São Vicente – Espelho cultural de Cabo Verde
17 Jun 2012

São Vicente – Espelho cultural de Cabo Verde

Por muitos considerada como a capital da cultura cabo-verdiana, a ilha de São Vicente sempre foi fértil na contribuição cultural do país. Além da música, São Vicente viu nascer importantes personalidades da literatura, do teatro e da pintura cabo-verdiana. São Vicente é também famosa pelo seu Carnaval, pelas festividades de Fim de Ano e pelas numerosas expressões culturais que regista ao longo do ano.

Fruto da miscigenação da sua população, São Vicente desenvolveu uma cultura muito rica, feita das muitas influências que desde cedo experimentou, por influência das várias realidades culturais provenientes de outros países, que encontravam no Porto Grande um bom porto de abrigo.

Música, músicos e expressões musicais

CesariaEvora _20_Nos GentiGrandes nomes da música cabo-verdiana são oriundos de São Vicente. O mais conhecido é sem dúvida Cesária Évora, a “diva dos pés descalços” que, com a sua voz única, levou o Cabo Verde aos quatro cantos do mundo. Mas existem outros que transpuseram para as suas obras a influência omnipresente que a ilha encerra, dos quais se destacam Luís Morais (1934-2002), exímio flautista, saxofonista e clarinetista, Vasco Martins (compositor), entre muitos outros.

Oriundos de São Vicente são igualmente os estilos musicais de cariz religioso, Kolá Sam Jom e, o mais famoso de todos, a Coladeira.

Tendo o seu processo de formação concluído por volta dos anos cinquenta, a origem da Coladeira está envolta em várias teorias, sendo as mais prováveis as que apontam para que, durante os bailes, bastava um ligeiro sinal dos dançarinos para que os músicos apressassem o andamento das mornas, o que fazia os dançantes rodopiarem aos saltinhos, dançando a contratempo. A segunda teoria apoia-se na tese da Coladeira ter tido a sua origem em ritmos como o Kolá San Jon (de São Vicente ou Santo Antão). Há ainda uma terceira corrente, embora com menos apoiantes, que refere que a Coladeira provém das influencias dos ritmos latino-americanos.

Sobre a consistência destas teorias ou teses, todas têm um fundo de verdade, precisamente pelo facto das muitas influencias a que sempre esteve exposta a ilha de São Vicente. A partir dos anos cinquenta, quando começa o fulgor da Coladeira, começam a aparecer os primeiros grandes nomes que para sempre ficarão associados a este género musical.

GoyVivendo intensamente o ambiente social de São Vicente, e com o característico sentido de humor mindelense, o compositor Gregório Gonçalves – Goy – desenvolve a Coladeira num estilo que marcaria mais de uma década, satirizando sobre a sociedade do Mindelo.

Tony Marques, compositor que utiliza um ritmo mais rápido e preciso, recorre a uma estrutura musical rica em acordes e meio-tons. Os versos são metodicamente adaptados ao ritmo da música. O seu irmão Djosa (baterista e pianista), é o arquiteto do ritmo e inventor de muitos “breaks” característicos do estilo. Esta estrutura rítmica foi aplicada inúmeras vezes nas suas interpretações de Coladeiras de outros autores, e ainda hoje tem reflexos nas interpretação de algumas Mornas.

Um pouco mais tarde, em meados dos anos sessenta, Franck Cavaquim (baterista e compositor), com o grupo musical Voz de Cabo Verde, devido à grande difusão em disco e aos inúmeros espetáculos por todo o arquipélago, domina o panorama musical da época. O ritmo de Franck Cavaquim (um misto dos estilos de Goy e Djosa Marques), impôs-se de forma inequívoca.

