Lígia Dias Fonseca — Dedicação e trabalho em prol do bem-estar social

Lígia Dias Fonseca — Dedicação e trabalho em prol do bem-estar social

Lígia Dias Fonseca nasceu em Moçambique, na cidade da Beira, em 1963. O seu pai, político e conceituado advogado moçambicano, cedo lhe incutiu os valores pelos quais se havia de reger ao longo da vida e com os quais adotou como uma forte consciência política do papel que os cidadãos desempenham na sociedade. Em 1976, devido às conturbadas condições políticas, a família abandona Moçambique e instala-se em Lisboa, no entanto, para Lígia Fonseca, África esteve sempre presente. 

 

O que recorda da sua infância em Moçambique?

Cresci a ouvir o meu pai a defender a necessidade da Independência de Moçambique e, depois, a lutar pela democracia do país. Foi neste quadro de valores que acabei por crescer e formar a minha personalidade.

Na educação que recebi dos meus pais não havia distinção de género no que respeitava à educação. Eu e as minhas duas irmãs, recebemos exatamente o mesmo tipo de valores que o meu irmão. No entanto, quer eu quer elas, tínhamos mais obrigações. Para além dos valores que também eram incutidos ao meu irmão da responsabilidade nos estudos, tínhamos ainda que aprender a cozinhar, tomar conta e organizar a lide doméstica. A firmeza e a determinação da minha mãe não admitia um “não consigo fazer”. No mínimo, tínhamos que tentar fazer! Era uma família muito estruturada, com os meus pais sempre muito atentos ao nosso desenvolvimento. Ainda hoje, são esses os valores pelos quais me guio e que tento sempre manter presentes.

Depois de sair de Moçambique fui viver para Portugal, mas os odores de África permaneceram no meu imaginário. As minhas lembranças estão muito relacionadas com o olfato. Lembro que, quando saí de Moçambique, em 1976, os cheiros vieram todos na minha memória. Só voltei a África em 1991, quando vim para Cabo Verde. Quando cá cheguei, a primeira coisa que procurei foram os cheiros de África que tantas saudades me davam… A manga, o caju, as comidas cozinhadas a lenha no meio do mato, o próprio cheiro da terra molhada da chuva, das árvores, e do clima. Infelizmente, em Cabo Verde, não encontrei todos esses cheiros que guardo na memória.

Lígia Dias Fonseca

Como foram os primeiros tempos em Lisboa, longe da sua amada África?

Esses tempos em Lisboa foram essencialmente tempos de passagem. Todos os dias renovava a minha esperança de regressar à Beira. Durante anos e anos, vivi com a certeza de que chegaria o dia em que iria regressar a casa, e assim, os anos foram passando. Acabei por ir ficando e fiz o meu curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.

Foi em Lisboa que conheceu o seu marido?

No 4º ano do curso tive um professor de Direito Penal que era cabo-verdiano. Se não me engano, era o único africano na Faculdade de Direito e, por isso, motivo de orgulho de todos os estudantes africanos. Esse professor era o Jorge. Terminei o meu curso em 1987 e, a 26 de março de 1989, casei-me com ele. Depois do casamento, fomos viver para Macau, onde o meu marido tinha sido colocado como diretor do 1º Curso de Direito da Universidade de Macau.

Em Macau trabalhei num departamento da Administração ligado à modernização legislativa. Foi uma experiência interessante, principalmente porque era muito nova e pelo facto de, por duas vezes, ter sido designada para representar o meu departamento em encontros internacionais. Um desses encontros foi em Cuba e tenho bem presente o ar espantado de Fidel Castro a perguntar como é que Macau, na China, estava representado por duas mulheres, uma preta e outra loira. Lá lhe explicámos que Macau estava sob a Administração de Portugal e que eu tinha nascido em Moçambique, uma ex-colónia portuguesa.

Lígia Dias Fonseca

Na altura que conheceu o seu marido o que sabia sobre Cabo Verde?

