Assim nasceu a morna “Sodade”
16 Ago 2016

Assim nasceu a morna “Sodade”

Alberto Francisco Cabral é o mais famoso contador de histórias da Praia Branca. O respeito e admiração que lhe conferem os seus 78 anos de idade, fazem dele uma autoridade na matéria. Homem viajado, percorreu muitos países a bordo dos navios por onde ia trabalhando, principalmente na Europa e no Brasil. Fica o lamento de nunca, nessas viagens, ter conhecido as ex-colónias portuguesas, e uma em particular: São Tomé e Príncipe, o destino de muitos dos que partiam de São Nicolau em busca de melhores oportunidades. É numa dessas despedidas que Alberto Cabral ouve pela primeira vez cantar, da voz do seu autor, a morna “Sodade”, talvez a música cabo-verdiana mais conhecida em todo o mundo. É a história dessa mesma morna que Alberto Cabral tem hoje para nos contar.

 

Lembro-me como se fosse hoje. Viviam-se tempos difíceis em Cabo Verde. Para fazer face à miséria que reinava por estas terras, a única saída possível e facilmente alcançável era partir para S. Tomé e Príncipe como contratado, numa situação que pouco se diferenciava da dos escravos de outrora. Em alternativa à morte certa dos desafortunados que viviam à sombra dos senhores feudais, o mar era o único caminho e S. Tomé e Príncipe o único destino. O Governo Colonial, para responder à necessidade de mão-de-obra nas outras colónias africanas, encorajava os cabo-verdianos à emigração, concedendo-lhes facilidades para a sua instalação nessas terras longínquas, longe de tudo e de todos. Contudo, essa “facilitação” foi-lhes imposta por decreto. Determinava que todo o indivíduo que não pudesse prover o seu sustento poderia ser deslocado para outro território ultramarino. Dadas as carências que se verificavam em Cabo Verde, a vantagem competitiva dos cabo-verdianos como mão-de-obra barata e facilmente disponível era evidente.  

Na verdade, o contrato para São Tomé era um recurso imposto pelo desespero da fome. Só acontecia quando o camponês já não tinha meios de sobrevivência para si e sua família. Era a única solução depois de vender o pedaço de terra herdado dos antepassados e as telhas da casa onde morava a família toda, isto para os casos raros de pessoas que tinham casas de telha pois a grande maioria morava em casas cobertas de palha, construídas nas terras do morgado. Chegado a esse ponto, a única saída era procurar os funcionários da SOEMÍ (Sociedade de Emigração), para se inscrever na lista dos que deviam seguir no primeiro barco para S. Tomé e Príncipe. Assinado o contrato, recebiam uma certa quantia em dinheiro chamada “avanço” como prova de assunção de um compromisso irreversível. Com essa quantia, o contratado garantia o sustento da família até à data da partida para as ilhas verdes do Equador. A segunda prestação do valor do contrato só era entregue no momento do embarque. Dessa importância, metade ficava com os membros da família que não conseguiram um contrato, e a outra metade ficava com o seu dono, para as primeiras despesas, logo após a chegada.

Por vezes, lá ia uma leva de serviçais para Angola ou Moçambique. Todavia, o mesmo barco tinha que passar por S. Tomé e Príncipe, a fim de ali deixar parte do pessoal que perdera o barco anterior. Durante a viagem, enquanto os que se destinavam a Angola e Moçambique dançavam no porão ao som do funaná — porque a sorte lhes abrira uma porta de entrada a essas benditas terras — os que deviam ficar em S. Tomé, cabisbaixos, choravam a sua desdita. Alguns destes últimos, particularmente os oriundos de S. Vicente, alimentavam a esperança de se misturarem com os compatriotas que a sorte indicara o caminho de Angola e Moçambique, logo que as costas da Serra Leoa e da Libéria aparecessem a dizer que S. Tomé estava próximo.

Era no “Benguela” que muitos dos cabo-verdianos deixam a sua terra. Verem aproximar-se do porto da Preguiça os fumos emanados pelas caldeiras desse velho navio a vapor, significava que a partida estava próxima. Era o momento de chorar as poucas lágrimas que ainda restavam.

Corria o mês de maio de 1954. A tristeza que pairava na ilha era omnipresente. Estava para partir mais uma leva de sanicolausenses. Tinham plena certeza que iriam partir; levavam consigo a esperança de um dia poderem regressar.  No dia da partida, os contratados reuniram os parcos haveres que ainda possuíam e que os haveriam de acompanhar na tão triste viagem. Para minimizar a dor da separação, a população de Praia Branca despediu-se em festa dos seus filhos. Armando Zeferino, um comerciante local com talento para a música, juntou-se-lhe para lhes prestar uma sentida homenagem. Na altura tinha 34 anos de idade. Fazia-se acompanhar pelos seus companheiros de serenatas e tocatinas. Chegados ao Portal, nos limites de Praia Branca, despediu-se dos amigos com uma morna nunca ouvida até esse momento. Fez-se silêncio e Armando Zeferino Soares cantou de forma emocionada o seu tema “Sodade”.  Dali até Preguiça, onde o “vapor” aguardava os contratados, a morna não mais deixou de ser cantada e, tal como os antigos contratados, saiu para mundo. 

 

Os seus versos, 

Quem mostra’ bo

Ess caminho longe?

Ess caminho

Pa Sã Tomé

Sodade

Dess nha terra d’Sã Nicolau

Si bô ‘screvê’ me

‘M ta ‘screvê be

Si bô ‘squecê me

‘M ta ‘squecê be

Até dia

Qui bô voltá

 

haveriam de ser imortalizados, em 1992, na voz de Cesária Évora. “Sodade”, tornou-se assim numa das marcas de Cabo Verde e para sempre será considerada como património de todos os cabo-verdianos.


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