Com o Cabo Verde Show, grupo cabo-verdiano fundado em Paris, do qual faziam parte Manou Lima e Boy Gé Mendes, entre outros, a Coladeira evolui para um ritmo mais moderno, dando origem a um chamado Coladance, alegre e influenciado pela salsa nos anos 80. Os álbuns de Tito Paris (“Dança ma mi criola”), do conjunto Os Tubarões (“Porton di nos ilha”) e de Bius (“Dia e Note”), na segunda metade dos anos 1990, marcam o renascimento desse género e um regresso às origens.

Ainda no campo musical, e associado ás raízes africanas dos ritmos com tambores, temos o Kolá, típico das ilhas de Santo Antão e São Vicente. Contrariamente ao que se passa no continente africano, em Cabo Verde o tambor não louva ou evoca entidades e deuses pagãos. Fruto da evangelização dos escravos, com forte influencia da cultura europeia, os tambores em Cabo Verde foram usados essencialmente nos rituais das Festas dos Santos. O ritmo escutado nestas festas, louva o S. João, S. Filipe, S. Pedro, Santa Cruz.

Em São Vicente, festeja-se Santa Cruz, na localidade de Salamansa, o S. João, no vale da Ribeira de Julião e o S. Pedro, no Mindelo. Aqui, os tambores são acompanhados por um terceiro elemento que, dentro de um barco em miniatura, dança e faz evoluções, como se o barco estivesse a navegar em mar revolto. Ao ritmo dos tambores, pontuado pelo assobio de apitos em contratempo, as mulheres cantam e dançam, seja entre elas, seja com os homens, ao que se segue uma “umbigada”, em simulação do ato sexual. A esta dança, a este ritmo de tambor e as cantilenas que as mulheres cadenciam, dá-se o nome de Kolá.

Literatura

Muitas são as figuras de relevo ligadas à literatura, cujas origens se encontram nas terras de São Vicente. No entanto, quer pela qualidade do trabalho apresentado, quer pelo espaço temporal das suas obras, quatro autores se destacam: Ovídio Martins, Oswaldo Osório, Sérgio Frusoni e mais recentemente Vera Duarte.

Natural da cidade do Mindelo, Ovídio de Sousa Martins sempre se empenhou na defesa da cultura cabo-verdiana. Nascido a 17 de Setembro de 1928, Ovídio Martins cedo enveredou na luta pela liberdade, com textos acossadores ao sistema colonial, o que acabou por o conduzir ao presídio pela polícia política do regime. Exilou-se na Holanda onde persistiu na renovação da estética literária cabo-verdiana. A sua poesia reflete o vínculo à terra e aos problemas do seu povo, sendo-lhe atribuído o mérito de ter elevado a língua cabo-verdiana à respeitabilidade de língua literária. Foi Co-fundador do Suplemento Cultural editado em São Vicente em 1958. Morreu a 29 de Abril de 1999.

Oswaldo Osório - Cantigas de Trabalho

Oswaldo Osório nasceu na ilha de São Vicente, em Novembro de 1937. Fundou, com Jorge Miranda Alfama, Rolando Vera-Cruz Martins e Mário Fonseca, a folha liceal Seló, em São Vicente. Dado o cariz da publicação, foi censurada ao fim do segundo número. Publicou “Caboverdeanamente Construção Meu Amor; Cântico do Habitante Precedido de Duas Gestas; Claridade Assombrada; Os Loucos Poemas de Amor e Outras Estações Inacabadas; Gervásio; Desde as Portas de Roterdão; Cantigas de Trabalho entre outras. Aliás, “Cantigas de Trabalho” foi a primeira obra publicada em Cabo Verde com textos em crioulo, utilizando o alfabeto de base fonético fonológica, uma opção ortográfica que até hoje é objeto de grande polémica entre os cabo-verdianos. É um acérrimo defensor da recriação na área literária.