Quando conheci o Jorge comecei também a conhecer a verdadeira alma cabo-verdiana. Com ele comi o meu primeiro prato de cachupa refogada às 3 da manhã, aprendi (não muito bem) a dançar funaná, coladeira e apaixonei-me pelo batuque. Descobri a literatura das ilhas, Eugénio Tavares, a voz poderosa do Bana e sentia-me profundamente amada quando aprendi a expressão «a-mi m kre-u tcheu». Mas, com ele, por sermos obrigados a estar fora da nossa terra, também partilhei a sensação de faltar alguma coisa. Estando os dois ligados ao Direito tínhamos muitos interesses comuns e, acima de tudo, comungávamos dos mesmos ideais de liberdade e democracia.

Como foram os primeiros tempos em Cabo Verde?

Cabo Verde é uma outra África feita de misturas e, como tal, é único. As lembranças que trazia de Moçambique das vivências com os outros, dos convívios e da amizade, essas consegui-as todas encontrar em Cabo Verde. O afeto, o amor, o relacionamento das pessoas, o sabor das comidas, tudo isso foi continuado aqui, por isso é que eu me sinto em Cabo Verde perfeitamente integrada e realizada.

Foi aqui que iniciei a sério a minha carreira profissional de advogada. Tive de viajar por todas as ilhas e conhecer os costumes, tradições e morabezas de cada lugar. Naturalmente, sou uma pessoa de intervenção que procura fazer o que pode pelas causas em que acredita. Herdei este espírito do meu pai e com o Jorge fui desenvolvendo o sentido de que temos um dever de atuar com rigor, ambição, perseverança e contribuir para realizar o Estado mais justo, mais desenvolvido, com igualdade de oportunidades para todos. Assim, envolvi-me na criação de organizações sociais importantes como a Associação Zé Moniz e a Associação das Mulheres Juristas. Batalhei pela existência de uma Ordem dos Advogados e fui a sua primeira Bastonária, e muito lutei para que pudéssemos ter em Cabo Verde a primeira escola superior de Direito, o ISCJS, orientada e dirigida pelo Jorge até ser eleito Presidente da República.

Lígia Dias Fonseca

Como foi empreender a tarefa de Bastonária da Ordem dos Advogados de Cabo Verde?

O desafio de me tornar a Bastonária veio no momento da criação da própria Ordem dos Advogados. Tínhamos acabado de sair de um processo de eleições longo, com as legislativas e logo a seguir as presidenciais e as coisas estavam todas muito centradas numa determinada área. Então, como entendo o exercício da advocacia como sendo também um exercício de liberdade, falei com alguns colegas e decidi avançar com a minha candidatura. Foi uma candidatura única apoiada pela grande maioria dos advogados cabo-verdianos. Foi um período muito difícil pois a Ordem dos Advogados é como que um contrapoder. A nossa preocupação é assegurar os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos e isso, exige muitas vezes um confronto e uma oposição a determinadas ideias. Como era a primeira vez que havia uma Ordem dos Advogados no país, uma Ordem livre, autónoma e independente e cujos órgãos eram total e exclusivamente eleitos apenas pelos advogados, houve uma certa resistência inicial.Lígia Dias Fonseca

Considera que cumpriu os objetivos a que se propôs quando foi eleita Bastonária?

Penso que sim. Consegui que a Ordem dos Advogados fosse tida como uma instituição credível, com muita coragem, ao ponto de o meu sucessor ser um advogado de grande prestígio que foi durante dez anos primeiro-ministro de Cabo Verde. Isto quer dizer que, se a Ordem dos Advogados não se tivesse revelado como uma instituição respeitada na sociedade, com responsabilidades mas também com aptidões para mudar o que está mal, não tínhamos uma candidatura de peso como a que se verificou. A Ordem dos Advogados é atualmente uma referência no nosso panorama jurídico e no controlo da defesa dos direitos dos cidadãos e eu penso que também contribuí um pouco para que assim seja.

Quando, em 2011, o seu marido venceu as eleições e se tornou Presidente da República, o que mudou na sua vida?

Na verdade não mudou muita coisa. Continuo a viver no mesmo local, a trabalhar como advogada, conduzo o meu carro, vou às compras, organizo os passeios da família, continuo a fazer tudo o que fazia antes. Tenho, agora, é mais outras obrigações e outras solicitações. Já sabia que seria assim, pelo que tento fazer tudo de forma a não prejudicar a atenção à minha filha e a não descurar os compromissos que assumo. A grande diferença é ao nível do tempo disponível do meu marido, uma vez que, as obrigações de um Presidente da República são bastante exigentes e absorvem muito do tempo que, anteriormente, era dedicado à família. A responsabilidade, obviamente, também mudou. Em qualquer lado que hoje entramos as pessoas não veem a Lígia e o Jorge. Quem veem é o Presidente da República e  a Primeira-dama, e isso acarreta responsabilidades, pois temos sempre presente que representamos o país e temos que o fazer de forma condigna e que suscite o respeito de todas as pessoas. Tudo o resto se mantém como antigamente.

