30 Set Santo Antão: Memórias de um viajante
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O Tuninha está pronto para zarpar. Ao longe, em todo o seu esplendor, vislumbra-se a majestosa e imponente ilha de Santo Antão. Parece que está já ali, mas conforme se ouve dizer no convés, “são 45 minutos sempre a navegar”. Hoje, a ondulação está serena, e sabe bem sentir a brisa da manhã, misturada com o cheiro a mar, mar de canal, como gostam de lhe chamar.
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A viagem é tranquila. “Sorte”, dizem alguns. O som cadenciado do motor do Tuninha, embala-nos ao sabor das ondas. Vem-me à memória a história que ouvi contar. Diz-se que antigamente, pela calada da noite, homens corajosos nos seus pequenos botes a remos, atravessavam este mar profundo e traiçoeiro, transportando para o Mindelo, a tão apreciada aguardente de cana-de-açúcar (o grogue) de Santo Antão, fugindo assim à imposição da lei seca e aos altos impostos que tinham que pagar – sempre elevados para quem vive do trabalho artesanal. Entretanto, já se distingue Porto Novo, estrategicamente posicionado como a “porta de entrada” para a ilha.
O Porto Novo tem vida própria, a que não é alheio o facto de acolher o porto marítimo, essencial ao desenvolvimento de Santo Antão. A azáfama das pessoas que aqui vivem e trabalham, apenas é quebrada com o calor do meio-dia. O comércio e os serviços estão na base da economia do concelho, o mais extenso dos três que formam a ilha. Contrariamente ao lado Norte, com os seus vales verdejantes, o concelho de Porto Novo mostra-se árido e agreste, o que dificulta a fixação das populações no seu interior. Confia nas praias de areia branca, tão ao gosto dos turistas europeus, o futuro do seu desenvolvimento. Há que trabalhar as acessibilidades para esse lado da ilha, ainda recôndita e misteriosa para quem a visita.
É no Porto Novo que encontramos o monumento nacional aos que partem para a diáspora na esperança de encontrar vida melhor. A mulher, que com a mão direita acena o lenço da saudade e que com a esquerda conforta e afaga o filho que fica, simboliza o sofrimento de um povo que desde sempre partiu, na esperança de vida melhor, deixando para trás os que mais ama.
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A estrada nova que liga o Porto Novo ao outro lado da ilha, parece-me convidativa. Dizem-me que “aproximou as pessoas e encurtou a ilha”. Talvez no regresso. Por agora, quero sentir o coração de Santo Antão. Vou pela estrada antiga, aquela que ziguezagueia a montanha e que expõe a verdadeira essência destas gentes. Tal como era de esperar, não me arrependo. A grandiosidade da paisagem, resigna-nos à humilde condição de meros mortais. Na íngreme subida, posso apreciar a pozolana, ainda hoje utilizada em muitas das construções da ilha.
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Lá no alto, onde a aridez se junta ao verde, podemos admirar ao longe as povoações de Chã de Pedra e Corda. Ao olharmos o horizonte, temos a sensação de estarmos em outro qualquer país que não Cabo Verde. A vegetação frondosa, com pinheiros, eucaliptos, acácias e algumas figueiras, fazem-nos esquecer a esterilidade que deixámos para trás. Estes íngremes cumes, formam uma barreira natural que aprisiona as parcas nuvens atlânticas, impedindo-as de chegarem ao outro lado da ilha.
Descoberta por volta de 1460, a ilha de Santo Antão é das poucas no arquipélago onde ainda chove, o que contribui significativamente para a riqueza dos seus solos. Os seus grandes picos montanhosos, muitos deles com mais de mil metros de altitude, alternam com os seus vales largos e fartos, aproveitados quase na totalidade para a plantação de cana-de-açúcar, inhame, milho, feijão, batata doce, couve e outras hortícolas.
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Deixo-me levar pelos vales da Ribeira Grande e do Paúl, onde o tempo parece não passar. Entendo agora todo o potencial turístico que frequentemente ouço enumerar. Haverá poucos destinos perto da Europa, onde ainda se pode encontrar a genuinidade da natureza, onde coexistem bananeiras e coqueiros, fruta-pão e papaias, amendoeiras e acácias.
A vida corre serena por aqui. Dispersas pelas encostas, as casas – feitas de seixos minuciosamente trabalhados e que se encaixam na perfeição – vivem o presente, mas guardam memórias passadas. Memórias de tempos difíceis, de sofrimentos guardados e de consciências amargas, de para quem a vida nunca foi fácil.
Começo a descer a sinuosa estrada “velha”. Interrogo-me como podem cruzar ali dois automóveis. Conduzir nestas estradas de alta montanha, muitas delas esculpidas na própria rocha, é algo a que os santantonenses acham natural. Aqui não pode haver pressa de chegar.Uma distração significa o fim… do percurso e da vida.