Filho de pais italianos, Sérgio Frusoni nasceu na cidade do Mindelo a 10 de Agosto de 1901. Já adulto, geriu o café “Sport” no Mindelo, onde apresentava poemas e pequenos contos em crioulo. Na década de sessenta, liderou o grupo de teatro “Teatro do Castilho”, no Mindelo. Foi locutor da Rádio Barlavento, onde dirigia e apresentava, em crioulo, o programa “Mosaico Mindelense”. Autor de vários contos, notabilizou-se como poeta crioulo. Frusoni é considerado um dos principais escritores que dá dignidade poética à escrita em crioulo.

Finalmente, destacamos Vera Duarte. Natural do Mindelo, Vera Duarte licenciou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, tendo-se posteriormente formado em Magistratura Judicial no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa. Tem participado ativamente na vida pública de Cabo Verde, especialmente em questões relacionadas com os Direitos Humanos, a cultura e a mulher cabo-verdiana. As suas atividades em prol dos Direitos Humanos valeram-lhe, em 1995, o galardão Norte-Sul de Lisboa. Em 2003 é-lhe atribuído o prémio literário “Sonangol de Literatura 2003”, pela autoria da novela “A Candidata”. Foi presidente da Associação Cabo-verdiana de Mulheres Juristas (AMJ), membro do Comité Executivo da Comissão Internacional de Juristas e de várias associações da sociedade civil cabo-verdiana, nomeadamente a Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC). Destacam-se algumas das suas obras, nomeadamente “Amanhã Amadrugada”; “Arquipélago da Paixão” e “Preces ou Súplicas ou os Cânticos da Desesperança”. Com um forte enfoque na temática da mulher, Vera Duarte possibilitou, através da literatura, uma libertação de sentimentos que por norma são reprimidos pela sociedade.

Teatro e artes cénicas

Joao Branco _9_Nos GentiFalar de teatro em São Vicente, é falar da sua Associação Artística e Cultural, a MINDELACT. Em Cabo Verde, à semelhança de outras expressões artísticas, o teatro evoluiu de forma irregular: umas vezes com períodos de forte crescimento, noutros com crises profundas, resultantes da estagnação total da sua expressividade. Sendo uma atividade amadora, logo sujeita à paixão dos seus agentes, beneficia ainda de uma pureza por quem a promove e divulga.

Dadas as grandes dificuldades de fazer trabalho criativo em Cabo Verde, fruto das condicionantes geográficas e económicas, é com alguma perplexidade que se assiste à proliferação de cada vez mais artistas, quer na música, quer na expressão plástica, quer literatura – e o teatro não é exceção.

Corria o ano de 1995, quando alguns mindelenses apaixonados pelo teatro decidem organizar um Festival de Teatro de cariz puramente cabo-verdiano. Bastaram-lhes 15 dias para o projeto se tornar realidade. Deram-lhe o nome de MINDELACT. Esta iniciativa, inédita no panorama das artes representativas de Cabo Verde, teve um impacto considerável junto do público e da comunicação social.

O programa da primeira edição do Festival de Teatro MINDELACT, era o espelho do desejo dos seus promotores: “Mindelo é uma cidade mágica. O teatro é uma das melhores artes que pode abraçar essa magia e pensamos, por isso, que seria um crime abandonar esta arte nesta cidade. Não queremos ser cúmplices deste crime e eis, pois, o porquê desta aventura que no futuro não o será; será, pois, uma certeza. Queremos que o MINDELACT funcione como um estímulo ao teatro cabo-verdiano e um desafio concreto à capacidade de criação e da realização dos coletivos teatrais e dos criadores individuais e que reflita o processo de revitalização que se vem sentindo no teatro em Cabo Verde, principalmente em Mindelo, tentando resistir à indiferença, tentando sair do marasmo em que se encontra, com o aparecimento de novos grupos de teatro e a confirmação de outros que não tem desistido em presentear o público mindelense com as suas obras. Esses novos grupos, juntamente com aqueles que já se encontravam em atividade, devem unir-se e essa união deverá funcionar como mola impulsionadora para uma verdadeira evolução do teatro das ilhas (…)”.

