16 Ago 2016
SUCLA — Há setenta anos a criar riqueza em São Nicolau
É um dos grandes impulsionadores do desenvolvimento do Município do Tarrafal. A fábrica de conservas que geriu durante décadas é uma referência da indústria nacional e fonte de criação de riqueza para toda a ilha de São Nicolau. Quando olha para o percurso percorrido, Jack Pinheiro sente-se satisfeito com os resultados do esforço e dedicação que sempre colocou no desenvolvimento da SUCLA – Sociedade Ultramarina de Conservas, Lda. Apesar das dificuldades da economia atual, da concorrência desleal vinda do exterior e da escassez de peixe que atualmente se regista nos mares de Cabo Verde, o proprietário das conservas Cadório sente-se orgulhoso e realizado ao passar o testemunho às gerações mais jovens.
Tarrafal de São Nicolau Inícios dos anos 30 do século vinte. A terra é quase desértica. Os poucos habitantes que por aqui deambulam são alguns pescadores fortuitos que se aventuram a descer das zonas altas para algumas temporadas de pesca. A maioria dorme na praia, ao abrigo das estrelas. Aqui e ali, alguns casebres feitos de madeira tosca abrigam os poucos mas valiosos utensílios de pesca que alguns utilizam. As difíceis condições de vida são compensadas com a grande abundância de peixe que a baía possui. A fama destas águas fartas é conhecida em todo o arquipélago.
António Assis Cadório, um português natural de Salvaterra de Magos, também conhece esta lendária fartura de peixe. Proprietário de uma pequena unidade industrial de conservas em Tarrafal de Monte Trigo, na ilha de Santo Antão, decide confirmar com os seus próprios olhos tão afamada abundância. As condições que encontrou não podiam ser piores, mas a lenda estava certa, e estas águas eram mesmo abençoadas. Começou por construir um enorme barracão coberto de palha, e foi aí que, junto ao mar, começou a trabalhar. Gradualmente, foi motivando o surgimento de mais pescadores e com eles as suas famílias. A atividade foi crescendo e era preciso deslocalizar a fábrica para novo local. Cadório investe então na construção da sua unidade transformadora numa zona mais ampla e central à baía, local onde ainda hoje se encontra. Gradualmente foi-a equipando e ampliando.
Passar-se-iam alguns anos até o jovem Jack ver pela primeira vez a baía do Tarrafal. Tinha acabado de fazer a instrução primária e a ideia de conhecer novas paragens animavam-no. O seu pai, Joaquim Pinheiro Vila, deportado político do regime colonial português por ter sido apanhado numa manifestação política na cidade do Porto, em 1920, tinha sido enviado para o primeiro campo de concentração que existiu em Cabo Verde — o Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de São Nicolau. Durante o tempo que aqui permaneceu, o Joaquim Pinheiro travou conhecimento com o empreendedor Cadório e ficaram amigos. Com a transferência do campo de concentração para a ilha de Santiago, muitos dos prisioneiros políticos foram colocados em liberdade. Joaquim foi um deles. Fixou-se então na Ribeira Brava onde viria a constituir família. Jack nasceria pouco tempo depois, em 1932.
O tempo passou rápido para o jovem Jack. Com a conclusão da escola primária, havia que decidir o futuro. Como o Seminário-Liceu em Ribeira Brava tinha sido encerrado em 1919, restava-lhe a possibilidade de continuar os estudos em São Vicente. Com fracos recursos financeiros e sem família que os pudessem auxiliar na estadia do filho por aquelas paragens, Jack teria que se conformar em ver os seus estudos abruptamente interrompidos. A solução seria trabalhar.
A oportunidade surgiu em 1938 quando o pai de Jack aceitou o convite do velho amigo Cadório para o ajudar na fábrica de conservas. A família mudou-se então para o povoado do Tarrafal e Jack, como era costume naquela época, começou a trabalhar como ajudante do seu pai. Era mais um contributo para o parco rendimento familiar. Junto com eles, veio também o Rabaças, um dos cunhados do Cadório. O Rabaças também tinha sido deportado político e ganhava a vida como vendedor de toda a espécie de artigos. Viajava por todas as ilhas a vender os seus tecidos, especiarias, tachos e panelas. Quando o Cadório viajava para Portugal, era o Rabaças que o substituía.
