16 Ago 2016
Recuperar a tradição dos tamboreiros de São Nicolau
As notícias importantes eram, geralmente, acompanhadas por um tamboreiro. O soar do tambor era sinónimo que algo tinha, ou estava para acontecer. De forma cadenciada, e em função do teor da notícia, o tocador executava o ritmo adequado ao conteúdo da mensagem. Pelo tipo de toque empregue, sabia-se se eram boas ou más notícias. As populações reuniam-se então em local central para escutar as mensagens. Era assim há muitos anos atrás.
Arnaldo Martins é natural do vale da Ribeira Brava. O gosto por trabalhar a madeira desde sempre o acompanhou. Atualmente é dono de uma carpintaria na Ribeira Brava e um dos mais importantes construtores de tambores da ilha.
Ainda muito jovem, Arnaldo Martins sentia-se fascinado ao ver os mais velhos tocar tambor. Após a independência nacional e até ao início da década de noventa, as festas tradicionais de São Nicolau estavam remetidas ao esquecimento, pelo que quase não se produziam tambores na ilha. Com o ressurgimento da celebração dessas festas, o tambor também foi recuperado, sendo atualmente um dos instrumentos mais utilizados em Cabo Verde. Ver o desfilar dos tamboreiros era algo que emocionava o jovem Arnaldo a ponto de, quando os seus irmãos mais velhos começaram a construir alguns desses instrumentos musicais, Arnaldo não ter hesitado em os acompanhar e aprender passo-a-passo todos os segredos desta antiga tradição cabo-verdiana.
Com alguns tambores já construídos, Arnaldo Martins e alguns jovens do vale da Ribeira Brava juntaram-se e, por altura das festas de S. Jom, percorreram as principais localidades da ilha recriando uma tradição que começava a cair em desuso em São Nicolau. A recetividade das populações foi grande. O gosto e a tradição apenas se encontravam adormecidos. Assistia-se desta forma ao renascer de uma das mais queridas tradições musicais de Cabo Verde.
O carinho dos sanicolauenses e o interesse cada vez maior dos mais jovens pela arte de tamboreiro, impulsionaram Arnaldo e alguns companheiros a formar, em 1991, um grupo musical de tambores tradicionais a que deram o nome de KASSAV2. Atualmente o grupo conta com mais de cem elementos vinte dos quais mulheres.
A construção de um tambor não é tarefa fácil. Além da arte de trabalhar a madeira é preciso saber escolher as peles e prepará-las convenientemente de forma a adquirirem a rigidez e a elasticidade necessárias a uma boa sonoridade. Feitos inicialmente de carda, os cascos dos tambores de São Nicolau têm vindo a sofrer alterações significativas ao nível dos materiais empregues na sua construção. A cada vez maior escassez de carda na ilha tem obrigado à sua substituição por materiais mais fáceis de encontrar, tais como o contraplacado de três milímetros que é, atualmente, o material eleito para os tambores de São Nicolau.
O processo inicia-se por cortar uma tira de contraplacado, geralmente com 20 ou 25 cm de altura e demolhá-la por forma a ficar maleável. É-lhe então dada a forma circular pretendida. Deixada a secar durante vários dias, a madeira irá adquirir a rigidez e a forma característica do tambor. Entretanto são preparados os arcos interiores e exteriores, geralmente de madeira de pinho branco. Estas tiras de pinho são igualmente submersas em água até ficarem maleáveis. São colocadas em moldes circulares e ficam a secar.
Em simultâneo preparam-se as peles. Geralmente de cabra, as peles são inicialmente salgadas e secas ao sol. Depois são submersas em água durante três dias até perderem todo o pelo. Finalmente voltam a ser secas ao sol até adquirirem a consistência necessária e ganharem rigidez. Toda esta operação demora uns oito dias. O som do tambor depende da pele utilizada. Se esta for proveniente de uma cabra mais velha, esta será menos elástica o som tende a ser mais encorpado. Se por outro lado se utilizar uma pele de um cabrito, a pele já é mais macia o que confere uma outra sonoridade ao tambor. A escolha das peles depende muito da preferência de quem vai tocar o instrumento.
A última etapa na construção do tambor consiste em juntar todas as partes: o casco, os arcos e as peles. Após serem humedecidas, as peles são esticadas e enroladas nos arcos interiores. Finalmente colocam-se os arcos exteriores que ficam seguros com uma corda bem apertada que é cruzada por entre as furações previamente realizadas nos arcos exteriores. Quando as peles estiverem secas, faz-se o retesamento das cordas atando os lados que formam um V, a que se chama “retrinco”. Por fim, é feito um furo no arco por onde se passa uma corda a que se dá o nome de “véu”. O “véu” é a alma do tambor, pois é através desta linha dura, geralmente linha de pesca, que é feita a afinação do tambor. Para se afinar o tambor aperta-se o “retrinco” com as extremidades de uma das baquetas, aproximando os arcos entre si fazendo com que a pele fique mais ou menos esticada. Controla-se depois o timbre ao esticar ou alargar o “véu”. A afinação do tambor é a operação mais complexa de toda a sua construção. Sem uma correta afinação o tambor não pode ser tocado.
Em São Nicolau existem dois tipos de tambores: os da Praia Branca e os do vale da Ribeira Brava. Os tambores da Praia Branca têm uma sonoridade mais grave, com as peles geralmente não tão esticadas como as dos tambores tocados na Ribeira Brava. Esta característica define igualmente o estilo de sonoridade que se consegue retirar dos tambores. Na Ribeira Brava, pelo facto de se tocar em tambores com peles mais esticadas, consegue-se sonoridades mais secas o que faz com que os ritmos tenham muitos repiques. A conjugação dos dois tipos de sonoridades produz variações de timbre muito interessantes. São estas variações que caracterizam a sonoridade dos tambores de São Nicolau, com ritmos bem definidos, como por exemplo o San Jom repicado, largado ou rufado. Depois existe o mais tradicional, a que é dado o nome de “toque di terra” que se caracteriza pelos seus compassos de cadência constante.
Por ano, Arnaldo Martins produz mais de vinte tambores. Muitos desses tambores são oferecidos a outras localidades da ilha que os utilizam nas celebrações das suas festas tradicionais. Em muitas dessas localidades já começam a aparecer novos grupos de tamboreiros interessados em continuar esta tradição de São Nicolau.
A Câmara Municipal da Ribeira Brava está empenhada em incentivar o desenvolvimento desta atividade. Para tal, celebrou um protocolo que prevê a construção de novos tambores para oferecer aos novos praticantes que vão aparecendo um pouco por toda a ilha. Esta atividade é promovida sempre que existem delegações estrangeiras a visitar São Nicolau ou quando se realizam intercâmbios culturais entre as diversas ilhas do arquipélago. No âmbito destes intercâmbios, os KASSAV2 já atuaram em São Vicente e aguardam novas oportunidades para poderem exibir um pouco da cultura musical da ilha em outros pontos do país.
Também com o apoio da Câmara Municipal, Arnaldo Martins criou um grupo de jovens aprendizes que agora começa a dar os primeiros passos na aprendizagem da arte de tamboreiro. Eles serão os perpetuadores desta tradição que agora renasce e que muito orgulha todos os cabo-verdianos e os sanicolauenses em particular.