Mas só podemos continuar a fazer as mesmas coisas que fazíamos antes do meu marido ser eleito Presidente da República porque, graças a Deus, Cabo Verde é um país de paz e brandos costumes. Acabamos por ser menos violentos que outros povos e, felizmente, por este motivo, posso continuar a fazer a minha vida da forma que a fazia antes de o meu marido ser o Presidente da República de Cabo Verde.

É fácil, para uma mulher tão dinâmica e ativa nos seus próprios projetos, acompanhar o percurso político que o seu marido tem feito?

É fácil de acompanhar quando se gosta. Costumo dizer que gosto de política. A ação política é uma atividade  muito nobre e pela qual tenho muito respeito. Tenho pena de nunca ter sido deputada da Nação, que do meu ponto de vista é o cargo político por excelência. Como sou uma mulher que gosta de acompanhar o que se passa no mundo da política, seja ela nacional ou internacional, acaba por ser fácil acompanhar e partilhar o percurso político que o meu marido tem feito ao longo dos anos.

Este “acompanhar da política” tem muito a ver com a influência que a mesma exerce sobre o quotidiano das pessoas. É impensável, para mim, saber que há pessoas com dificuldades e eu ficar indiferente. Por isso, gosto de acompanhar o desenvolvimento político nacional, com especial relevo para os assuntos que dizem diretamente respeito às questões sociais. Vivo os problemas da sociedade pois não me isolo dela. A situação de bem-estar económico que, felizmente e fruto das nossas profissões, sempre tivemos, nunca me afastou, quer a mim quer ao meu marido, de gostarmos de andar pelas ruas a pé, de irmos ao café, de frequentarmos os jardins e tudo o que são espaços públicos da cidade da Praia e, por isso, sabemos o que preocupa as pessoas, o que as anima e o que aspiram.

Lígia Dias Fonseca

Quais as funções da Primeira Dama?

Nós não temos um estatuto legal que defina as funções, obrigações e direitos do cônjuge do Presidente da República. As coisas vão-se fazendo ao acaso, muito na base do que era dantes, e nunca houve uma preocupação de definir juridicamente esta situação. Entendo, e como jurista não posso ignorar, que num Estado de Direito democrático as funções públicas devem estar definidas na lei e o uso de bens e serviços do Estado tem de ter uma base legal. Ora, isto não tem merecido a atenção devida e, muitas vezes, cria situações difíceis de gerir. Principalmente porque as pessoas olham para uma Primeira-dama e pensam que ela tem meios públicos para afetar às solicitações que lhe são colocadas pelos cidadãos. Por isso, não raras vezes, as chamadas primeiras damas optam pela criação de fundações, tendo assim uma instituição que lhes sirva de apoio para a realização das suas atividades.

Não obstante a falta de definição legal, a verdade é que os cidadãos recorrem à «Primeira-dama» pedindo a sua ajuda nas mais diversas situações. Eu recebo solicitações por carta, telefone, Facebook, na rua e em eventos públicos, e marcações diretas na Presidência da República. Tento, e penso que tenho conseguido, atender a quase todos os pedidos das pessoas que desejam falar comigo.

E em que áreas lhe pedem para intervir?

A maior parte dos pedidos feitos pelos jovens têm a ver com as dificuldades no pagamento das propinas para continuar a frequentar o ensino superior e com a procura de um emprego. Com os próprios interessados, vejo cada situação concreta e encaminho para as entidades que entendo que poderão dar uma resposta positiva ao pedido. Quando isso não é possível, sempre vou aconselhando algumas atitudes a tomar, a desenvolver algum projeto dentro das competências já adquiridas, enfim, procuro juntamente com a assessora do Presidente da República destacada para me apoiar encontrar uma forma de ajudar estes jovens. Como disse, a ajuda na maior parte das vezes é na forma de conselhos. Também sou procurada por pessoas que têm problemas familiares, com os filhos, com os cônjuges, pessoas que já me ouviram em algum lado e que confiam que podem encontrar um conselho, um conforto conversando comigo.