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Aprecio, ao longe, a cidade da Ribeira Grande, ali mesmo no cruzamento de várias outras ribeiras. O movimento é contrastante com o que deixei para trás, lá no alto da montanha. As pessoas nos seus afazeres diários, os veículos a circular, os edifícios públicos, os bancos, o comércio, e as escolas, dão vida a esta cidade contornada por montes verdes e mar azul. É afinal o centro do concelho, porta de partida para as povoações vizinhas. Aqui habita vinte e cinco por cento da população do concelho, com as restantes dispersas por quatro freguesias. Aqui se situa, fruto da cooperação luxemburguesa, o hospital regional de Santo Antão. Aqui fervilha a vida do norte da ilha.
Viro à esquerda, em direção à Ponta do Sol. A estrada à beira-mar é repousante e permite apreciar o contraste das montanhas, com o anil do mar. Ao longe, avista-se a outrora pista de aterragem, que permitia a ligação aérea de Santo Antão às outras ilhas. Dizem-me que se encontra desativada devido a um acidente, ocorrido em 1998, onde perderam a vida todos os dezoito ocupantes do pequeno avião. Imagino como deve ser preciso ser corajoso para sobrevoar estas cordilheiras montanhosas, com muitos dos seus picos a rasgar os céus. Espero que um dia a reativem. Irá, certamente, impulsionar a economia da região.
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Chego ao ponto mais a norte do arquipélago. A Ponta do Sol, com o seu casario disperso e que mantém a traça colonial portuguesa, é uma vila aconchegante, que alberga toda a parte administrativa do concelho da Ribeira Grande. O largo do município, com os Paços do Concelho e a igreja de Ponta do Sol, convivem lado a lado, partilhando o magnifico jardim, com inúmeras palmeiras, tamareiras e coqueiros. Da câmara municipal sai uma rua, anormalmente larga para os padrões da região, que segue em direção ao mar. Guio-me por ela para chegar à comunidade piscatória de Ponta do Sol. Ao fundo a imensidão do atlântico. Os barcos estão em terra. Amanhã será outra campanha árdua. Por agora é tempo de amanhar o peixe e remendar as redes.
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A câmara municipal, o tribunal, as finanças, a cadeia, os correios e o centro de saúde do concelho – onde outrora trabalhou como médico o então exilado Dr. Agostinho Neto – fazem de Ponta do Sol uma vila acolhedora, que começa agora a despontar para os benefícios do turismo. Pesca desportiva, mergulho e montanhismo alinham-se para apoiar no desenvolvimento de Ponta do Sol e do concelho da Ribeira Grande.
A tarde vai a meio. Convidam-me para visitar, ali bem próximo, as Fontainhas. Prometem-me uma paisagem deslumbrante e muita aventura. Ao começar a subir a íngreme montanha, numa estrada que me parece impossível percorrer, percebo o porquê. Enormes penhascos despontam do oceano. A estrada parece-me ficar cada vez mais estreita, o que me leva a questionar se o carro, não terá também ele, se contraído. Estamos a centenas de metros acima do nível do mar, num fio de terra a que chamam de estrada.
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Lá longe, nas minhas costas, Ponta do Sol não passa de um pequeno e seguro porto de abrigo no meio do oceano. Subo lenta e cuidadosamente as escarpas da montanha. Os seixos soltos dão a sensação que irão desabar a qualquer momento. Curva após curva, penhasco após penhasco, até que finalmente, deparo-me com o presépio vivo de Santo Antão: as Fontainhas. É autentica poesia na natureza. Aprecio a paisagem de cortar a respiração, mas acima de tudo, aprecio a garra desta gente, que nos mais inóspitos montes, com o suor dos seus rostos, com a determinação da sua alma, e com o engenho do querer, moldaram a paisagem agreste e aparentemente intransponível, para dela tirarem o sustento dos seus filhos. Os socalcos das Fontainhas, representam o espírito dos cabo-verdianos, que todos os dias lutam contra as adversidades da natureza. Custa-me abandonar este local. Algo de magnético e transcendente mantém-me o olhar preso a esta fascinante aldeia e às suas gentes. Mas o sol está a começar a pôr-se e são horas de regressar. Estava cumprida a promessa: aventura e deslumbramento.
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Para passar a noite, sugerem-me Pedracin Village, um local paradisíaco, situado em Boca de Coruja, em pleno vale da Ribeira Grande. Não era exagero, é realmente o paraíso na terra. Ladeado por encostas íngremes de montanhas rochosas, encontrei um hotel rural, exemplarmente mantido e administrado pelo amigo Jopan, que recriou, em plena encosta da montanha, a tradição das habitações de antigamente. Com quartos modernos e confortáveis, um serviço de qualidade irrepreensível e um ambiente familiar típico das gentes de Santo Antão, Pedracin Village é o exemplo perfeito do empreendedorismo e da visão que se espera para toda a região: aproveitar as condições naturais e ímpares destas ilhas, proporcionando aos seus visitantes serviços de qualidade.
