São Nicolau — O terreiro das bruxas
18 Ago 2016

São Nicolau — O terreiro das bruxas

Viagem pela história das ilhas*

*Germano de Almeida

 

Numa espécie de promontório sobranceiro ao mar no porto da Preguiça, e guardado por oito antigas e ferrugentas bocas-de-fogo languidamente esparramadas na poeira vermelha como se a banhos numa praia deserta, existe um padrão do tipo henriquino que diz que no ano de 1500, dia 22 de Março, passou ao largo da ilha de São Nicolau a armada de Pedro Álvares Cabral na rota da descoberta das terras de Vera Cruz.

 

São Nicolau - Cabo Verde

À primeira vista pareceria mais lógico ver esse marco por exemplo na Ponta Calheta a leste, certamente que foi essa parte da ilha que Cabral avistou do mar. De todo o modo, não ficou memória de os da terra terem chegado a admirar a poderosa armada, e nem podia porque naquele tempo São Nicolau ainda estava apenas povoada por cabras bravas. Assim, em princípio está garantido que os da ilha nada tiveram a ver com o misterioso desaparecimento da nau de D. Vasco de Ataíde, diz-se que para sempre extraviada nas nossas águas sem ter deixado qualquer rasto à superfície, nada absolutamente, sequer as famosas pipas de moscatel do torna-viagem que os entendidos afirmam adquirir sabores particulares e mais apetecíveis. O marco nada refere a respeito, mas sabe-se que, quando deu pela falta da nau, Cabral preocupou-se e logo ordenou dois dias de aturadas mas infelizmente infrutíferas buscas, findas as quais rumou resolutamente para o seu destino, ainda Camões não existia mas na mesma outros valores mais altos já se levantavam. E mesmo nós acabámos ficando a ganhar, basta pensar que sem a descoberta do Brasil possivelmente não chegaríamos a conhecer o milho e a inventar a nossa deliciosa cachupa.

Por sorte, só dez anos depois chegaria gente à ilha de São Nicolau levada da Madeira, de contrário os habitantes podiam ter corrido o risco de serem responsabilizados por esse diabólico sumiço através das artes de bruxaria por que durante muitos anos foram acusados, e certamente condenados à fogueira, na altura ainda a Inquisição não tinha feito crescer o seu longo braço mas já era uma força temível.

Mas não se deve estranhar a colocação do marco nesse local, isto é, mais ou menos a meio da ilha. É que Preguiça, um porto com sete ou oito braças de fundo e com uma baía muito bem protegida, foi, até à construção do cais acostável no Tarrafal, o principal ancoradouro da ilha porque, além de muito seguro para os navios, possibilitava o fornecimento em água e víveres que eram adquiridos nos vales interiores da terra. Sobretudo depois de 1855, ano de grande carestia que antecipou a fome, a cólera e a mortandade de 1856, em que ali se construiu «um bello cães» sob a direcção gratuita do Dr. Júlio José Dias, e «recebendo em paga o povo que ali trabalhava os mantimentos que o Governo enviava para a ilha».

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De todo o modo, o ancoradouro da Preguiça fazia de São Nicolau um razoável porto de escala, muito procurado pelos mercadores, mas também muito cobiçado pelos piratas. Por exemplo, o capitão George Roberts, o tal inglês que já encontrámos no Sal e na Brava e que escreveu um livro sobre os quatro anos das suas viagens nestas ilhas, conta como, ido da ilha do Sal para São Nicolau, foi ali aprisionado por piratas também ingleses. Diz Roberts que saindo do Sal velejou para sotavento de São Nicolau, que descreveu como uma terra alta e alcantilada, com muitas ravinas profundas, até chegar ao ancoradouro de uma baía na parte oeste da ilha chamada Tarrafal.

Roberts conta como o padre da ilha, um nativo de Portugal, foi ter com ele a bordo e lhe disse que de facto havia gente na ilha do Sal, alguns seus escravos, outros contratados que ele tinha mandado ali para apanhar tartarugas. De modo que toda a tartaruga, óleo, carapaças, etc, que eles tinham arranjado eram inteiramente dele. Acontecia, porém, que depois de deixar o pessoal no Sal, tinha mandado a sua chalupa negociar em Santiago e outras ilhas de Sotavento. E como estava a demorar de regressar, propunha a Roberts o afretamento do seu navio para ir à ilha do Sal e trazer de lá os seus produtos e homens. A estação das tartarugas tinha terminado, explicou ainda o padre, e a permanência daquela gente no Sal era agora só para fazer despesa. Razão por que estava disposto a oferecer condições razoáveis para o afretamento.

