30 Jul 2013
“Por um desporto novo” – O desporto e o pós-independência em Cabo-Verde*
[su_spacer] Victor Andrade de Melo*Em Cabo Verde, o desporto está organizado desde os anos finais do século XIX, especialmente em São Vicente, em grande parte devido à situação privilegiada de seu porto, que se tornou importante para as rotas navais internacionais. Mais do que influência estrangeira, o desenvolvimento esportivo tem haver com o fato de ter sido mobilizado pelos movimentos de construção de uma identidade caboverdiana. O objetivo deste estudo é analisar a presença do esporte no período pós-independência, quando se percebe a assunção de uma maior relação com o continente africano e com os países do bloco socialista. Para alcance do objetivo, analisamos três periódicos: Alerta!, Novo Jornal de Cabo Verde e Voz Di Povo. Argumentamos que os posicionamentos sobre a prática esportiva nesse período em grande medida nos ajudam a pensar nos debates que cercaram o nascimento da nova nação.
[su_spacer]O Alerta!, dirigido por David Almada, teve vida curta (cinco números) até mesmo por se assumir como “anticolonialista, antifascista, antiburguês, revolucionário, pró- africano e pelo PAIGC” (Oliveira, 1998, p.593) em um momento em que se fazia necessário, pelo menos nos discursos, um pouco mais de equilíbrio em função da situação de transição.
Desde o primeiro número, notícias desportivas estiveram presentes. Na seção “Noticiário de Cabo Verde” vemos informações sobre uma ocorrência comum na história do futebol cabo-verdiano, algo que sempre incomodou e vai continuar incomodando bastante os partidários do regime que está para começar: “Lamentáveis incidentes assinalaram a tarde desportiva do domingo, no Estádio da Várzea. Devido a ameaças de agressão ao árbitro, feitas por jogadores, o desafio Académica-Boavista não passou dos trinta minutos na primeira parte”. O grau e o desfecho dos tumultos parece mesmo ter relação com o momento tenso do arquipélago, ânimos acirrados, que induziam a confrontos com as autoridades. No jogo Sporting-Travadores, um grupo tentou agredir o árbitro, que se escondeu, com a ajuda da polícia, no carro de um particular. O confronto não cessou: o carro e os agentes da polícia foram atingidos por pedras e garrafas. Os policiais reagiram, atirando para o alto, e acabaram atingindo um indivíduo. Os envolvidos transformaram o fato em uma manifestação, que caminhou rumo ao Palácio do Governo com o ferido em mãos.
Na mesma edição do jornal ficamos sabendo que em Mindelo houve confrontos semelhantes, o que levou cerca de três mil pessoas, “representando as forças políticas mais representativas de São Vicente”, a se encontrarem no Grêmio Ddesportivo Castilho, “aprovando uma moção, na qual condenaram a provocação, seguida de violência, contra a população, por parte da PSP”.
O confronto em Praia mereceu ainda mais destaque na coluna dedicada aos desportos. Na matéria “Balanço geral – Jogo – Hostilidade, expulsões, agressões, polícias, tiros, ferimentos, tudo isto atentado contra o Desporto”, A. Correia e Silva afirma:
Não é novidade afirmar que o desporto entre nós está em crise: sempre esteve. Crise de valores. De jogadores. De árbitros. De dirigentes. As poucas exceções não contam. A “futebolite” é epidêmica. Tudo doente. Mas, sobretudo, crise de estrutura. Pior que os doentes é a doença.
Já anunciando o que virá quando chegar o tempo do PAIGC, Silva relaciona esses problemas ao quadro histórico e político cabo-verdiano: “O que se passa no âmbito ddesportivo é o que também acontece noutros aspectos da vida social, ou dito inversamente. Para evitar doentes, só eliminando a doença”.
O tema, com outro enfoque, voltará à coluna de desporto do segundo número de Alerta. Ao comentar a final do campeonato de futebol de Santiago, afirmava o jornalista:
Há alguns anos (…) que a final do Campeonato de Cabo Verde nos vem oferecendo um espetáculo horroroso, manchando não só a ética desportiva como também alimentando o forte bairrismo que opõe a maior parte dos naturais desta ilha à igual facção do “desporto-rei” de São Vicente.
Para ele, isso tem relação não só com o quadro político nacional, mas também com a “ação maléfica” dos meios de comunicação, que contribuíram para a degradação do desporto. Reivindica que sejam pensadas mudanças urgentes, tendo em vista que: “A tentativa de união de todos os cabo-verdianos nunca foi tão necessitada como agora, devendo ela impor-se acima de quaisquer reivindicações que não dizem respeito à maior parte da população”.
