18 Ago 2016
Voltar a apostar no ensino técnico e profissional
António “Toy” Alves nasceu, fruto de um “coincidência”, em Lisboa, mas é em São Nicolau que tem as suas raízes e onde tem passado grande parte da vida. Filho de pai português e mãe cabo-verdiana, António Alves viveu toda a sua infância na vila da Ribeira Brava, junto com os pais. Concluídos os estudos do ensino primário, o pai — comerciante e pessoa querida em São Nicolau — enviou-o para São Vicente, para frequentar o liceu. Ali passou oito anos. Depois partiu para Portugal, para se formar em Agronomia, mas quis o destino que tal não acontecesse. O serviço militar obrigou-o a passar cinco anos na Guiné terminando assim o sonho de um dia poder ser técnico de equipamentos agrícolas. “Estudei na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém — na altura uma das melhores escolas profissionais do mundo. Era lá que me sentia realizado. Ainda hoje guardo com saudade os valiosos ensinamentos que absorvi e que se serviram para toda a vida”, lembra António Alves.
Findo o serviço militar e após a morte do pai, o jovem António viu-se forçado a regressar a São Nicolau, não como agrónomo, mas como comerciante. Havia que continuar o negócio da família e a sua presença era obrigatória. No entanto, o comércio nunca o motivou, e foi contrariado que se resignou à atividade. “É uma área onde não me sinto realizado. Faço-o bastante contrariado pois não me sinto motivado para a atividade comercial, mas a vida prega-nos algumas partidas e, mesmo sem qualquer aptidão para o comércio, tive que assumir as responsabilidades do negócio que herdei dos meus pais.”
O desinvestimento no património histórico e cultural de São Nicolau
É com satisfação que António Alves tem registado as inúmeras mudanças verificadas nos últimos anos na Ribeira Brava, contudo, se por um lado encara como positivo o desenvolvimento económico e social registado, por outro, é com bastante desagrado que observa os retrocessos que se têm sentido ao nível da preservação do património cultural e arquitetónico em São Nicolau. Tal como afirma, “com a independência, São Nicolau perdeu o protagonismo que outrora tivera. A história de São Nicolau começa no Carriçal e termina na Ribeira Prata. Toda a ilha tem história. Se falarmos em desenvolvimento económico, temos que falar na maior baía de Cabo Verde, a Baía de São Jorge, que encerra cinco portos de mar — Porto da Preguiça, Porto Velho, Porto da Garça, Porto de Lapa (o primeiro povoado da ilha) e o Porto do Carriçal”, e adianta que, “apesar da evolução económica que a ilha experimentou depois da independência, não houve o cuidado de preservar o seu património arquitetónico. No centro histórico da vila da Ribeira Brava, por exemplo, construíram-se edifícios que descaracterizaram por completo a história da localidade.”
Apesar de a Ribeira Brava ser a principal localidade de São Nicolau, o primeiro povoado foi o Porto de Lapa. No entanto, devida à falta de condições de salubridade e à forte exposição aos comuns ataques de piratas, as populações abandonaram o Porto de Lapa e refugiaram-se na Ribeira Brava, que era um local escondido entre duas montanhas. Inicialmente era um pequeno povoado que oferecia abrigo aos ataques dos piratas e que tinha excelentes condições para a fixação das populações. Este pequeno povoado foi crescendo até se concentrar entre a zona da Pandulha e a Cancela. Com o passar dos anos, a Ribeira Brava foi crescendo e estende-se atualmente por grande parte do vale. Este desenvolvimento tem feito com que a população rural da ilha procurasse a vila para se fixar, o que fez com que dois terços de São Nicolau acabassem por ficar praticamente desabitados. Esta fuga maciça de populações para o centro urbano é, segundo António Alves, “a grande responsável por as terras aráveis da ilha se encontrarem ao abandono, o que, em última análise, tem travado o desenvolvimento económico de São Nicolau”.
Também a elevação da antiga vila a cidade não reúne consensos. António Alves considera-a um desprestígio, pois como afirma, “a Ribeira Brava será sempre a Vila da Ribeira Brava. Quando lhe chamam cidade, considero-o uma desconsideração. Há dois anos, todas as sedes de concelho passaram a ser cidade. Para mim, e no que diz respeito à Ribeira Brava considero-o uma despromoção. Somos uma das vilas mais antigas de Cabo Verde. Existimos com esse estatuto desde 1771. Agora como cidade, apenas existimos há dois anos. É um desprestígio. Depois da Cidade Velha, em Santiago, a Vila da Ribeira Brava é das localidades de Cabo Verde com mais história e de maior importância cultural do país. Com o estatuto de cidade, parece que apagaram toda a história que esta bonita vila tem”, desabafa.