Lígia Dias Fonseca

Outro tipo de ações que me solicitam é para ser madrinha de novos projetos, associações e eventos, na certeza de que o meu interesse e a minha presença ajudarão a captar mais atenção para essas atividades. Naturalmente que, sempre que são projetos de cariz social, não hesito em aceitar o convite e de participar empenhadamente nas atividades. Entendo que, se a minha pessoa é útil para dar mais visibilidade aos projetos e mesmo para credibilizá-los, então podem contar comigo. O meu lema é: o papel da Primeira-dama é estar ao serviço dos cidadãos, em especial dos que mais precisam.Por outro lado, eu própria uso a influência que o estatuto de Primeira-dama me dá para criar algumas oportunidades. Por exemplo, temos desenvolvido um projeto que proporciona às crianças a oportunidade de visitarem os navios cruzeiros que atracam aqui no porto da Praia. É uma alegria ver as crianças dentro de um navio desses que parece um hotel, com piscinas e restaurantes e lojas. Elas ficam deslumbradas. Desde o início do mandato do meu marido que temos levado sistematicamente crianças ao palácio para conhecerem onde trabalha o Presidente da República. É uma forma de elas começarem a tomar consciência de que a Presidência da República é um espaço do Povo e quem lá trabalha é para servir o Povo e deve prestar contas ao Povo, porque foi o Povo que o elegeu.

Finalmente, outro tipo de ações que desenvolvo é o de estabelecer ligações entre as pessoas. Há pessoas que têm projetos interessantes, ideias bastante boas e que precisam de alguém que confie nelas e que aceite o desafio de investir nos projetos, nas ideias. Por outro lado, há pessoas e empresas que estão dispostas a aceitar novos desafios, que querem inovar, que desesperam por ideias originais. Ora, eu procuro estabelecer o contacto entre estas pessoas e essas entidades.Sempre que viajo para o estrangeiro ou sei que me vou encontrar com potenciais investidores ou entidades financiadoras de projetos, levo comigo os projetos que me entregaram para divulgar e procurar financiamentos. Já tivemos alguns casos de sorte. Sei que, felizmente, o meu nome e a postura profissionais que emprego nos projetos a que me dedico têm ajudado muito neste aspeto.

Embora não tenha sido eleita, a Primeira-dama representa muitas vezes o marido e representa papéis que são melhor entendidos pelo facto de ser mulher. Considera que há vantagens em, mesmo provisoriamente, poder intervir na vida política do país em representação do Presidente da República?

Em nenhuma circunstância oficial represento propriamente o Presidente da República mas, sempre que sou convidada para presidir um ato público, as minhas mensagens procuram transmitir o pensamento e as ideias que o Presidente da República defende nas matérias em questão. É uma forma diferente de dar a conhecer também o pensamento do Presidente da República e de levar a sua mensagem a locais onde, por falta de tempo, muitas vezes ele não pode ir.

Lígia Dias Fonseca

O facto de, mesmo após se ter tornado Primeira-dama de Cabo Verde, ter continuado a exercer advocacia não poderá criar situações de conflitos de interesse?

Nada como a prática para nos ensinar determinadas coisas. Hoje tenho uma perceção diferente desta situação da que tinha em 2011. Há muitas situações em que eu própria sinto, não um conflito de interesses, mas mais uma preocupação com a imagem do Estado. Como advogada estou muitas vezes em defesa de uma parte contra outra. Mas as duas partes são constituídas por cidadãos nacionais. Porque é que um é representado pela Primeira-dama e o outro não?

Há várias situações perfeitamente legais mas que, porque me preocupo com a imagem institucional do Estado, me deixam pouco confortável. Porém, eu não tenho alternativa. Como lhe expliquei, não existe nenhum estatuto legal da Primeira-dama e se eu não trabalhar não tenho como cuidar da minha família da melhor maneira. Assim, vou restringindo o exercício da advocacia aos atos que, de acordo com a minha consciência, não atinjam a imagem do Estado.

Ser esposa do Presidente da República não cria condições para favorecer a visibilidade dos problemas sociais que afetam as mulheres cabo-verdianas?