Nessa edição é ainda publicado o texto “Desporto – parte integral da Educação”, assinado por Félix Gomes Monteiro, dividido em “Do direito de todos a praticar o desporto”, “Das obrigações do desportista”, “Dos deveres dos técnicos ddesportivos”, “Dos deveres dos dirigentes ddesportivos”. Esboçava-se uma nova visão de desporto, mais adequada aos princípios do que deveria ser um novo tempo.
Já no Novo Jornal de Cabo Verde, maioritariamente o debate fazia referência ao futuro de Cabo Verde, sendo claramente perceptíveis os embates e as tensões entre os diversos grupos políticos locais. Até mesmo por esse quadro, com tantas questões a serem tratadas, o desporto demora a aparecer em suas folhas. Somente no número 8, de 19 de setembro de 1974, vemos uma breve notícia sobre a final do campeonato de futebol, o jogo entre Travadores e Sporting, vencido pelo primeiro.
A primeira posição mais categórica sobre o desporto pode ser observada no número 22, de 9 de janeiro de 1975, um artigo de Jorge Pereira, intitulado “Que desporto…”. Segundo o autor, “Antes propriamente de fornecer os meios necessários à prática de tal ou tal desporto, nesta ou naquela localidade, impõe-se um difícil trabalho de sensibilização e mentalização das pessoas em relação aos benefícios e necessidade de uma prática desportiva livre”. Como se pode ver, segue sendo apontada, a necessidade de uma prática esportiva que esteja sintonizada com os sinais de um novo tempo. Para tal, segundo o autor, o intuito de uma política de desporto deveria ser o de democratização e dinamização cultural, sustentado em três eixos: a escola, o local de trabalho, as associações civis e religiosas. Era um posicionamento bastante impreciso, o lançar de algumas ideias que depois seriam aprofundadas e bastante caras ao Partido Único, pelo menos nos discursos. Naquele momento ainda percebia-se menos um tom propositivo e mais um caráter de conclamação:
Que todos participem na elaboração, discussão e concretização de programas que, no domínio da educação física e desportiva, sejam criadas as condições mínimas permissivas de levar a prática de um desporto para todos por aqueles que sempre por ele pugnaram, por todos os que queiram e sejam capazes.
Nesse sentido, não surpreende que no número 23, de 16 de janeiro de 1975, tenha sido publicado um extrato de um jornal português (não informado): “Para um desporto democrático”. Devemos ter em conta que em Portugal, onde se discutia o futuro a partir da crítica ao longo período de ditadura Salazar/Caetano, também se estava a repensar o papel da prática esportiva no novo país que se esperava construir.
Depois de uma série de breves notícias espalhadas por vários números, algo relevante relacionado à prática esportiva pode ser encontrado no número 32, de 20 de março de 1975. O Grêmio Amarante organizara um torneio de futebol para comemorar seu aniversário e solicitara a Aristides Pereira (na época ainda não presidente, mas já secretário geral do PAIGC) autorização para homenageá-lo com o nome da taça. A resposta de Aristides, na forma de um telegrama, é bastante indicadora de como o desporto passaria futuramente a ser tratado pelo Governo de Cabo Verde:
Sinto–me honrado vossa proposta a qual aceito muito agrado convencido libertação nossa terra pressupõe necessariamente fundamentalmente nossa libertação cultural isso exige esforço crescente campo ddesportivo fim permitir sobretudo nossa juventude de realizar-se totalmente sã física espiritualmente nosso partido garante no seu programa trabalhar sentido criar condições necessárias indispensáveis nosso povo realizar uma política campo desporto totalmente aberta dignos filhos nossa terra sem discriminação valorizando melhor forma aqueles merecedores confiante futuro ddesportivo nosso país independente.
É somente no número 39, de 15 de maio de 1975, que identificamos uma ação mais concreta do Governo de transição: a criação de uma Comissão para a Educação Física e Desporto, formada por três portugueses, três representantes das ilhas de Sotavento e cinco representantes das ilhas de Barlavento, o que demonstra que, pelo menos simbolicamente, São Vicente continuava sobrepujando a capital Praia em prestígio no tema.
Esse órgão deveria propor políticas, propostas e programas a partir de um inventário das ações, dos fundos e dos bens do antigo Conselho Provincial de Educação Física.