Roberts compreendeu a situação do padre e disse-lhe que não seria exigente no preço do afretamento. Estava informado de que havia na ilha de São Nicolau grande falta de mantimentos, devastada como tinha sido no último ano por uma fome que tinha levado à morte cerca de quinhentas pessoas. Porém, antes de partir para o Sal Roberts foi ancorar no porto do Carriçal com o objectivo de ali fazer aguada e lenha, e foi isso que o perdeu. Porque estando já fundeado, viu três navios que se dirigiam para lá, um vindo do leste, outro do oeste, e o terceiro do sul. São piratas ingleses. Interpelam Roberts, insultam-no, e por fim avisam-no de que lhe vão tomar o navio e a carga.

De terra o padre vê o que está a passar-se e foge para o interior da ilha na companhia dos nativos que estão com ele. Porém, o chefe dos piratas já o tinha referenciado e não se rala com essa fuga, antes interpela Roberts a respeito dele e diz-lhe que o padre não verá mais a sua chalupa porque eleja a tinha apresado, e termina por lhe contar que tinha conhecimento de que o padre e o feitor haviam amealhado um saco de dólares bastante grande, e era para o tomar que ele estava ali.

E de facto o chefe dos piratas desembarcou na ilha à frente de trinta e cinco homens armados e, com o auxílio de alguns nativos, poucas horas depois encontrava o padre e o feitor. Prendeu-os, obrigou-os a mandar matar um boi para alimentar os seus soldados e no fim forçou-os a apresentar o saco de dólares. Para além disso retirou tudo o que havia de útil no navio de Roberts que mesmo assim teve sorte em ter ficado com vida. Desamparado, só com muita dificuldade conseguiu aportar à costa da Brava onde acabou encalhado.

Bem, todos esses acontecimentos deram-se muito antes de 1786, ano da chegada à ilha do bispo D. Frei Cristóvão de Boaventura que ali decidiu residir. Deve, porém, ser dito que a mania tomada pelos bispos de passar a viver em São Nicolau não começou com frei Boaventura. Já o nosso conhecido frei Pedro Jacinto Valente, antes de definitivamente aportar a Santo Antão, tinha feito uma breve estada nesta ilha, certamente que a apalpar o terreno a ver se dava para ficar. Mas já que de novo falamos desse bispo azarado, aproveita-se para rectificar a estória do seu exílio em Santo Antão. Porque parece que não foram apenas a Corda e a subida em balaio a desencorajar o seu regresso a Santiago. Há uma outra versão contada pela Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde segundo a qual, depois daquela confusão provocada pela bucha a incendiar o navio carregado de pólvora, o bispo começou a ser persuadido pelo Ouvidor de nome João Vieira de Andrade de que deveria retirar-se de Santiago o mais depressa possível porque um certo coronel António de Barros Bezerra de Oliveira, homem muito rico e poderoso que além de juiz era também administrador residente da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, intentava matá-lo a ele e mais todo o seu Cabido. Dizem que a ideia de afastar o bispo de Santiago tinha muito a ver com a oposição que se previa ele iria fazer à devassidão dos costumes a que se entregavam os grandes da ilha, coisa que aliás um jovem bispo de nome frei Vitoriano Portuense tinha inutilmente tentado combater cem anos atrás. Mas a verdade é que dias depois do sigiloso conselho esse mesmo Ouvidor foi atacado e morto na sua casa a altas horas da noite, ao que se viria a provar depois, a mando do tal Bezerra Oliveira que por sinal e por esse crime acabaria sendo preso, enviado a Lisboa e ali julgado e condenado a morrer na «forca do Rocio» em Dezembro de 1764, para onde foi levado com baraço e pregão, arrastado pela cauda de um cavalo, depois do que a sua cabeça foi cortada e devolvida a Cabo Verde «para que na Villa da Praia seja posta em um poste alto, aonde ficará exposta até que o tempo a consuma».

São Nicolau - Cabo Verde

De todo o modo, a morte do Ouvidor aterrorizou completamente o bispo Valente, levando-o a procurar refúgio e segurança em ilhas distantes da perigosa Santiago. O certo é que quando frei Boaventura chegou a Cabo Verde para o suceder, o caminho para residir fora de Santiago já estava descoberto, razão por que ele se instalou em São Nicolau com armas e bagagens, em boa verdade com grande proveito para a ilha.