O facto de ser mulher acaba por ajudar a colocar na agenda do Presidente da República questões que nos afetam de forma particular. Tendo as mulheres ainda pouca expressão política, é importante que a Primeira-dama tenha esse papel de conselheira para as questões que nos dizem particularmente respeito e que, muitas vezes, até poderiam passar despercebidas num mundo onde são ainda os homens que tomam a maior parte das decisões. Num casal que partilha os mesmos ideais, que tem um percurso de vida conjunto sempre a lutar pelas mesmas ideias de liberdade e justiça, é natural que, entre nós, se discutam as questões nacionais que preocupam, em determinado momento, o Presidente da República. Se a minha opinião acaba por ajudar o Presidente da República a tomar determinadas decisões, eu encaro-o como uma situação normal. A influência que as Primeiras Damas têm sobre os maridos, é algo que é transversal, uma vez que são elas as primeiras conselheiras dos Presidentes da República.

Lígia Dias Fonseca

Ao nível da minha atividade, enquanto esposa do Presidente da República, tenho noção que as pessoas querem ouvir uma extensão do que é o pensamento do Presidente sobre determinado assunto. Se me convidam para uma conferência ou para um evento específico, cabe-me a mim transmitir, nessas ocasiões, qual a mensagem e as preocupações do Presidente da República sobre o assunto em discussão. Por outro lado, tenho o dever de levar as preocupações e as opiniões das pessoas sobre esses assuntos ao conhecimento do Presidente da República. Muitas vezes, acabo por servir de mensageira de ambas as partes. No entanto, apesar do Presidente da República me poder ouvir, ouve igualmente outros conselheiros e, no fim, de acordo com a sua forma de pensar, toma as suas decisões.

Hoje fala-se muito do empoderamento da mulher e do rigor e disciplina que empregam na execução das suas tarefas. Pensa que as mulheres têm, em Cabo Verde, o devido reconhecimento social e político?

Quando se chega a determinado nível, concretamente quando se atinge o patamar de decisão, entende-se que os homens estão mais bem capacitados. Privilegia-se ainda as mulheres ao nível da execução e da gestão mas, o mesmo não acontece ao nível da decisão. Como é óbvio, este comportamento é altamente questionável. Em Cabo Verde, felizmente, ao nível de cargos de chefia máxima, temos mulheres a desempenharem as suas funções com tão ou mais competência que muitos homens. Pela sua visibilidade e por aparecerem mais nos espaços públicos, quando se pensa num nome para um alto cargo de chefia, pensa-se imediatamente num homem, mas nem sempre esta decisão é a melhor.

Devido às suas várias responsabilidades familiares, as mulheres aparecem menos nos espaços públicos o que acaba por as penalizar ao nível da visibilidade. Há, por isso, que dar mais visibilidade às mulheres, pois elas desempenham os mesmos cargos tão bem ou melhor que os homens. Esta chamada de atenção é também para as mulheres, pois muitas vezes nós caímos na rasteira de olhar apenas para as figuras mais visíveis e, de uma forma geral, quem aparece mais são os homens. Há que analisar outras alternativas igualmente válidas. É importante que se abram espaços para as mulheres que, na retaguarda, desempenham as tarefas mais duras colocando-as nas linhas da frente, pois elas, muitas vezes, fazem a diferença.

Como Primeira-dama tem mantido uma intensa atividade ao nível dos problemas sociais. Fale-nos um pouco dos projetos sociais nos quais está envolvida.

Não tenho trabalhado numa só área social. Conforme as solicitações que vou recebendo, assim canalizo as minhas atenções, trabalhando em concertação com as associações e grupos que estejam já a trabalhar nessa área. Por exemplo, na qualidade de Madrinha de Honra das Aldeias SOS de Cabo Verde, tenho trabalhado na proteção das crianças em situação de vulnerabilidade e no fortalecimento das famílias. Com a Fundação Carlos Albertino Veiga, as preocupações são mais no âmbito da criação de oportunidades de formação superior para os jovens. Esta Fundação tem um programa de atribuição de bolsas de estudo no estrangeiro que tem sido um sucesso.

