Pancrácio da Cruz Tomar (Kaká) – Aproveitar todo o potencial da morna na Boa Vista
11 Mai 2014

Pancrácio da Cruz Tomar (Kaká) – Aproveitar todo o potencial da morna na Boa Vista

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Pancrácio da Cruz Tomar, ou Kaká, nome pelo qual é conhecido, nasceu a 11 de novembro de 1957 no seio de uma família humilde da Boa Vista. Ainda muito jovem conviveu com diversos músicos e compositores que, com as suas mornas, homenageavam o sentimento de um povo habituado às agruras da vida. O gosto pela música permaneceu vivo no seu íntimo e Kaká, acreditou um dia ser possível, também ele, contribuir para manter viva a chama da morna. É, hoje em dia, um reconhecido compositor de mornas cabo-verdianas e presidente da Associação de Músicos da Boa Vista.

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Ainda muito jovem Kaká sonhava um dia tornar-se um grande médico. Contribuir para o bem-estar das pessoas era o seu maior desejo, no entanto, para um menino nascido fora do casamento e com uma mãe solteira censurada e cheia de dificuldades, o seu sonho não se afigurava fácil. O seu pai, um homem de posses, ao lhe negar o seu carinho também lhe negou o gosto que tinha em poder estudar. Foi com mágoa e ressentimento que Kaká sentiu esfumar-se todas as suas ambições em um dia mais tarde se tornar “o melhor médico que a Boa Vista viu nascer”. Fruto desta amargura e desgosto, Kaká prometeu a si mesmo que, quando tivesse uma família só sua e à qual pudesse dar todo o seu amor, deixaria de usar sapatos para assim “poder pisar com os próprios pés toda a maldade que existe na terra”. É desta forma simbólica que os pés descalços que Kaká orgulhosamente exibe se tornaram a sua imagem de marca e que, junto com as suas mornas tristes e melancólicas, lhe recordam as amarguras de outros tempos.

São essas amarguras e tristezas que Kaká magistralmente transporta para as suas interpretações e às quais a morna serve de veículo. Com vinte anos de idade partiu para Cuba para completar um curso de ensino médio ligado à cerâmica. Com os cubanos, aprendeu a expressar os seus mais íntimos sentimentos. Os convívios com os camponeses inspiraram-no a fazer as suas primeiras letras.

Com um CD editado em 2006, “Mana Lourença” presta uma homenagem à mulher cabo-verdiana. Encontra-se, atualmente, a ultimar o seu mais recente trabalho discográfico cujo título, “Minha Mortalha”, é revelador da melancolia e da dolência que gosta de empregar na interpretação das mornas que compõe. “Por vezes sou criticado por as minhas músicas serem muito tristes, mas penso que é necessário dar voz a esses sentimentos mais melancólicos e amargurados”, revela o artista.

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Kaká

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O reconhecimento do seu papel na música cabo-verdiana, e em especial na música da Boa Vista, e o facto de, há doze anos, a morna estar a perder expressão a nível nacional, levaram-no a assumir responsabilidades ao nível da presidência da Associação de Músicos da Boa Vista (AMBV). Juntamente com um grupo de amigos da morna, entre os quais Noel Fortes – músico e compositor boavistense a residir em São Vicente – Kaká decidiu criar uma associação de músicos locais, cujo principal objetivo era acarinhar e valorizar a morna como parte da identidade cultural cabo-verdiana. “Lutamos igualmente por promover os músicos da Boa Vista no panorama musical nacional, ao tentarmos fomentar uma maior participação de músicos locais em outros festivais e eventos realizados noutras ilhas de Cabo Verde. Ser músico da Boa Vista ainda não é reconhecido como ser músico de Cabo Verde”, lamenta Kaká.

A AMBV, embora viva com as dificuldades naturais existentes neste tipo de organizações, conseguiu já o seu primeiro objetivo: dar o devido reconhecimento ao contributo dos músicos da Boa Vista para a visibilidade da morna nacional. Fruto do trabalho desenvolvido, todos os anos organiza um Festival de Mornas, onde durante uma semana, este género musical é intensamente vivido na ilha da Boa Vista. O Festival de Mornas é o único do género em Cabo Verde e tem servido para a divulgação e consolidação de grandes intérpretes nacionais, quer da Boa Vista, quer de outras ilhas do arquipélago. No futuro, pretendem tornar o Festival num dos principais eventos culturais do país.