O contributo do Seminário para o desenvolvimento de São Nicolau
Para a histórica de São Nicolau muito contribuiu o Seminário. Para muitos dos habitantes da ilha, o Seminário de São Nicolau foi como que uma benção de Deus. Com a ajuda de algumas pessoas influentes que amavam São Nicolau, conseguiu-se fazer com que o seminário fosse instalado na Ribeira Brava. Tal como recorda António Alves, “inicialmente pensou-se instalar o seminário num outro ponto da ilha, mas como não havia nenhum outro edifício capaz de proporcionar as condições que eram exigidas a um estabelecimento de ensino que se pretendia de excelência, e fruto da abnegação de um ilustre da terra, o Dr. José Dias, que saiu da sua casa para ir viver numa outra mais pequena e sem tantas condições como as que tinha aqui na Ribeira Brava, foi possível instalar o estabelecimento de ensino na vila. Depois, tivemos a sorte de termos tido um bispo em Cabo Verde que se interessou muito por vir viver para São Nicolau o que fez com que que a ilha se desenvolvesse e se tornasse o centro eclesial de Cabo Verde. Como tal, a Igreja Católica teve um papel fundamental para o desenvolvimento dos sanicolauenses, quer ao nível da educação, quer ao nível do ensino e da moral”, afirma.
Por coincidência, foi nesse mesmo seminário que António Alves fez a sua educação religiosa. Mais tarde, ele, o irmão, a cunhada, o professor Gominho e o dr. Camões juntaram-se e fundaram, em 1967, uma escola que funcionou durante alguns anos no Seminário. “Na época, a Ribeira Brava só possuía o ensino primário, então, achámos por bem criar um externato que, felizmente, contribuiu para a formação de muitos dos ilustres sanicolauenses que, ainda hoje, exercem funções de relevo na vida social de Cabo Verde”, afirma com orgulho António Alves.
O ensino e o desenvolvimento sustentado do país
O ensino é, aliás, a grande preocupação de António Alves. Para ele, apesar da formação superior ser de extrema importância, não se pode relegar para segundo plano a formação mais técnica e prática que gera emprego e riqueza para o país. A sua passagem pela Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, em Portugal, fez-lhe mudar a sua forma de encarar a formação profissional. Tal como relembra, “além da teoria para o desenvolvimento agrícola e pecuária, fui igualmente preparado para ser feitor, isto é, dirigir explorações agrícolas. Das disciplinas que frequentei havia uma série delas de cariz prático em diversas áreas, tais como carpintaria, ferragens, agrimensura, etc. Nas oficinas cheguei à conclusão que não sabia manejar uma serra ou um martelo, que não sabia limar um ferro. Apesar de desde os dez anos ter uma enxada, concluí que também não a sabia manejar convenientemente. É pois por isso necessário aprender. A maioria das pessoas que exercem muitas das atividades que poderiam ser a base do desenvolvimento de Cabo Verde, não sabe como fazer as coisas. Fazem por ver os outros a fazer. Não conhecem a essência das coisas. E essas são matérias que se aprendem nessas escolas técnicas e práticas, onde se aprende fazendo”, e adianta que, “infelizmente os sucessivos governos de Cabo Verde não têm apostado nesse tipo de ensino. Se tivesse havido um real investimento no ensino técnico de qualidade, os formados nessas escolas iram, por exemplo, exercer a atividade agrícola de forma sistematizada e padronizada, com ciência e saber. Teriam o orgulho de exercerem a sua profissão devidamente diplomados e certificados para o fazerem. Não iriam simplesmente pegar numa enxada e abrir uns rasgos na terra para atirar para lá meia dúzia de sementes. Tem que se saber, de forma científica, o que se está a fazer; que tipos de solos temos e que culturas são viáveis nesses solos, etc. Só assim poderemos rentabilizar o potencial que temos. Depois existe o preconceito cultural. Apesar de termos um enorme potencial, por exemplo para a agricultura — basta passar no vale da Fajã para se ter uma pequena noção do potencial agrícola da ilha — ainda há o estigma que a atividade agrícola é para os coitados que não sabem fazer mais nada. Para muitas mentalidades em Cabo Verde, ser agricultor é motivo de vergonha… Esquecem-se é que o nosso futuro passa precisamente pelo desenvolvimento da agricultura”, sublinha.