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Deleito-me com a gastronomia típica da região. Os sabores da comida natural, fazem-me recordar tempos de infância. O peixe fresco, o cabrito ou o marisco. A dificuldade é escolher. Para sobremesa, o doce de papaia acompanhado por queijo de cabra feito no Porto Novo, ou o pudim de coco, que é uma das especialidades do arquipélago.
Passo o resto do serão à beira da piscina, a saborear um grogue velho e a ouvir os Corda do Sol, um reconhecido agrupamento musical daqui de Santo Antão. Não me posso esquecer de amanhã ver como ainda há quem produza o grogue da forma tradicional, com o trapiche – como por aqui se chama – a ser alimentado pela força de uma junta de bois!
O dia amanhece calmo e tranquilo, como toda a paisagem envolvente de Pedracin. Dois dias na ilha são pouco, para o muito que há para explorar e conhecer. A cachupa – prato tradicional cabo-verdiano feito de milho, feijão, carne de porco e peixe variado – estava divinal. Iria reconfortar o estômago até à hora do almoço. Próximo destino? O Paúl, esse frondoso vale, porventura o mais verdejante de Cabo Verde.
A entrada para esta bonita localidade é feita pela avenida marginal. A sua praia rochosa é muito apreciada pelos adeptos dos desportos radicais, que nas suas ondas bem formadas, praticam surf e bodyboard. O centro acolhe a remodelada câmara municipal e a praça do município. O busto do português João Baptista Oliveira, permanece intocável, lembrando tempos de outrora. Como é bonita a Vila das Pombas, a cortar a foz da ribeira do Paúl!
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O vale da ribeira é extremamente pronunciado, tendo as suas encostas sido aproveitadas para a agricultura, recorrendo-se às técnicas dos socalcos e de sistemas de levadas para a irrigação. É extremamente fértil, produzindo cana-de-açúcar, mandioca, banana, papaia e muitas outras variedades de frutos tropicais. Aprecio a paisagem fértil, sempre pincelada por árvores de fruta-pão, coqueiros e papaieiras. É neste vale que vejo pela primeira vez um dragoeiro, a árvore liliácea rara e símbolo nacional de Cabo Verde. Por todo o vale, vejo trapiches em plena atividade. Lembrei-me que está na altura de visitar a fábrica de grogue, que ainda o produz da maneira tradicional.
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A cana-de-açúcar, quando está madura, é recolhida das encostas íngremes de Santo Antão. Distribuídas por fardos, são transportadas muitas vezes à cabeça das mulheres, que as depositam na velhas destilarias. Tradicionalmente, usava-se a força dos animais para esmagar as canas e recolher a preciosa calda, de cor esverdeada. Atualmente, pequenos motores realizam esta operação, no entanto, há ainda quem trabalhe de forma tradicional, e os bois são importantes aliados na produção deste bem, que contribui significativamente para a economia da região. A calda de cana é armazenada durante algum tempo em pipas, enquanto fermenta. Só depois deste processo é que se inicia a destilação. Dos alambiques tradicionais, aquecidos a lenha, sai então o famoso grogue de Santo Antão, bebida forte e espirituosa, tão apreciada por nacionais e estrangeiros. É desta aguardente de cana que se faz os não menos famosos ponches e licores de Santo Antão.
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O dia já vai longo. Resolvo voltar à Vila das Pombas para apanhar a estrada que me levará até Janela – uma pequena e simpática aldeia a norte do concelho do Paúl – e depois de volta a Porto Novo. Olho uma última vez este magnífico e produtivo vale, com as sua gente laboriosa e empenhada, e prometo um dia voltar.
Apanho a estrada nova, a tal que aproximou as pessoas e encurtou a ilha. É sem dúvida uma obra merecida e que está a contribuir de forma decisiva para a melhoria das condições de vida das populações. É uma via moderna, segura e de grande beleza paisagística. Dois túneis escavados no coração da montanha, separam a parte norte do sul da ilha. Quarenta minutos nos separam agora do Porto Novo.
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Regresso novamente às paisagens áridas, entrecortadas por montes vulcânicos despidos de vegetação. Ao longe Santa Luzia, ali ao pé São Vicente e pelo meio, o mar, essa fonte de vida, de agruras e esperança, sempre omnipresente na alma dos cabo-verdianos.
Tenho de voltar um dia, tenho de voltar um dia! O pensamento não me sai da cabeça, e de regresso ao barco com destino a São Vicente, olho para Santo Antão e vejo que ele continua ali, imponente e majestoso, mas agora para mim, muito mais bonito e pleno de significado. Vou voltar um dia.
Rosa
Posted at 23:04h, 06 NovembroLindissimo. Deleito-me a ler e às vezes a ouvir as memórias. Contagiam-me deveras. Se não conheço o lugar, dá até vontade de voar para lá. E faço-o muitas vezes na imaginação…