Lígia Dias Fonseca

Neste momento, estou a trabalhar com um grupo de pais de crianças com necessidades especiais que, juntamente com técnicos especializados nessa matéria, estão a criar uma associação de forma a conseguir-se um melhor apoio às crianças e às suas famílias. Há um longo percurso a percorrer no que toca ao efetivo apoio às crianças com necessidades especiais. Num outro âmbito, estou a desenvolver um projeto para combater a violência sexual e a exploração sexual das crianças e adolescentes. São muitas as queixas que tenho recebido sobre situações de aumento da violência sexual e, por isso, estou a contactar as várias organizações e instituições que têm, direta ou indiretamente, trabalhado nesta área para ver se definimos um plano de ação para atacar este problema em todas as suas dimensões.Tenho igualmente trabalhado junto da Organização das Primeiras Damas de África em programas de combate à SIDA. Temos um financiamento que é utilizado ao nível da sensibilização dos homens e dos jovens para a importância da sua saúde sexual e dos cuidados na prática sexual. Há um trabalho muito grande que tem vindo a ser feito com as mulheres, mas estava-se a descuidar a atenção nos homens. Graças a este programa, no qual tive intervenção direta, esta situação tem sido modificada.

A implementação deste tipo de projetos é sempre feita em parceria com organizações que já estão criadas em Cabo Verde e que, no terreno, têm meios de execução dos programas. Não nos substituímos a elas. Muitas vezes, são mesmo essas organizações que me abordam para colaborar ao nível da divulgação e da chamada de atenção para determinadas problemáticas. Esse também é um dos papeis que uma Primeira-dama pode e deve desempenhar: usar a sua imagem e credibilidade em prol de determinadas causas e problemas que afetam a sociedade.

Como é que a atual conjuntura económica mundial tem afetado o tecido social em Cabo Verde?

A atual conjuntura económica mundial tem trazido muitos constrangimentos pois, não tem permitido, a par, naturalmente, de fatores internos, um crescimento desejado da economia cabo-verdiana, capaz de reduzir o desemprego. A economia de Cabo Verde, como nós todos sabemos, é bastante dependente de parceiros externos, nomeadamente da União Europeia, região onde a crise tem sido mais intensa, trazendo como consequência, dificuldades para as empresas, para o Estado e para as famílias. Basta ver alguns setores da nossa economia para percebermos que a crise global também afetou grandemente o país. O imobiliário é um desses setores. É uma área de atividade que capta muita mão-de-obra e que é geradora de muito emprego. Muitos dos investimentos que estavam a ser canalizados para Cabo Verde deixaram de o ser, e este setor ressentiu-se bastante com a crise económica mundial. Havendo menos pessoas com menos poder de compra faz com que a sociedade se desenvolva a um ritmo inferior ao que anteriormente estava a acontecer. Este problema acaba por propagar-se aos outros setores da economia.

Esta conjuntura económica teve e continua a ter um impacto forte a nível de desemprego (cerca de 17%), particularmente, na camada juvenil (32%), com ênfase nos licenciados (19%). Assim, podemos dizer que praticamente todas as classes sociais foram afetadas por esta conjuntura, particularmente as camadas mais vulneráveis, por serem o grupo com menos capacidade financeira para fazer face às suas necessidades básicas. Como somos um país jovem, esta taxa de desemprego ao nível das camadas mais jovens da nossa população, acaba por nos causar outro tipo de dificuldades. Isto está inclusive na base de alguns problemas sociais com os quais Cabo Verde se começa agora a deparar.

Numa família, quando um dos seus membros perde o emprego, essa situação afeta todo o núcleo familiar, desde a estabilidade económica à estabilidade emocional e comportamental.No entanto, somos um povo habituado a enfrentar dificuldades, como tal, temos que olhar para este problema como mais uma dificuldade que teremos de ultrapassar. Temos de procurar outras fontes de apoio e, ao nível de recursos internos, analisar o que podemos maximizar. Há áreas de investimento interno que são geradoras de maior emprego que outras, por isso, deverá ser nessas áreas que nos devemos focar. Por outro lado, analisar a nível mundial como é que podemos expandir as nossas ofertas para outros mercados menos tradicionais, tornando-as mais atrativas à captação de investimentos externos.

Lígia Dias Fonseca

Como pode o país responder à problemática do desemprego e à crescente violência juvenil?