O bispo Boaventura chegou a São Nicolau em 1786 e diz-se que nunca de lá saiu. Era por isso acusado de ter abandonado a sua diocese, mas ainda hoje os seus admiradores o defendem, dizem que isso em si não foi nenhum mal, porém mesmo que tivesse sido o bem que fez pela ilha compensou o desleixo com que tratou as demais. Na verdade, pouca gente sabe o que São Nicolau ficou a dever à presença desse bispo. Tido pelo cónego Caetano por «vulto grandioso e venerando, génio trabalhador e incansável», o bispo Boaventura residiu em São Nicolau pelo espaço de uns dez anos e deixou o seu nome ligado aos mais diversos e notáveis melhoramentos na ilha: estrada da vila para o porto da Preguiça onde comandou a abertura de um poço para aguada dos navios aportados, acabando por criar uma aldeia no local; caminho para a Fajã e outros lugares, tudo isso foi por ele dirigido. Mas a própria vila ficou a dever-lhe muito, como por exemplo o arruamento das casas na rua principal, o empedramento da mesma rua, tudo foi obra sua, assim como a construção do antigo Paço Episcopal, sobre as ruínas do qual o governador liberal Joaquim Pereira Marinho mandaria anos depois construir um presídio. Mas não só. Frei Boaventura também teve acção preponderante no desenvolvimento das letras, tendo patrocinado uma aula de teologia moral, outra de gramática, bem como algumas de português. Preocupou-se com as questões ligadas à agricultura, tendo mandado proceder ao arrolamento e tombo da ilha, divisão das terras e administração da justiça. Durante o seu apostolado teria ainda início a construção da igreja matriz no sítio de Chansinha, mais propriamente em Maio de 1789. Que viria no entanto a ser contrariado pelo seu sucessor, frei Silvestre de Maria Santíssima, que não aprovou o local escolhido e a mandou construir em Junho de 1804 onde ainda se encontra, isto é, na praça principal da vila.

É em boa parte por causa daquele bispo que o povo de São Nicolau é comummente acusado de ser um povo ingrato. Isso porque quando ele morreu foi enterrado na igreja paroquial que ficava junto do Paço Episcopal por ele mandado construir. Ora, aconteceu que anos depois seria edificada a actual igreja e vendido o terreno da antiga. E para fazer o quê? Para ali se construir uma cavalariça. Sobre os ossos de um bispo que tanto bem tinha feito à ilha, dizem, e no entanto nenhuma voz na ilha se ouviu em protesto a esse desacato, ninguém se preocupou em que ao menos se procedesse primeiro à exumação de frei Boaventura e transladação dos seus ossos para sepultura condigna. Bem, Baltasar Lopes da Silva, escritor e um dos mais ilustres filhos da ilha de São Nicolau, o mesmo que criou o personagem Chiquinho que com a nostalgia de quem ouve uma melodia muito triste recorda a casinha onde nasceu no Caleijão, contava de alguém que tinha afirmado que o brasileiro é o povo mais ingrato do mundo. Mas, dizia ele, isso foi porque essa pessoa não chegou a conhecer o povo de Cabo Verde.

Depois da morte de frei Boaventura em 1798, chegou à ilha em 1803 frei Silvestre da Maria Santíssima, bispo já nosso conhecido como o tal que acusou a ilha de Santiago de ser circundada por um ar africano que lhe causava moléstias.

Interessante como muitos anos mais tarde ele viria a ser indirecta mas categoricamente desmentido por um outro servo de Deus, neste caso o cónego Joaquim da Silva Caetano, que na qualidade de sócio correspondente da Sociedade de Geografia apresentou a essa instituição em 1879 um aprofundado estudo sobre a ilha de São Nicolau, onde viveu por largos anos e que confessa ter como pátria adoptiva, estudo esse que vai em grande parte servirmos de guia para conhecer a ilha.

São Nicolau - Cabo Verde

Segundo o cónego, o primeiro lugar que foi habitado em São Nicolau foi «junto ao porto da Lapa onde se edificou uma povoação cujo nome se ignora, mas onde se descobrem ainda hoje vestígios da igreja, casa da alfândega e de prédios diversos», ainda que, pelo menos a julgar pela «pequena extensão da igreja que ordinariamente havia cuidado em construir em harmonia com a população», a povoação não se tenha desenvolvido. Isso, entre outras eventuais causas que terão no futuro justificado o abandono daquele lugar como povoação, devido à frequente incursão dos piratas que não davam trégua nem sossego aos moradores, o que os terá obrigado a procurar refúgio em lugar mais seguro no interior da ilha, acabando por se fixar na Ribeira Brava.

