Soltar as amarras do passado
17 Mar 2021

Soltar as amarras do passado

Sou filho de cabo-verdianos contratados que chegaram a São Tomé e Príncipe nos finais dos anos cinquenta. Eu e os meus 13 irmãos nascemos todos aqui. Antes da Independência Nacional, levávamos uma vida normal, igual à de tantos outros serviçais que trabalhavam e viviam na então denominada roça Rio D’Ouro. Naquele tempo, embora ainda sob o jugo colonial, viviam-se os dias finais do colonialismo e, como tal, as coisas não eram tão más como em tempos mais recuados. Para mim, tudo parecia normal. Éramos felizes e não nos faltava o essencial. Não havia luxos, pois não se ganhava muito, mas o que se recebia permitia que se vivesse durante um mês e ainda havia quem conseguisse guardar o dinheiro que, por vezes, sobrava. Hoje, pelo menos os mais velhos, falam desses tempos com alguma saudade.

Durante os anos em que vivi sob o regime colonial, as diferenças hierárquicas entre os funcionários, apesar de existirem e serem respeitadas, estavam já muito diluídas e homogeneizadas.

Depois deu-se o 25 de Abril de 1975. Tive plena consciência da revolução que estava a acontecer um pouco por todo o território. Na altura, tinha sete anos de idade e pude presenciar as evidentes mudanças que foram ocorrendo no arquipélago. O país, já independente, tomou outro rumo e com ele apareceram novos problemas.

Como são-tomense, desejava muito a independência. Era a forma de podermos conseguir melhores condições de vida. No entanto, não foi isso que aconteceu. Foi uma ilusão. Quase todos abraçaram a ideia de independência total e liberdade sobre os nossos destinos, mas o certo é que poucos estavam preparados para o fazerem. Nem todos partilhavam da mesma opinião e havia, inclusive, quem pressentisse que as coisas não iriam correr como o desejado e não encarassem de bom grado as nossas manifestações independentistas, ao ponto de se oporem de forma violenta. Pressentiam as dificuldades que se avizinhavam. Tinham razão! O desemprego e as precárias condições de vida em que muitos são-tomenses se viram, iriam condicionar o tão desejado desenvolvimento do país. Sem recuarmos para tempos muito antigos, nas vésperas da Independência não havia um só desempregado nas roças. Por exemplo, numa roça como a Rio D’Ouro, que tinha quase 3 mil habitantes, todas as pessoas tinham o seu trabalho. No início do dia, cinco minutos antes das seis horas da manhã, todos saíam de suas casas de forma ordeira para irem para os seus afazeres. As sanzalas ficavam desertas; todas as pessoas estavam ocupadas no trabalho. Isso criava alguma tranquilidade na comunidade. Eu próprio trabalhei para conseguir algum dinheiro para os meus estudos e não faltava trabalho. Depois tudo se perdeu.

A agricultura entrou em período de grande crise. Fez-se a Reforma Agrária, reestruturaram-se as empresas e o certo é que as coisas não correram tão bem como tinham sido planeadas. Chegou-se ao fim do ciclo do cacau e não se acautelou a sua replantação. A produção caiu exponencialmente e a economia colapsou. A Reforma Agrária não soube dar resposta às necessidades de produtividade. Sendo a principal fonte de receita do país, logo a principal sustentação do Estado, ao entrar em colapso arrastou todo o tecido social são-tomense.

Tentou-se a privatização das empresas agrícolas, mas as coisas ainda se complicaram mais. Distribuíram-se terras sem se ter em consideração quem efetivamente nelas trabalhava. Por exemplo, em muitas roças e nas suas dependências, foram atribuídas terras a quem não vivia na roça. Não foram atribuídas terras aos mais velhos, o que impossibilitou que muitos conseguissem meios de subsistência. Em vez disso, deram-se terras a pessoas muito jovens, sem qualificações para as cultivar. Os critérios não funcionaram bem e o apoio técnico também falhou redondamente. Apesar de, num período inicial, se ter ministrado alguma formação, não houve um acompanhamento capaz de retificar eventuais deficiências ao nível produtivo. Todos os projetos de apoio aos pequenos agricultores pressupõem, à partida, uma componente de ajuda à alavancagem inicial da atividade. Ora, não foi isso que aconteceu. Quando aqui se atribuiu um hectare de terra para que os agricultores trabalhassem o cacau já cultivado, não se assegurou a formação adequada nem, em muitos casos, os materiais para o sucesso desse cultivo. Houve casos em que foram atribuídas terras a pessoas que sempre trabalharam em outras áreas de atividade, como por exemplo nas oficinas da roça. Ora, essas pessoas não estavam habilitadas a cultivar o cacau pois nunca o tinham anteriormente feito. Sem a formação adequada e as ferramentas para o colocar em marcha, o projeto estava condenado ao fracasso. Muitas dessas pessoas só se preocuparam em tirar o cacau que já havia nas terras; não o replantaram. Além disso, ainda cortaram muitas árvores para venderem a madeira. A desflorestação que hoje se assiste em muitas partes de São Tomé e Príncipe é consequência direta desses problemas. A riqueza foi-se perdendo. 