Não podemos relacionar o fator desemprego com a violência juvenil, pois não há entre eles uma relação direta. Como tinha referido anteriormente, uma das vias para resolver o problema do desemprego é a capacitação escolar e profissional dos jovens, porém, o aspeto fundamental prende-se com o crescimento sustentado da economia. Sem este crescimento nada será possível neste domínio. A experiência de outros países mostra isso com eloquência.

Ainda que não exista uma relação direta entre o desemprego e violência juvenil, é indiscutível que a associação do desemprego à pouca oferta de ocupação dos tempos livres, ao uso de substâncias psicoativas e poucas perspetivas para o futuro, facilita o aparecimento de condutas e comportamentos desviantes ou violentos. Assim, o equacionamento destas questões passa pelos aspetos anteriormente abordados, relacionados com o desemprego juvenil, a ocupação dos tempos livres e as problemáticas do consumo de substâncias psicoativas.

No outro extremo estão os idosos. Cabo Verde tem programas e mecanismos capazes de protege-los?

As estruturas existentes, que desenvolvem um trabalho meritório, são insuficientes, pelo que devem ser reforçadas e dinamizadas.Uma parte dos idosos cabo-verdianos aufere rendimentos suficientes para levarem a sua vida minimamente aceitável, mas uma larga maioria, infelizmente, vive com bastantes dificuldades, cabendo aos seus filhos suprir as suas necessidades económicas, a par de outros cuidados e afeto de que precisam para envelhecer com dignidade e qualidade de vida, satisfazendo as suas necessidades e ter uma vida condigna.

A realidade tem mostrado que, para as famílias cabo-verdianas, tem sido cada vez mais difícil garantir essas condições aos seus idosos, sendo obrigadas a recorrer aos centros de dia ou lares, ainda insuficientes.Hoje, as famílias tendem a “descartar-se” dos mais idosos. É, por isso, fundamental apostar-se naquilo que sempre foi a nossa essência cultural: a família cuidar dos mais velhos. Em vez de se procurar soluções que passem por encontrar locais para deixar os mais idosos, penso que o ideal seria criar-se condições para que as famílias mantenham os mais velhos integrados no seio familiar. Eles são uma mais-valia importante para a coesão familiar: ajudam a tomar conta das crianças, transmitem aos mais novos os conhecimentos e são um fator de unidade familiar. Através dos mais velhos é que se transmite aos mais novos a memória e os valores da família, e isso é muito importante para a saudável estruturação familiar. Por isso, só temos a ganhar se conseguirmos demonstrar às famílias as vantagens de ter os seus mais velhos junto deles.

Considerando a grande vulnerabilidade da saúde dos idosos, uma atenção especial deve ser concedida aos programas de prevenção e tratamento de doenças crónicas que mais os afetam. Também, deverão existir programas específicos para os beneficiar a nível da acessibilidade aos serviços públicos e privados, assim como à garantia da sua sobrevivência, pois a pensão social de velhice (5.000$00 mensal) é insuficiente para que os idosos vivam com a dignidade que merecem. Seria desejável que se avaliasse a possibilidade de ampliar o número de beneficiários bem como o montante atribuído. Grande parte destas preocupações está contemplada na Carta da Política Nacional para a Terceira Idade aprovada em 2011, instrumento da maior importância que deve merecer todo o apoio do Estado e da Sociedade para a sua efetiva concretização.

Lígia Dias Fonseca

 

Cabo Verde passou a ser considerado um país de rendimento médio e, como tal, viu cortados alguns apoios internacionais que eram o garante de muitos dos projetos sociais de apoio aos mais desfavorecidos. No seu entender, o país tem capacidade por si só de poder manter estes programas ou correrá o risco de agravar as desigualdades sociais?

O agravamento das condições sociais tem sido uma realidade, em razão da redução dos referidos financiamentos. Penso que parcerias para fazer face a essas situações devem ser procuradas, porque existem várias instituições públicas e organizações da sociedade civil que têm trabalhado em prol dos cidadãos, especialmente com programas direcionados para aqueles que vivem em situações de iniquidades e desigualdades sociais. Posto isto, penso que o Governo e a sociedade civil devem prestar assistência a essa franja da população, enquanto paralelamente se trabalha o seu empoderamento.O trabalho deve ser feito em rede e os esforços partilhados, com vista a evitar a duplicação de ações e assim abranger o maior número possível de pessoas e desta forma promover um bem-estar e social a todos. Penso que devemos ter tudo isto em devida conta pois, os Direitos Sociais, são também direitos fundamentais do Homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida de todos, com vista à concretização da igualdade social, um dos princípios fundamentais do Estado Democrático, conforme consagra a nossa Constituição da República

Qual o contributo da mulher cabo-verdiana para a construção do país?