Ora, diz o cónego, «se a natureza lhes ofereceu lugar propício aos fins que visavam, é certo que erraram na escolha do lugar, pela falta de condições higiénicas». Porque «o local escolhido foi o leito de uma ribeira, em terreno pantanoso e desigual, cercado de montanhas por todos os lados que lhe interceptam a ventilação e o tornam menos sadio e sujeito a epidemias», tanto mais que «a vila é cortada pelo meio por uma ribeira» desde 1693 cognominada de Brava por causa da violência com que corre normalmente.

Não obstante todas essas desvantagens climatéricas, frei Silvestre gostou do lugar, donde aliás muito poucas vezes terá saído durante os dez anos do seu múnus, e fez de tudo para mudar a Sé Catedral de Santiago para São Nicolau. Com vista a melhor e mais depressa conseguir os seus objectivos, frei Silvestre desprezou a igreja da Chansinha cuja construção o seu antecessor tinha iniciado e mandou erigir a igreja matriz da Ribeira Brava, «templo magnífico, tanto na grandeza como na sua estrutura», diz o Anónimo da Notícia Corográfica, ainda por cima proprietária de um cálice em ouro maciço do tempo do rei D. Manuel, artisticamente esculpido da base à haste, com «seis figuras em relevo na base: Nossa Senhora, Santiago Maior, S. João Evangelista, S. Salvador do Mundo, S. Pedro e S. Paulo. No centro, à volta da haste, tem seis baldaquinos de estilo gótico e ladeado por outros tantos fustes. Em volta do copo, por baixo da inscrição “por este caliz deu Lançarote Esteves por sua alma” seis anjos em relevo ostentando os instrumentos da paixão de Cristo: cravos, esponja, coroa de espinhos, cruz, coluna, azorrague». Porém, nada disso valeu ao frei Silvestre.

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Os seus detractores acusam-no igualmente de nunca ter saído de São Nicolau. Mas no seu caso não é verdade, pelo menos à Boa Vista terá ido, assim o atesta a Igreja de São Roque que ali mandou edificar na sequência de uma visita pastoral. Mas diga-se para consolo da alma do bispo que os seus esforços não caíram por terra; a partir de 1867, pela bula de Bento XIV, com fundamento em como os bispos de Cabo Verde viviam muito pouco na ilha de Santiago em razão do seu pernicioso clima, foi oficialmente autorizada a transferência do prelado e do cabido para a vila de Ribeira Brava, ficando aquela igreja a servir de sé catedral.Normalmente São Nicolau é descrita como tendo uma forma externa irregular e desagradável ao observador que a contempla do mar. Curiosamente uma observação que já tinha sido feita a propósito de Santo Antão, e é certo que as duas ilhas são semelhantes até no pormenor de terem o interior composto de montes, montículos, serras, vales, algumas curiosas caldeiras de vulcões extintos e ribeiras no passado abundantes e férteis d’água.

Embora escarpada e árida, São Nicolau possui não poucos lugares de beleza impressionante. Cito por exemplo o monte da Nossa Senhora da Cintinha, uma enorme rocha em forma de catedral que se ergue no meio da ilha com uma extraordinária majestade, mesmo na altiva decadência que a erosão a pouco e pouco vai provocando no seu corpo gigantesco. Pena é a capela construída no seu sopé, dizem que em homenagem à Senhora da Cintinha, que mais parece um pequeno brinquedo ali colocado para desfeitear a paisagem.

A ilha terá sido descoberta por Diogo Afonso em Dezembro de 1461, mas só em 1510 ali aportaram as famílias madeirenses que previdentemente já se faziam acompanhar dos seus próprios escravos. A grande riqueza agrícola de São Nicolau fez com que fosse considerada como uma das mais importantes do arquipélago, especialmente após a importação de grande número de escravos da Guiné, circunstância que viria a transformá-la, até meados do século passado, no celeiro das ilhas do Sal e da Boa Vista.

Mas, como as demais, a sua colonização não foi isenta de percalços. Sofreu com violência a fome de 1720. No entanto, a que mais a marcou foi a medonha fome de 1773-1775. Nessa altura já tinha uma população de cerca de 13 500 habitantes que por acção dela se viram reduzidos a menos de metade. A esses anos seguiram-se alguns de boas águas, a par de outros de grandes secas e fomes, até que a cólera-morbo, de que a ilha tanto tinha fugido em 1845 através de uma quarentena rigorosa dos navios que a ela aportavam, não permitindo sequer o desembarque da esposa do Mr. Charles Pettingal, o juiz presidente da Comissão Mista Anglo-Lusa para a abolição da escravatura, ali entrou de forma tragicamente triunfante em 1856 para impiedosamente matar cerca de 8000 pessoas.