Contudo, apesar do bom momento que atravessa a morna, Kaká é mais cauteloso quanto ao futuro desta herança cultural e afirma que, “apesar de ser de louvar o trabalho do Ministério da Cultura na promoção da morna candidatando-a à UNESCO como Património Imaterial da Humanidade, isso por si só não chega. Se a morna for considerada Património Imaterial da Humanidade, que era o que eu mais desejava, irá tornar-se mais um dos símbolos do país, como tal, terá que ser obrigatoriamente mais acarinhada e os jovens devem ser os primeiros a respeitá-la. Seria bom que, logo desde pequenos, ainda na escola primária, todos os nossos jovens soubessem dar o devido valor à nossa morna. Depois há a questão dos músicos e tocadores: é preciso resgatar do amadorismo quem tanto tem feito pela preservação da morna. É preciso que haja mais incentivos, mais ações de integração e mais eventos de formação e capacitação destes valores. Um dos problemas dos músicos da Boa Vista é não conseguirem integrar o mercado musical nacional por excesso de amadorismo. Sem apoios, incentivos e tutores, não irão conseguir dar o salto fundamental para a perpetuação da morna, sob pena de termos um Património Imaterial da Humanidade sem representatividade e a viver do trabalho dos nossos antepassados”, afirma.

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Morna

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A proteção aos músicos e compositores de música tradicional é outra das preocupações do presidente da AMBV. A falta de retorno económico associado à pirataria e à incapacidade de proteger os direitos autorais dos criadores faz com que muitos músicos e compositores se desinteressem pelo processo criativo. “Ao olhar para o estado atual em que se encontra a nossa música, por vezes sinto vontade de abandonar a caneta e o papel, pois vejo que não temos qualquer retorno com o trabalho que desenvolvemos. A tecnologia está muitas vezes a ser utilizada de forma maldosa. Atualmente, qualquer pessoa pode ouvir uma composição e editá-la. Os músicos tradicionais cabo-verdianos não têm qualquer tipo de proteção da sua propriedade intelectual e, devido ao grande fluxo de turistas que nos visitam, estamos mais expostos a este tipo de fenómenos”, desabafa Kaká.

Apesar do grande potencial que a Boa Vista oferece aos músicos locais, este não é devidamente aproveitado. Este estado de letargia dos músicos boavistenses deve-se, segundo, Kaká, “a um desinteresse dos mais novos na perpetuação da morna como veículo cultural. A nova geração não se preocupa em preservar as raízes. Tivemos grandes executantes de rabeca, de viola de 12 cordas e de violino, no entanto, atualmente, os jovens não se interessam por este tipo de instrumentos, preferindo os eletrónicos, o que faz com que haja falta de executantes de morna tradicional”, e adianta que, “apesar de termos na Boa Vista uma escola de música, nota-se que não há apetência para a preservação dos nossos costumes. A música era, antigamente, parte integrante da vivência dos cabo-verdianos; hoje em dia isso já não acontece e como tal, muito se vai perdendo.”

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Morna

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Esta falta de executantes e o desinteresse evidenciado pelas novas gerações, faz com que se percam importantes oportunidades, por si só capazes de estimular a música como atividade económica. Um exemplo notório é o potencial existente nos grandes hotéis da Boa Vista e que está a ser deficitariamente aproveitado pelos músicos boavistenses. Segundo o presidente da AMBV, “é nos hotéis que se encontram os maiores embaixadores da morna a nível internacional. Os turistas que frequentam esses hotéis são os melhores veículos para a divulgação internacional da morna, no entanto, fruto desse amadorismo e de alguma inércia dos músicos locais, esse potencial não está a ser aproveitado. Depois há a questão da sensibilidade dos próprios hotéis, em que num espetáculo de hora e meia, onde se toca normalmente vinte cinco temas, o limite que impõem à música cabo-verdiana é de sete temas, o que é francamente pouco e faz com que os músicos locais não se motivem em atuar nesses espaços” e conclui que, “a Boa Vista é uma ilha essencialmente turística, no entanto, em termos culturais, não oferece nada de novo a quem nos visita. Não existem serenatas nem espaços onde a morna seja promovida. Os turistas não têm motivação para saírem dos hotéis para presenciarem a cultura nacional e a nossa música, pois não há quem a toque. É por isso fundamental criarem-se mecanismos capazes de motivar os músicos a divulgar a morna.”

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Kaká

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“A Boa Vista contribui com uma quota significativa para o Produto Interno Bruto de Cabo Verde, logo, seria de esperar que houvesse uma maior articulação entre os músicos de outras ilhas e os locais. Tal não acontece. Os músicos de São Vicente, por exemplo, que têm mais técnica e são mais evoluídos ao nível do conhecimento do mercado, poderiam dar formação aos seus colegas da Boa Vista e isso não se verifica. A maior parte dos nossos músicos não tem formação. São autodidatas. Precisavam de ter alguém que os elucidasse sobre as novas técnicas e sobre a melhor forma de integrarem o mercado musical nacional, por isso, é preciso uma maior interligação entre o Ministério da Cultura, a Câmara Municipal e a Associação dos Músicos da Boa Vista em prol da proteção dos nossos artistas e da nossa morna”, reivindica o presidente da AMBV.

Em jeito de conclusão, Kaká apela aos músicos boavistenses a que não desistam de atingir os seus objetivos, “lutando por melhores condições e que dignifiquem a morna e os seus executantes de forma merecida, respeitada e profissional, pois se continuarem o amadorismo que se verifica atualmente, acabarão por se extinguir e com eles extinguir-se-á também um pouco da nossa história”.


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