Na altura, viveriam umas trezentas almas no Tarrafal. A maioria das casas não passava de barracas andrajosas e sem o mínimo de condições de habitabilidade. Os pescadores continuavam a dormir na praia. Quem dormia nas barracas eram as mulheres e os filhos pequenos, que os grandes há muito que acompanham os pais na pesca do atum. Ao fim da tarde, as mulheres desciam à praia e carregavam para casa a areia quente do sol. Era nesta areia que iriam passar mais uma noite, embaladas pelo morno tapete que lhes entorpecia a consciência. Ao outro dia tudo seria igual: tratar dos filhos e fazer a cachupa temperada com as cabeças de atum que os maridos tinham pescado no dia anterior.
Certo dia, ao desfolhar um jornal, Joaquim Pinheiro Vila descobre que era possível estudar, mesmo que fosse à distância. Descobre um anúncio a cursos técnicos por correspondência e vê renascer a esperança de o seu filho Jack poder tirar uma especialização técnica. Obriga Jack a tirar o curso de técnico de máquinas e, é nesta sua nova função, que Jack começa a se interessar pelos destinos da fábrica SUCLA.
Com o surgimento da Segunda Guerra Mundial, a necessidade de conservas para as frentes de batalha aumentou significativamente. Fruto das vendas que efetuava para os exércitos em conflito, a SUCLA registou um grande crescimento. Com o final da guerra, estavam reunidas as condições para o desenvolvimento da fábrica, modernizando-a e aumentando a sua capacidade produtiva. Investiu-se em barcos e criaram-se condições para introduzir outros produtos na linha produtiva. Tudo o que Cadório tinha ganho no período da guerra, investiu na modernização da fábrica.
Passada a euforia, e com o investimento por rentabilizar, a liquidez financeira não era grande. Cadório via-se forçado a investir apenas o estritamente necessário. Aliado a este facto, tinha grandes prejuízos com as remessas que efetuava para o exterior. Se enviasse 100 caixas de atum para fora, apenas 60 chegavam ao destino. Tudo isso sugava os lucros que a fábrica poderia ter o que, invariavelmente, fazia com que a sociedade vivesse em permanente sufoco financeiro. Apesar de todas as dificuldades, conseguiu manter a fábrica em funcionamento até à chegada da Independência Nacional, em 1975.
Com a época da emigração, os rapazes andavam todos empolgados em tentar a sorte fora de Cabo Verde. Jack não foi exceção e também partiu. Esteve cinco anos na Holanda e, quando já tinha conseguido juntar algum dinheiro, resolveu voltar para o Tarrafal. Deparou-se então com um Cadório sem ânimo e vontade de continuar a desenvolver a fábrica. Os descendentes do Cadório, duas raparigas e um rapaz, também não percebiam do negócio e não estavam muito motivados para lhe dar continuidade. Cadório, apercebendo-se que não tinha descendentes com capacidade de pegar no projeto, antes que fosse demasiado tarde, resolveu estruturar as diversas participações por forma a garantir que houvesse alguém capaz de dar continuidade à unidade fabril. O Rabaças, à custa dos seus negócios de compra e venda intermediados pelo Cadório, apercebendo-se de um desentendimento entre o cunhado e o seu outro sócio que permanecera na fábrica de Santo Antão, assume uma posição de dez por cento na fábrica de São Nicolau, mesmo sem ter pago um centavo por ela.
Sentindo o seu sonho a desmoronar, o velho Cadório resolve apressar a distribuição das participações e dividiu o capital da sociedade pelos filhos, pelo guarda-livros que trabalhava para ele em Lisboa e ainda por um outro grande amigo, o J.A. Nascimento que, além de também possuir uma fábrica de conservas na Ilha do Sal, era o responsável pela distribuição e exportação das conservas produzidas pela SUCLA. Os restantes dez por cento de capital que restaram, ofereceu-os ao pai de Jack para que este os dividisse com o filho. Para o orgulhoso Joaquim Pinheiro, aquela divisão era uma ofensa. Sempre tinha dado tudo por aquela fábrica, zelando pelo seu funcionamento, assumindo os problemas do patrão como se dele fossem. Ter que disputar a sua posição com o irascível cunhado Rabaças, homem preconceituoso e que nunca tinha ajudado em nada a sociedade, era algo que não lhe passava pela cabeça e, recusando a oferta, continuou como mero empregado da SUCLA o resto dos seus dias.
Passar-se-iam dois ou três anos até que, certo dia, devido à idade avançada, Joaquim Pinheiro resolveu passar ao seu filho Jack todas as responsabilidades que tinha na fábrica. Na altura, Jack tinha pouco mais de trinta anos. Por fim, visto ser o único que poderia continuar o projeto, os restantes sócios da SUCLA ofereceram-lhe dez por cento da sociedade. Como a maioria deles não estava interessado na atividade — uns pela idade avançada, outros porque não tinham qualquer ligação ao ramo — muitos resolveram vender as suas participações. Dentro das suas possibilidades, à medida que eles iam vendendo, Jack ia comprando. Acabou por se tornar o sócio maioritário da Sociedade Ultramarina de Conservas.