São Nicolau - Cabo Verde

De modo que no ano de 1860 São Nicolau só contava com 6372 habitantes; em 1878 com 6950 e em 1880 tinha uma população de 7500 pessoas, que aliás viria mais vezes a ser acossada pelas doenças e pela fome, como por exemplo a fome de 1900 ou a de 41-43 que matou cerca de um terço da população da ilha. Acerca desta crise, conta o escritor Martinho de Mello Andrade na sua novela Drama de Uma Família Cabo-Verdiana: «Grassava a miséria e em paralelo desenfreava a exploração aos famintos que, abandonados pela própria natureza, caíam em magotes como tordos, nas valas, nos cemitérios, à beira das estradas, nas praias de botes, à beira das furnas e muitas vezes eram dados à terra semivivos. Os óbitos a partir de Janeiro de 1941 até Maio do ano seguinte somavam 3531, aproximadamente um terço da população da ilha de São Nicolau.»

Arsénio D. Firmino foi administrador do concelho de São Nicolau e em 1888 escreveu sobre a ilha e as suas gentes uma extensa e bela peça literária que acabou publicada no Boletim Oficial sob o inócuo nome de relatório. De algum modo o escrito de D. Firmino completa as observações do cónego Caetano, ainda que seja verdade que sobre alguns aspectos tenham os dois chegado a conclusões um tanto opostas. E é por isso que vale a pena comparar como um estranho e um filho das ilhas analisam a mesma realidade social. Diz, por exemplo, o cónego acerca das gentes de São Nicolau: «Nos filhos da ilha reconhecemos habilidade, aparecem até algumas inteligências que, se fossem bem cultivadas e livres dos vícios de educação, dariam óptimos resultados. Gostam e são amantes das letras, mas repugna-lhes o trabalho, e dali a falta de aplicação; e contudo presumem de si um excesso, julgando-se muito sábios; são daqueles de quem dizia Séneca: saberiam mais se julgassem saber menos.»

E sobre os três grupos étnicos que identifica na ilha, observa: «Os indivíduos que constituem as duas primeiras raças (branca e preta) em geral são francos, leais, obsequiosos e lhanos no trato; os da terceira (mista de parda e mulata) ainda que aparentam aquelas qualidades, em breve deixam revelar a herança certa de ódio de raça que não podem vencer. É sobre ela que o estrangeiro deve estar de sobreaviso, com cuidado e sobriedade no trato para não ser iludido nem receber inesperados desenganos. Os traços característos das raças branca e mestiça são muito regulares: o cabelo quase liso e corredio, e o ângulo facial bem desenvolvido.» O pior defeito que o cónego encontra nos habitantes de São Nicolau é a sua propensão para o ócio e serem «dados em excesso ao vício da embriaguez, donde provém a mania de pleitear, que muito transtorna a tranquilidade pública e o sossego doméstico». Mas de resto, «são os habitantes da ilha muito hospitaleiros, afáveis com os estrangeiros e obsequiosos em suas relações mútuas, enquanto se não julgam ofendidos na sua demasiada susceptibilidade, o que é frequente pela natural desconfiança em que vivem com os europeus, e muito mais pela diversidade da língua, significação e interpretação contrária das palavras, porque muitos termos decentes, puros e castos do idioma português são entre eles obscenos e injuriosos».

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As palavras do cónego datam de 1879. O administrador Firmino escreve apenas 9 anos depois e tem sobre o outro a vantagem de ser filho da terra. Diz ele, por exemplo, que o povo de São Nicolau era considerado como um dos mais civilizados do arquipélago, de tal forma que em tempos idos era tradicional falar-se da «nobreza de São Nicolau» para se referir à fidalguia da generalidade da sua gente, sobretudo da classe abastada e mesmo mediana dos habitantes que tendia a seguir os usos e costumes europeus, porventura herdados dos seus progenitores, e gostava de importar belos e garbosos cavalos da ilha da Boa Vista.

Mas sem dúvida por efeito do distanciamento que essa «fidalguia» tendia a provocar em relação aos outros, amiúde os forasteiros se queixavam de falta de amabilidade que se encontrava nas gentes de São Nicolau, muito diferentes, lamentavam, das pessoas da ilha Brava, principalmente as mulheres. «Aqui tanto os homens como as mulheres são um tanto sombrios e muito propensos ao orgulho, quando supõem ser mal correspondidos», refere o administrador Arsénio D. Firmino no seu texto, porém para acrescentar que o povo é em extremo bondoso, dócil, e submisso às leis e ordens emanadas de quaisquer autoridades.

Raras vezes chega a haver da sua parte desacatos, abuso ou desvio ao respeito que deve à autoridade ou pessoas graduadas pela idade, posição individual ou oficial.