O decréscimo populacional da ilha
O modelo de ensino adotado em Cabo Verde está, para António Alves, diretamente relacionado com a escassez e juventude e com a diminuição populacional que se tem registado em São Nicolau. São Nicolau é das poucas ilhas do arquipélago cuja população se encontra em decrescimento. “Já chegámos a ter quase 17 mil habitantes e atualmente somos pouco mais de 12 mil. Devia ser o contrário. Devido ao escasso investimento na ilha, as pessoas vêm-se forçadas a emigrar para onde existe trabalho e, por exemplo, a Ilha do Sal tem acolhido muita da população de São Nicolau”, adiantando ainda que, “no futuro, penso que será muito difícil implementar uma dinâmica capaz de fixar na ilha os mais jovens. São Nicolau tem um atraso de quarenta ou cinquenta anos. Mesmo no tempo colonial, quando se falava de projetos para São Nicolau era sempre nas áreas da agricultura ou pescas. Mas nunca se falou em agricultura de escala, apenas de subsistência. Este cenário sempre assim foi, não por falta de recursos da ilha, mas porque, ou não havia transportes regulares capazes de escoar as produções ou porque não se investia na modernização e na formação dos agricultores”, lamenta.
Também ao nível do setor das pescas, António Alves é perentório ao afirmar que não tem existido, por parte dos governantes, uma estratégia de desenvolvimento. “Mesmo existindo em São Nicolau a única fábrica conserveira que resistiu ao passar dos tempos e a todas as dificuldades, a própria pesca sempre foi considerada como de pouca relevância para a economia nacional. Apesar de a parte sul da ilha ter bancos riquíssimos de pesca, nunca se considerou a pesca como motor económico para o desenvolvimento de São Nicolau. Inclusive, ao largo do Tarrafal, situa-se o sétimo maior potencial de Blue Marlin do mundo. Apesar de se fazer alguma pesca desportiva ao largo do Tarrafal, muito mais podia ser feito em torno destes potenciais”, afirma.
A opção de emigrar
Esta falta de investimento em setores produtivos é apontado por António Alves como a principal causa para a emigração das populações de São Nicolau. “Como a pesca artesanal e a agricultura de subsistência são conseguem dar as mesmas condições de vida que quem emigra almeja, há uma fuga de pessoas da ilha para outros destinos. Sempre assim foi. Foi daqui que partiram os primeiros emigrantes para a Holanda, os Estados Unidos da América, Argentina e outros destinos. A opção de emigrar é a única alternativa que paira no espírito dos sanicolauenses. A ideia da emigração começa logo após a conclusão do ensino secundário. Quando os jovens terminam o ensino secundário a opção que têm é continuar os estudos para o ensino superior. O modelo de ensino que Cabo Verde adotou não permite que, terminado o secundário, os jovens integrem o mercado de trabalho pois não têm formação prática e técnica para o fazerem. Como tal, a emigração é a opção mais viável, com todas as consequências que depois essa fuga maciça de mão-de-obra acarreta”, lamenta António Alves.
O futuro de São Nicolau e de Cabo Verde
António Alves aponta o exemplo da Alemanha e do Japão, onde em quase todas as localidades existem escolas técnicas e práticas profissionais nas diversas áreas, como o modelo a seguir para o desenvolvimento sustentado de São Nicolau e de Cabo Verde. “Devia-se voltar a apostar em escolas técnicas e práticas como a solução para o desenvolvimento do país. É impossível um país como o nosso conseguir dar emprego a todos os nossos jovens formados em cursos superiores que não têm qualquer utilidade prática no mercado real de trabalho. Não é saudosismo da minha parte, mas antigamente, existia em Cabo Verde uma escola de técnicos agrícolas que formava os futuros capatazes agrícolas. Depois havia uma outra escola que formava práticos agrícolas. Depois vinha a escola de regentes agrícolas e finalmente a escola superior de agronomia, que formava os engenheiros agrónomos. Havia uma gradação de técnicos que era fundamental ao desenvolvimento da atividade agrícola. Esse modelo de ensino deveria ser novamente reutilizado em prol do desenvolvimento do nosso país, pois é nos recursos que possuímos que teremos de tirar rentabilidade e sustentabilidade para as gerações futuras”, conclui António Alves.