A sociedade era agora dividida entre ele e dois filhos do Cadório, uma rapariga e um rapaz que, por sinal, era engenheiro. A ideia de ter um sócio formado em engenharia alentou Jack. Pensou que era uma mais-valia para o projeto mas, rapidamente se apercebeu que estava enganado. Ao sócio apenas interessava os dividendos da fábrica e em nada contribuía para o desenvolvimento da sociedade.Farto desta situação de impasse, Jack propõe vender a sua participação aos herdeiros de Cadório. Eles não aceitaram e decidiram vender as suas quotas. Jack Pinheiro tornou-se assim único dono da SUCLA – Sociedade Ultramarina de Conservas, Lda.
Desde aquele dia que Jack Pinheiro viu pela primeira vez a baía do Tarrafal, passar-se-iam mais de setenta e seis anos. Durante todos esses anos muitas foram as mudanças que o Tarrafal de São Nicolau registou. Para o aumento da sua população, contribuíram significativamente as melhorias na qualidade de vida dos seus habitantes. Muitas destas melhorias foram fruto do empenho, dedicação e trabalho do já falecido padre italiano Jesualdo, que deu muito de si em prol do desenvolvimento dos tarrafalenses. Jack Pinheiro tinha com o padre Jesualdo uma relação muito próxima, quase de irmãos. Talvez por isso, Jack Pinheiro também se tenha dedicado a promover o desenvolvimento do seu tão querido Tarrafal. Meteu-se na política e fomentou contactos, desdobrou-se em esforços e conseguiu trazer para o Tarrafal o posto sanitário, a distribuição do correio, importantes infraestruturas e algumas secções da administração central. Registou com agrado a mudança de mentalidades que, gradualmente, as populações foram conquistando.
Durante esse período, Jack Pinheiro foi fazendo crescer a fábrica, modernizando-a e aperfeiçoando os seus métodos produtivos. Fez avultados investimentos e deu trabalho a uma grande parte da população do Tarrafal. Chegou a possuir quatro pequenos atuneiros que, em conjunto com o peixe comprado aos pescadores locais, alimentaram as mil e quinhentas toneladas de capacidade produtiva que a fábrica possui.
Depois vieram os acordos de pesca entre o Estado cabo-verdiano e a União Europeia e, com eles, a moderna e bem equipada frota pesqueira espanhola. Gradualmente, os atuns foram sendo quase todos dizimados por essa infalível e desproporcionada máquina de pesca em grande escala. À mediada que o atum ia diminuindo, também diminuía a esperança de prosperidade para o Tarrafal. Com menos peixe para pescar, os barcos da SUCLA tiveram que permanecer mais tempo ancorados. Atualmente, apenas dois ainda estão no ativo. A restante pesca é ainda feita de forma artesanal, com botes de boca aberta, o que reduz o seu raio de ação e a capacidade de captura.
Nos dias bons, quando há mais peixe, a fábrica consegue processar doze toneladas de pescado por dia e dar emprego a mais de duzentas pessoas, mas tal é cada vez mais raro. A falta de atum tem criado grandes dificuldades a uma população que, na sua maioria, depende dos recursos marinhos para sobreviver. Para agravar a situação, com a crise económica mundial, o Tarrafal viu-se forçado a suspender muitos dos investimentos programados, o que acabou por condicionar o seu desenvolvimento, encontrando-se atualmente quase estagnado.
Mas Jack Pinheiro é um homem persistente. Com os seus oitenta e dois anos de idade, continua a acreditar no projeto pelo qual sempre se sacrificou. Para lhe dar continuidade, já passou o testemunho da gestão ao seu filho Francisco Spencer, atual administrador da SUCLA. Para si, reservou a conclusão de um outro grande sonho: a construção do Museu da Pesca, tarefa que se encontra já na sua fase final de execução.
Instalado na antiga residência do fundador da SUCLA, António Cadório, o futuro Museu da Pesca contará com um valioso espólio recolhido ao longo de décadas. Além da temática da pesca em São Nicolau, o museu irá igualmente dar a conhecer muita da história do Tarrafal, das suas gentes, costumes e tradições. Conta com um extraordinário acervo de mais de 400 peças em perfeitas condições de preservação e com grande interesse museológico. O ponto central da exposição será, como não podia deixar de ser, a história da SUCLA, a maior referência industrial de Cabo Verde, a qual mantém o seu estatuto graças à determinação, resistência e visão de um único homem: Jack Pinheiro.