O administrador ressalva uma excepção a esse carácter ordeiro dos sanicolauenses, mas que no entanto só acontece na ocasião das operações eleitorais. Diz ele que nessa altura esse povo manso e cordato se torna independentíssimo, soberbo e orgulhoso. Isso pode na verdade ser um tanto curioso, mas pudera, não é essa a única ocasião em que o povo sente que pode exercer algum poder! No resto do tempo, dispensa-se perfeitamente a força militar porque esse povo com a lei e pela lei se governa, apesar, rematava ele, de alguns maus costumes que já vão aparecendo, importados da vizinha ilha de São Vicente.

São Nicolau pode gabar-se de ter sido a primeira ilha de Cabo Verde a ter ensino «superior» com carácter de durabilidade. Isso com muitos protestos vindos um pouco de todos os lados, principalmente da Praia que não se conformava em ter perdido um liceu que parecia mais que instalado em Janeiro de 1861. Mas merece ser dito que não foi bem bem por acaso que o Seminário-Liceu apareceu ali estabelecido em 1867. É que não só desde 1851 São Nicolau era cabeça da comarca de Barlavento, situação que durou até 1875, data em que foi transferida para Santo Antão, como também sempre tinha tido uma grande tradição de ensino, quer por iniciativa de particulares que tinham muitas escolas espalhadas pelo concelho e frequentadas por grande número de alunos, quer por obra do governo que já antes do seminário ali sustentava entre três a quatro escolas de instrução primária. Aliás, mesmo durante o período que durou o seminário continuou a haver três escolas de instrução primária elementar para o sexo masculino e uma para o sexo feminino, subsidiadas pelo governo, para além de uma quarta escola masculina sustentada pela câmara municipal. Todas, especialmente as masculinas, leccionando leitura, escrita, doutrina cristã, aritmética, sistema métrico decimal, gramática portuguesa e história. No dizer do nosso administrador, as escolas femininas é que não iam tão bem. Isso porque estavam directamente relacionadas com a maior ou menor ilustração das respectivas famílias que eram as únicas educadoras de suas filhas.

Mercê desse facto, era muito raro encontrar-se em São Nicolau um homem do povo que não soubesse ler uma carta e escrever pelo menos o seu nome, e também fazer-se entender em português, circunstância que muito terá contribuído para o espírito empreendedor e grande inclinação para o trabalho que, pretende o nosso administrador em oposição ao padre, desde sempre distinguiu esse povo. Isso para além de um elevado espírito de curiosidade e vontade de experimentação, o que levou alguns cronistas, entre eles o cónego Caetano, a afirmar que cabe a São Nicolau a glória de haver sido a primeira ilha em todo o arquipélago de Cabo Verde a fazer a tentativa de semear o arbusto do café, facto que com autoridade fixa em 1790, tendo sido a partir dali que foram mandadas sementes para Santiago, estendendo-se depois às demais ilhas. Bem, caso isso tenha sido verdade, não se passaram muitos anos para a cultura do café vir a ser preterida a favor da cana-do-açúcar e da vinha, das quais se fabricavam, e também se consumiam, grandes quantidades de aguardente e vinho. Porque, no dizer do administrador, esse povo saboreia com deleite a aguardente, a que chama patrícia, com a mesma voluptuosidade com que o inglês saboreia a cerveja e o conhaque, e o bom português o seu carrascão. No dizer do povo, a aguardente serve de cura a toda a doença: se tem frio toma um cálice de aguardente para chamar o calor e ao contrário, se tem calor, toma para refrescar; se sente dores no ventre toma aguardente para matar o bicho. Nas festas populares a aguardente é sempre indispensável, caminha na vanguarda de todas as outras coisas.

São Nicolau - Cabo Verde

Mas não obstante essa forte ligação à instrução e ao conhecimento, diz o administrador Firmino que o povo continuava apegado ao fanatismo que exercia sobre ele uma grande preponderância. Claro, esclarece, que se refere aos menos ilustrados, e portanto aos mais bisonhos. Porque, com relação aos de idade juvenil, estes só se fazem de crentes quando estão em família com os seus maiores para os não desgostar, assim como quando estão na presença de algum professor que tem as mesmas ideias. Porém, esses tais bisonhos acreditam, por exemplo, na feitiçaria, em bruxas, no defunto ou alma de outro mundo que volta a este para vir explicar o que deixou de fazer em vida, etc. E para ilustrar a forte ligação popular às crendices, conta a estória de um homem que acabou morrendo em virtude de uma simples mordedura numa mão. Segundo ele, ofendido e ofensor pleiteavam sobre os marcos de uma propriedade e entraram em vias de facto. Como o primeiro era mais possante e valente, atirou-se ao pescoço do outro. Ora este, mais fraco, vendo-se assim apertado, lançou mão do único expediente que tinha ao seu dispor: mordeu uma das mãos do seu adversário que estava prestes a tirar-lhe a respiração!