A mulher cabo-verdiana é a maior força deste país. Ela é parte integrante do desenvolvimento social. Se outrora as mulheres eram consideradas úteis apenas para cuidar dos filhos, executar as tarefas domésticas, aliás, infelizmente, ainda muitas são tratadas assim, neste momento são consideradas pilar de desenvolvimento do país.

As mulheres têm conquistado o seu espaço em várias esferas, nomeadamente nas esferas económica, social e política. Porém, apesar de tais conquistas, as iniquidades e desigualdades de género ainda persistem. Urge medidas ou programas de suporte às mulheres trabalhadoras, seja do setor formal, seja do informal, com serviços de apoio às crianças no período escolar e extraescolar. Neste particular, é urgente aumentar a inclusão ao nível pré-escolar que tende a excluir, precisamente, as crianças provenientes das famílias mais carenciadas; reforço de programas capazes de propiciar trabalho e rendimento às mulheres chefes de família que têm crianças e idosos a seu cargo, sobretudo em tempos de crise económica; criação de infra-estruturas de apoio às famílias, como as creches, redes de transportes públicos e regimes de flexibilização do horário de trabalho, adoção de programas de facilitação de aquisição ou reabilitação de habitação por parte das mulheres, como contributo para a resolução de um dos problemas mais agudos por que passam hoje as famílias cabo-verdianas. Igualmente, é necessário que se dê mais atenção aos vários problemas que afetam as mulheres tais como violência baseada no género, violência sexual, desemprego, empregos precários e com baixo rendimento, etc., com consequências visíveis nas famílias e em particular na sociedade em geral.

Lígia Dias Fonseca

Como Primeira-dama de Cabo Verde que projetos gostaria de desenvolver e que ainda não teve a oportunidade de concretizar?

Há alguns anos que tenho uma ideia que gostaria de executar nas nossas escolas secundárias: programas para desenvolver a capacidade de liderança das jovens mulheres. Sendo a nossa população maioritariamente feminina é preciso que as nossas lideranças, políticas, empresariais, sociais, reflitam isso. Seriam programas que ajudariam as raparigas a conhecer os seus direitos no seu todo. Não só saber que homens e mulheres têm direitos iguais, mas saber em que consiste essa igualdade e que ela se constrói em todos os momentos da vida. Ensinar a arte de falar em público, de argumentar. Ensinar a história das mulheres que têm marcado a nossa civilização. As mulheres precisam de aumentar a sua autoestima e de saber usar as suas próprias capacidades.

Para isso precisam de conhecimento, de formação e de treino especialmente vocacionado para as competências de liderança. Só o conhecimento pode libertar, por isso, é importante transmitir esse conhecimento aos mais jovens, em particular às mulheres.

Com tantas lutas e conquistas que tem travado ao longo da vida, qual foi o seu maior feito até ao momento?

Todo este percurso de lutas, sucessos e derrotas, só ganhou efetivamente importância quando soube o que era ser mãe. Tenho uma única filha, que nasceu 20 dias antes de eu completar 40 anos e que constitui o maior de todos os meus feitos e que me transforma cada dia numa pessoa um pouco melhor.

Lígia Dias Fonseca

Que mensagem deixa a todos os cabo-verdianos e em particular às mulheres?

É uma mensagem essencialmente de esperança. Podemos estar a viver momentos conturbados e de dificuldades ao nível económico e social, mas temos de acreditar que, através da tomada das melhores decisões, acabaremos sempre por os ultrapassar, pois somos um povo que, apesar das dificuldades, gostamos uns dos outros e acabamos por nos ver sempre como uma grande família e as famílias, quando permanecem juntas, acabam sempre por vencer as dificuldades.

A história de Cabo Verde tem mostrado que tem sido sempre assim. Pode demorar mais tempo, mas conseguimos sempre alcançar os nossos objetivos, elevando sempre bem alto o orgulho de sermos um povo unido e corajoso.<

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