João Ferreira Lopes
18 Mar 2021

João Ferreira Lopes

Nasci a 3 de janeiro de 1929 em Cabo Verde. Chamo-me João Ferreira Lopes. Saí de minha terra a 10 de janeiro de 1959 e cheguei à ilha do Príncipe sete dias depois. A 18 de janeiro estava a desembarcar do Alenquer na ilha de São Tomé. A roça que me calhou em sorte foi a Uba Budo. Fiquei na dependência Bindá. Lá trabalhei durante onze meses e vinte sete dias. Acabei por lutar com um branco e tive de me vir embora, de castigo. Precisamente onze meses e vinte sete dias depois estava outra vez a lutar com um outro branco, na marcação da Roça Pinheira. Então, enviaram-me para a corregedoria. Era no tempo do Raul Brandão. 

Todos os dias tínhamos que carregar com um vagão de estrume. Esse estrume era utilizado como fertilizante para os cacaueiros. Certo dia, tive que levar o estrume para uma zona muito distante e isolada no coração do mato. Grande parte do dia passei-o no caminho, a arrastar o vagão até aos cacaueiros. Quando lá cheguei, como o dia estava a terminar, resolvi não voltar à roça e trabalhei toda a noite a espalhar o estrume no mato. Estava tão cansado que me encostei a um cacaueiro e adormeci. Quando me apercebi, já o dia começava a nascer. Ouvi os galos muito ao longe a cantar. Subi ao pé do cacaueiro para ver onde estava. Percebi que tinha trabalhado fora de horas. Fiquei aflito, pois naquela época havia contratados que estavam fugidos no mato e, por isso, fiquei com medo que me confundissem com algum deles. Comecei a ver outros contratados a aproximarem-se para iniciarem o seu dia de trabalho, comandados pelo feitor geral. Dirigi-me a ele e disse-lhe que já tinha terminado a minha tarefa e que iria regressar à sanzala. Disse-me que não podia. Insisti que já tinha feito o trabalho fora de horas e que era justo poder descansar. Ele não aceitou os meus justos argumentos e deu-me com um bastão que sempre o acompanhava. Fiquei irado e disse-lhe que, nem ele, nem ninguém no mundo tinha o direito de me bater. Refutei afirmando que tinha sido contratado para fazer um trabalho e que já o tinha feito. Voltou a levantar o bastão contra mim e eu comecei a lutar com ele. Acabámos embrulhados no chão numa luta violenta. Consegui ficar por cima dele e imobilizar-lhe a cabeça. Agarrei numa pequena pedra que usávamos para travar os vagões de estrume e bati-lhe vezes sem conta. Entretanto ele também ia ripostando com murros e pontapés. Deixei-o num estado lastimoso. Voltei para a roça a pé e ele no todo-o-terreno. Estávamos todos sujos e feridos. Fui obrigado a entrar no escritório do patrão, mas quando ele viu o nosso estado, não nos deixou entrar. O branco teve ordem imediata para ir para o hospital. Ficou por lá um mês e quinze dias. Eu fiquei a contar a história ao patrão. Não me mandou embora sem antes me dar uma dúzia de palmadas de palmatória, daquelas bem grossas, de sete buracos. Quando uma daquelas nos batia nas mãos, não sabíamos se estávamos vivos ou se era já o purgatório. Depois fui para a sanzala, tomar banho. Na altura não havia toalhas de banho. Usávamos uns sacos que eram usados para embalar a farinha que vinha de Angola e que amarrávamos à cintura. Vesti uma roupa lavada e fui dormir. Ao outro dia, a polícia veio-me buscar para me levar à corregedoria. Fui acompanhado por três guardas que me levaram para o centro da cidade. Eram mais de duas horas de caminho… a pé! Daí fui para a cadeia onde fiquei onze dias. Quando saí da prisão deixaram-me em Santo Amaro, para aí terminar o contrato. 

Quando esse primeiro contrato terminou, voltei a fazer um novo e vim para o Príncipe, onde já vivia a minha mãe. Aqui trabalhei na roça Francisco Cabral, Lda. que, entretanto, desapareceu. Em 1996, venderam a roça a uma pessoa daqui da terra e, passado algum tempo, como essa pessoa não sabia gerir o negócio, acabou por fechar a roça e não pagou os salários a ninguém. O caso está há 17 anos em tribunal e ninguém resolve o destino dos nossos salários, férias e indemnizações. Tive que refazer a minha vida a partir do nada. Hoje vivo de umas coisitas que vou vendendo no alpendre da minha casa e de uma pequena lavra que eu e a minha mulher cultivamos para sobreviver.

Cidade de Santo António – Ilha do Príncipe


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