Claro que tudo teria ali acabado se o ofendido não tivesse julgado ter na sua mão ferida um elemento que lhe permitiria praticar dura vingança sobre o outro! Assim, acto contínuo untou a parte da mão mordida com excremento de galinha que, de acordo com a crença popular, logo faria cair os dentes ao que mordeu! E deixou-se ficar à espera de saber da queda dos dentes do outro, enquanto a parte ferida da mão principiava a infectar e inflamar. Mesmo vendo isso, ele não se preocupou em aplicar outro remédio, de modo que a inflamação progrediu e quando o médico foi finalmente chamado todo o antebraço já se achava em estado de gangrena.

Mas pondo de parte essas crendices e o uso da aguardente, conclui, é um povo laborioso como não se encontra outro igual, no geral civilizado, pacífico, obsequiador e hospitaleiro, que sabe receber bem em sua casa tanto gregos como troianos e sobretudo brioso no modo de proceder para com os compromissos a que se obrigava. E num clima de gentes com tantos predicados, não é de estranhar o quanto os bispos vindos de Portugal ali se sentiam bem, e a instalação do seminário surgir como consequência lógica desse ambiente cultural. Com efeito, por volta de 1845 o malogrado bispo D. Henriques Moniz tinha proposto ao governo a criação de um Seminário-Liceu na ilha Brava. Essa proposta não teve, porém, acolhimento favorável, se calhar porque o Governo ambicionava criar o seu próprio estabelecimento de ensino, o que, aliás, viria a acontecer na dita ilha Brava em 1847 por directa influência da rainha D. Maria e sob a direcção do primeiro-tenente Dantas Pereira, com a criação da Escola Principal de Cabo Verde.

Graças, porém, à acção do nosso já conhecido governador Januário Correia de Almeida, aconteceria a instalação do Liceu Nacional de Cabo Verde, inaugurado na Praia, como conta Francisco Lopes da Silva, com desusada pompa e no meio de salvas de canhões, como forma de dar a maior publicidade a evento tão importante e certamente com intuito de fazê-lo perdurar.

Mas infelizmente em vão, não serviu de nada, esse liceu viria a ter vida efémera, no ano seguinte já não existia por falta de instalações e dinheiro para pagar aos professores. Ora o seu encerramento abriu de novo o caminho às pretensões da igreja que desde os tempos de Filipe I sonhava com um seminário em Cabo Verde. E de facto, logo que foi confirmada pelo papa Pio IX a escolha do rei D. Luís I da pessoa do bispo D. José Alves Feijó para dirigir a diocese de Cabo Verde, este dirigiu-se ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, na altura o escritor Mendes Leal, homem de cultura, poeta e romancista afamado e membro da Academia Real das Ciências, solicitando os seus bons ofícios no sentido da criação de um seminário-liceu em São Nicolau, na altura, lembre-se, cabeça da comarca de Barlavento. Mendes Leal mostrou-se sensível ao pedido e, dos seus esforços, resultou a criação desse estabelecimento de ensino por decreto de 3 de Setembro de 1866.

Não obstante não se encontrar muito bem de saúde, como ele mesmo confirma, D. José apressou-se a partir para Cabo Verde, ao que tudo indica com o expresso e primordial objectivo de inaugurar o Seminário-Liceu. Tanto assim é que ao chegar à ilha já o esperavam os professores mandados de Portugal para ali leccionar, como bem se depreende das informações por ele prestadas em dois ofícios enviados ao ministro Mendes Leal, nos quais relata com algum pormenor que embarcou em Lisboa no dia 15 de Dezembro de 1866 a bordo do vapor Oneida, tendo chegado a São Vicente de Cabo Verde no dia 21 do mesmo mês, depois de uma feliz viagem que durou seis dias. Diz mais o bispo que foi recebido em São Vicente com as maiores demonstrações de respeito e público regozijo, tendo ido ao seu encontro todos os funcionários municipais, civis, militares e eclesiásticos, que o acompanharam num solene Te Deum, celebrado na nova e bela igreja daquela nascente e já importante povoação. Tomando depois uma pequena refeição, embarcou de novo a bordo do transporte nacional D. Luiz L° Fizeram-se à vela às 5 horas da tarde para a ilha de São Nicolau, aonde aportaram às 10 horas do dia seguinte. Apesar de não ser ainda esperado naquele dia, divulgou-se logo a notícia da sua chegada, e dali a poucas horas estava no porto da Preguiça cercado dos cónegos e professores do seminário, que tinham antes dele saído de Lisboa no paquete Zaire, bem como do pároco, da câmara municipal e mais respeitáveis habitantes da vila da Ribeira Brava, para onde, em concorrida e bem ordenada cavalgada, se dirigiram ao cair da tarde, para assim se pouparem ao ardente calor que então fazia.

