uma vez mais, com base em critérios clientelistas, isto é, como paga de favores políticos, deixando para trás o desempenho laboral em quem nelas efetivamente trabalhou e continuava a trabalhar. Como seria de esperar, o processo correu mal, pois quem tinha as terras não as cultivava, fazendo com que, nos anos noventa, se tivesse de levar a cabo nova redistribuição das terras de São Tomé e Príncipe, com consequências ainda mais gravosas para os trabalhadores cabo-verdianos.
Sem ter em consideração o direito de usufruto das terras que vinham a ser cultivadas desde os tempos coloniais — para algumas das quais inclusive foi incentivado o seu cultivo nos primórdios da independência e que estavam a ser aproveitadas como forma de combater as carências existentes no país — esta nova redistribuição viria, uma vez mais, a acentuar a injustiça no acesso à terra. Não houve contemplações para quem, durante décadas, trabalhou duramente nas roças com prol do desenvolvimento do país, nomeadamente os mais velhos que se viram assim impossibilitados de angariar qualquer sustento capaz de garantir a sua subsistência. Nesta nova distribuição de terras, apenas foram beneficiados os trabalhadores no ativo e os mais jovens, muitos deles sem qualquer capacitação ou vocação para o trabalho agrícola. Com este novo modelo de distribuição das terras perpetuou-se um desenho social de favorecimento da força de trabalho desprovida de fontes de subsistência, subalternizada e incapaz de qualquer progressão social. Muitos dos que habitavam o mato viram-se excluídos de poder vir a possuir uma pequena lavra que lhes pudesse garantir a subsistência, chegando-se ao absurdo de lhes ser proposto o pagamento de uma renda como forma de usufruírem dos bens que, eventualmente, eles próprios viessem a cultivar. Todos estes fatores contribuíram, de forma decisiva, para que muitos dos cabo-verdianos instalados em São Tomé e Príncipe ditassem o fim do seu contributo ao país como trabalhadores agrícolas.
Ao longe vejo alguns homens cabisbaixos que, sem pressa nem destino, vão saindo aos poucos do mato cessado que rodeia a roça. Passaram grande parte do dia a tentar angariar o sustento das suas famílias. Pouco trazem consigo. Acerco-me de um deles e pergunto-lhe como tinha corrido a safra. Mostrou-me um velho saco de serapilheira com alguns caracóis gigantes que tinha encontrado junto a um riacho. Insistia em chamar-lhes búzios da terra, talvez numa alusão aos verdadeiros búzios que há muito tinha deixado de pescar nos mares de Cabo Verde. Aqueles caracóis iriam ser a única refeição do dia.
Olho para o seu rosto prematuramente envelhecido e vejo o vazio do seu olhar, reflexo da esperança perdida. Talvez um dia tenha sonhado poder vir a ser um pequeno proprietário agrícola. É, hoje, mais um a engrossar a longa lista dos sobreviventes de um passado que se imaginou próspero. Os sucessivos golpes no ânimo dos cabo-verdianos, nomeadamente no que ao acesso à terra dizia respeito, iriam condicionar toda a sua capacidade reativa de combate à pobreza. A coragem e determinação com que sempre tinham enfrentado os recomeços, estava agora moribunda. O golpe final viria da perpetuação do modelo colonial de exploração da terra, entretanto desprovida da eficiência de outros tempos.
Se outrora os cabo-verdianos se consideravam contratados do regime colonial português, comparam-se agora a escravos sob domínio e orientação dos são-tomenses. Confinados que estão ao espaço das roças, sem meios que lhes possibilitem a criação de riqueza, sem força anímica para enfrentar as adversidades e sem perspetivas de um futuro melhor, a sua escravatura assume agora dimensões reais.
Da resignação à realidade
A privação extrema a que as comunidades cabo-verdianas se veem agora forçadas nas antigas roças de São Tomé e Príncipe gera uma mistura de sentimentos que vão da pura indignação e revolta até à resignação e aceitação da sua condição social. Para muitos, a degradante situação em que se encontram é uma inevitabilidade a que não podem escapar. O sentimento de impotência perante as adversidades leva-os a anuir com a situação deplorante a que chegaram e a se compararem, ainda que de forma tácita, à condição de herdeiros da escravatura.
A desumanização a que estão sujeitos fomenta-lhe um sentimento de desespero contido. A marginalização e a exclusão confina-os ao pequeno mundo que sempre conheceram e que, tal como antigamente, lhes mina o livre-arbítrio da iniciativa pessoal e coletiva. Acabaram por se tornar reféns de si próprios, sem ânimo nem vontade para lutar por uma sorte melhor. A sua incapacidade de afirmação social e a fraca aptidão para a agregação ou o associativismo, anula-lhes a possibilidade de uma reivindicação coletiva por melhores condições de vida junto das autoridades ou organizações não-governamentais. Depois há a descrença. Já nenhum deles acredita verdadeiramente na real possibilidade de um dia poder vir a ter uma vida melhor. Como tal, conformam-se com a situação, acomodam-se às dificuldades do dia-a-dia e rendem-se de forma consciente e silenciosa.
Aos seus descendentes apenas é dado a observar a miséria em que caíram os progenitores. A marginalidade a que muitos se dedicam aprofunda o desregramento social e as consequentes conflitualidades no quotidiano do que resta das roças.
As ruínas dos espaços outrora protetores e, de certa maneira, congregadores dos valores culturais e da união de um povo, são agora o espelho da sua desgraça. As roças de São Tomé e Príncipe transformaram-se nas grilhetas coletivas de uma comunidade relegada ao abandono. Os terreiros transformaram-se no símbolo da perda da esperança, do esfumar dos sonhos e da inconsequência dos seus sacrifícios. A regressão aos padrões de vida do tempo que tiveram que aceitar o contrato desfila, dia após dia, perante os seus olhos esvaziados de qualquer expectativa num futuro melhor. A ruína em que caíram as roças é o espelho da sua própria ruína.
Antes de partir, perguntei a um deles porque é que as coisas tiveram de acabar assim? Assaltado pela inquietante pergunta, encolheu-se como que procurando uma réstia de dignidade humana dentro do seu âmago. Depois, respirou fundo e, do alto do seu orgulho em ser cabo-verdiano, respondeu-me: “são apenas os desígnios de Deus”.
Olhei novamente para o meu pequeno bloco de notas e revejo as visitas que me propus fazer. Há ainda muitas roças e dependências por visitar. O que será que me espera? Que outras vidas e duras realidades irei ainda encontrar?
Texto e Fotografias: Pedro Matos