Entretanto, com os meus 16 anos de idade decidi enveredar pelo caminho da fé. Sempre tinha vivido no seio de uma família profundamente religiosa, por isso, a minha decisão foi encarada com grande naturalidade. Costumava frequentar a catequese na cidade de Guadalupe e aprendi muito com os ensinamentos do padre dessa paróquia, um homem com mais de 25 anos de experiência no terreno. A ideia de ser um sacerdote como aquele padre, de poder visitar as roças e levar aconchego espiritual a essas gentes, foi algo que me entusiasmou. Com 17 anos de idade entrei no Seminário da Trindade e, depois, fui fazer os meus estudos de noviciado nos Camarões. Estudei Filosofia na República Democrática do Congo e regressei novamente aos Camarões para estudar Teologia no Seminário de São Cipriano. Por fim, estagiei em Portugal durante uns tempos aos quais se seguiu o diaconato em Angola, entre 1999 e 2000. Em 2000, fui ordenado padre aqui na igreja da roça de Agostinho Neto, numa cerimónia muito emotiva pelo significado que tal acontecimento tinha, quer para mim, quer para a minha família.

Como pároco, comecei por enfrentar o profundo desequilíbrio social, emocional e moral em que a sociedade são-tomense então caíra. A desestruturação familiar e a consequente disfunção da sociedade começaram, precisamente, com a perda dos valores essenciais. Em São Tomé e Príncipe — e um pouco por todo o mundo — essa perda de valores começa no topo hierárquico da sociedade. Depois, facilmente chega à base, ao povo. A liberdade foi, muitas vezes, confundida com anarquia. Não houve um acompanhamento cívico e social às pessoas que, de um momento para o outro, pensaram que podiam fazer tudo o quisessem. A própria unidade política desvaneceu-se. Após a Independência, os sucessivos governos são-tomenses não conseguiam durar mais que um ano. O governo que vinha substituir o anterior anulava todas as medidas entretanto implementadas. Foi assim durante anos. Estamos permanentemente a recomeçar. Esta instabilidade política passa ao povo e o resultado transmite-se à própria sociedade, com o inevitável desmoronamento social. Perderam-se os valores essenciais. Os mais velhos ainda tentaram modificar isto, mas as novas gerações estão totalmente desprovidas desses valores. Alterar este cenário é o grande desafio.

A Igreja pode ter um papel fundamental na alteração destes paradigmas, mas é necessário que volte novamente para o seio do povo, tal como o fazia antigamente. Com as políticas adotadas após a Independência, a Igreja foi retirada do terreno para se confinar aos púlpitos. O papel social e educativo que a Igreja tinha perdeu força. O seu papel mais interventivo na sociedade ficou limitado ao domínio das igrejas. Também muitos dos padres que estavam em São Tomé, devido ao facto de serem estrangeiros, regressaram aos seus países de origem. Ficaram poucos e, mesmo os que ficaram, se tivessem opiniões divergentes às políticas adotadas pelo Governo, eram exilados. Um exemplo concreto foi o padre Horácio Neto que, apesar de ser são-tomense, acabou exilado em Portugal. Contudo, há esperança que as coisas melhorem. Apesar de, em São Tomé e Príncipe, a Igreja ter perdido bastante da sua área de atuação e de já não ser uma Igreja de massas (como acontecia antes da independência), o certo é que é uma Igreja forte e pode contribuir para o desenvolvimento efetivo do país. As mentalidades, ainda que de forma lenta, também se vão alterando e modernizando. Já se vê alguns pequenos agricultores a tentarem mudar o rumo das coisas. Alguns são-tomenses começam agora a introduzir outras culturas agrícolas e a experimentarem outros métodos produtivos. O mercado começa a ser autossuficiente ao nível agrícola e isso é algo que, há poucos anos, era inimaginável. 

Também ao nível da educação se tem registado uma evolução muito significativa. Fruto dos programas internacionais de luta contra a pobreza e da estabilidade política que ultimamente se tem vivido – o que possibilita o cumprimento integral e a concretização dos programas educativos – o nível de educação dos mais jovens tem vindo a melhorar. Isso tem repercussões muito positivas na evolução e no desenvolvimento dos são-tomenses. Por isso, há esperança em que as coisas melhorem. Temos que acompanhar o desenvolvimento e os desafios de um mundo cada vez mais globalizado, sob pena de ficarmos irremediavelmente para trás. É, pois, fundamental que continuemos a trabalhar de mãos dadas em prol do desenvolvimento do país. É preciso manter acesa a esperança num futuro melhor. 

Gostava de terminar com uma mensagem a todos os que, como eu, são descendentes dos cabo-verdianos contratados que um dia vieram para São Tomé e Príncipe à procura de um futuro melhor para si e para os seus filhos: ergam bem alto a cabeça e afirmem-se como membros ativos da sociedade. Está na hora de perderem o complexo de inferioridade que, muitos dos que vivem nas roças, ainda exibem. Pautem-se pelos valores dos vossos pais. Respeitem-se enquanto pilares morais dos vossos filhos. Para eles, os mais novos, peço-lhes que não percam a esperança e que lutem por um futuro mais igualitário. Estudem, trabalhem e sejam cumpridores dos ensinamentos dos mais velhos, pois um dia o vosso esforço será, certamente, recompensado.

P.e Francisco Brito


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