São Nicolau - Cabo Verde

Porém, só no dia 31 D. José efectuaria a sua entrada solene, conforme manda o cerimonial, e dias depois teve a doce e religiosa satisfação de celebrar a missa pontifical na festividade dos Santos Reis. Mas, como diz, a sua preocupação era abrir as aulas do seminário, «que é quem hoje prende a minha maior atenção, pelo muito que dele espero». E com efeito, no dia 16 de Janeiro, soavam as 10 horas da manhã e caminhava D. José, acompanhado do seu clero, professores e alunos, para a igreja da vila, servindo de Sé Catedral, aonde se celebrou a missa do Espírito Santo. Findo o acto religioso, e sendo já com eles os mais ilustrados habitantes da povoação, voltaram ao seminário (na verdade a casa do Dr. Júlio José Dias oferecida para o efeito e que posteriormente viria a ser convenientemente ampliada) e ali D. José fez um pequeno discurso a dar início na diocese a uma época notável para a sua história. Em seguida ordenou que os professores, segundo as disposições do direito, fizessem solene profissão de fé e juramento de nunca ensinarem doutrinas opostas aos dogmas, tradições e autoridade da Santa igreja Católica Romana, declarando de seguida aberto o novo Seminário-Liceu de Cabo Verde, debaixo da protecção de S. José e da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Nossa Senhora, padroeira dos reinos e domínios de Portugal.

O seminário tinha oito professores que ensinavam as mais diversas disciplinas, como, por exemplo, Latim, Retórica, História, Filosofia, Matemática, para além de Português e Francês, sem contar com as disciplinas da teologia. E proporcionava instrução não só às gentes de Cabo Verde, idos de quase todas as ilhas, como também da Guiné e muitos até vindos da metrópole, cumprindo assim o papel inicialmente destinado ao Liceu Nacional de Cabo Verde, isto é, preparar pessoal para os mais diversos destinos, mas sobretudo para aquilo que Nobre de Oliveira chama e bem a cabo-verdianização do funcionalismo público de Cabo Verde, levando a uma espécie de emancipação administrativa da colónia a nível do pessoal.

Mas na sua própria organização o Seminário-Liceu trazia os germes da sua destruição. Por exemplo, devendo ter as duas funções, seminário e liceu, exercia quase exclusivamente como seminário «formador de sotainas negras». Ora o que se pedia era que habilitasse tanto aqueles como seculares. E daí que a instauração da República em 1910 não pudesse ser saudável para a continuação desse tipo de ensino. E com efeito, a extinção do seminário viria a ser decretada em 1917, é verdade que com o protesto generalizado de todos os cabo-verdianos ilustrados que, não obstante os seus defeitos, nele reconheciam extraordinária importância, pois que o seu contributo para a instrução em Cabo Verde era inestimável.

Para substituir o Seminário-Liceu, seria criado em 1925 o Instituto Cabo-Verdiano de Instrução, também ele sediado em São Nicolau e «nos edifícios e propriedades do antigo Seminário», que o Governo cedia para esse efeito sem qualquer renda, tendo como função ministrar o curso geral dos liceus, além da instrução primária.

Poderia ter sido uma maneira de reparar o erro da liquidação do seminário, se o Instituto não viesse por sua vez a ser extinto em 1931, com a justificação da necessidade de se utilizar as suas instalações para nele serem alojados os presos políticos enviados para Cabo Verde na sequência do golpe militar de 28 de Maio.

E assim deixou de haver ensino secundário em São Nicolau até 1973, ano em que ali se criou uma secção da Escola Preparatória do Mindelo. Mas seja como for, São Nicolau não é importante apenas por causa da passagem nas suas águas de Pedro Álvares Cabral na viagem de que viria a resultar o nosso conhecimento do milho e a invenção da cachupa. É-o também pelos filhos ilustres que a ilha e o seu Seminário-Liceu deram a Cabo Verde e que souberam honrar a nossa terra e a nossa cultura. Nomes como José Lopes da Silva, Pedro Monteiro Cardoso, Juvenal Cabral e Baltasar Lopes da Silva, entre outros, pertencem ao nosso património e são o orgulho da nossa nação.


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