Fruto do sucesso desta primeira grande iniciativa, a organização decide consolidar o projeto, dando-lhe personalidade jurídica e institucionalizar a sua estrutura associativa, por forma a facilitar as organizações subsequentes das próximas edições do Festival. Foram assim criados os estatutos da Associação Artística e Cultural, a que deram o nome do próprio festival – MINDELACT.

Desde então, todas as edições anuais do Festival de Teatro são um acumular de sucessos, pois, no entender dos seus organizadores, trata-se de uma iniciativa ímpar no panorama do teatro em Cabo Verde, pois além de reunir os mais interessantes criadores cénicos do país e revelar novos talentos ainda não explorados, pretende igualmente ser um ponto de contacto cultural na Lusofonia. O Festival de Teatro MINDELACT apresenta-se ao público todos os anos no mês de Setembro.

Artes plásticas e outras formas de cultura

Só após a independência é que começaram a aparecer alguns artistas plásticos, ligados à pintura e escultura, no panorama cultural de Cabo Verde. Nessa altura, todos os trabalhos realizados expressavam a temática da liberdade e da independência.

Nos dias de hoje, a realidade é bem diferente, e ainda bem. Cabo Verde abriu-se para o mundo e muitos dos seus artistas plásticos procuram inspiração além mar. Muitos deles até concluem os seus estudos artísticos no estrangeiro. A globalização é também sentida nas artes cabo-verdianas. No entanto, as cores e os temas continuam a ser essencialmente de raiz africana.

São Vicente, à semelhança das outras ilhas do arquipélago, tem contribuído de forma generosa para proliferação das artes plásticas do país. Muitos artistas têm sido influenciados pela vivência da ilha. Um dos mais notáveis é António Firmino. As suas telas são o espelho das gentes são-vicentinas. Pintor por vocação e professor de línguas por formação, há mais de duas décadas que António Firmino se assume como um artista plástico autodidata que “inventa a sua própria técnica a cada pincelada”.

Tchale Figueira - Historia _4_Nos Genti

Ainda na área da pintura, destacamos Humberto Tourinho Monteiro, Edith Borges, João Baptista Lima, Manuel Amocha Cabral, Manuel Figueira e Carlos Alberto Figueira. Mais recentemente, outros nomes surgem no espetro das artes plásticas, como promessas da continuidade cultural de São Vicente. Paulo Jorge de Sousa, nascido em São Vicente em 1974 é uma dessas grandes promessas.

No entanto, outros artistas se têm evidenciado através de obras notáveis. No ramo da tecelagem, Isabel Duarte é um dos nomes mais conceituados. Natural de São Vicente, lecionou Desenho Visual entre 1968 e 1974. Em 1976 integra o grupo de professores que formam a Cooperativa Resistência. Em 1978 participa na criação do Centro Nacional de Artesanato, onde leciona tecelagem, tapeçaria e batik.

Em termos culturais, São Vicente é dinâmica. É um viveiro de criatividade e génio. Fruto das influências externas ou simplesmente pela sensibilidade das suas gentes, São Vicente é, e continuará a ser, o espelho cultural de Cabo Verde.


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Comentários

  1. this article is moderated… isn’t a bed work, but i’m looking for architecture Mindelo history, and you haven’t nothing of this version. please, publish something about this one theme.

  2. Carlos A M Loff Fonseca (Titá Mascarenhas) Diz: Março 28, 2014 at 10:41 am

    SVicente conheceu a Revolução Industrial via Ingleses e Porto Grande a Internacionalização e Gil Eanes pela Cultura. Não conheceu Agricultura. As outras ilhas de um modo ou de outro foram ou são Agricolas.
    Assim, SVicente sempre olhou para o horizonte (o Estrangeiro) dando-se bem com este.
    O caso de SVicente é único e é também uma Mistura sem complexos.

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