POR UM DESPORTO NOVO
Com o fim do período de transição, extinguiu-se o Novo Jornal de Cabo Verde e é lançado o Voz di Povo, em 17 de julho de 1975, mesmo dia em que toma posse o primeiro Governo. Carlos Reis ficou responsável pela pasta de Educação, Cultura, Juventude e Desportos.
Nos primeiros números do novo periódico, as matérias fazem uma prestação de contas de projetos para o desenvolvimento do país. Algumas notícias esparsas sobre o desporto são publicadas, mas é mesmo somente na edição de 21 de novembro de 1975 que o tema é abordado diretamente na matéria “Por um desporto novo”. Já se percebem os novos pressupostos políticos em vigor:
Com efeito, o vedetismo, o sensacionalismo, o desporto comercializado, com venda e compra constante de jogadores, o atleta escravizado, são fatos que não podemos deixar de deplorar, dado que são a negação do desporto como atividade saudável, não só para o corpo, como para o espírito.
Segundo o posicionamento do jornalista (que de alguma forma tinha a responsabilidade de expressar a posição do Partido), havia um excesso de atenção para com o futebol, que no tempo colonial teria servido como forma de alienação e divisão do povo cabo-verdiano, uma chave usada para entender os constantes tumultos e a má-organização dos torneios. Assim, afirma-se: “Não pretendemos minimizar o chamado ‘desporto-rei’, mas tão-só chamar a atenção dos nossos desportistas para outras modalidades”.
A promessa era de que com a independência tudo mudaria. Os jogos agora deveriam ser encarados como forma de confraternização e união, “tanto da parte dos jogadores, como do público, finalmente conscientes de serem filhos da mesma terra e de se estar a viver uma situação totalmente nova”.
No novo cenário político propugnou-se constantemente essa noção de que devia-se construir um desporto que expressasse o novo homem cabo-verdiano. Essa visão de alguma forma dialogava com as próprias ideias de Amílcar Cabral, de que a pequena burguesia devia suicidar-se como classe para renascer em outra condição, supostamente mais antenada com os desejos do povo.
A compreensão sobre o desporto estava plenamente adequada à linha de ação geral do PAIGC: o uso de rituais e discursos típicos do nacionalismo, o estímulo ao ódio em relação a supostos inimigos, a oposição à pequena burguesia e intelectuais (Anjos, 2006). No número 20, de 5 de dezembro de 1975, mais uma vez vemos o novo enfoque político na notícia sobre a partida final do primeiro campeonato de futebol pós-independência, que contou com a presença do presidente Aristides Pereira e de todo o corpo ministerial (inclusive Carlos Reis). A ocasião foi celebrada como renascimento do desporto em Cabo Verde e oportunidade para reafirmar os compromissos e desafios do novo regime no que se refere à prática: “O desporto, para que cumpra a função na sociedade nova, tem que se encaminhar pela via da desalienação, a fim de se consciencializar e melhor servir a sua massa de praticantes”. A proposta era:
Massificação e diversificação das atividades desportivas, particularmente para as modalidades que durante a época colonial nunca se efetuaram ou foram praticadas de uma forma inconsequente, desintegradas do sistema educativo e caracterizadas por uma quase ausência de técnica.
As críticas sempre tinham em conta estabelecer um contraponto com o período colonial:
Desempenhando um papel bastante educativo na evolução duma sociedade, o desporto exige, nessa fase de Reconstrução Nacional, uma atenção delicada. Foco donde provinham graves ameaças para a sociedade cabo-verdiana – divisionismo, alienação, etc., o desporto foi então inteligentemente utilizado pelo inimigo com a finalidade de fazer enfraquecer nossa unidade. Na nova sociedade que pretendemos construir o desporto terá que ser modelado de acordo com a nossa realidade, para satisfazer os reais interesses da massa.
As coisas, contudo, não seguiram exatamente o que esperava o pensamento oficial. Da mesma forma que os envolvidos com o desporto não seguiram exatamente o que esperava o poder colonial, também não o fizeram com o encaminhamento do Partido Único, até mesmo porque, do ponto de vista dos resultados, algo que interessa centralmente aos membros do campo desportivo, não houve grandes mudanças (nem seria possível em tão pouco tempo e no quadro conjuntural do arquipélago, que tinha mesmo problemas mais urgentes a resolver).
Na edição de 18 de setembro de 1976, o jornalista não consegue conter a decepção, a despeito de ter tentado a todo custo provar o quão fora importante a participação de equipes de futebol de Cabo Verde em um quadrangular internacional:
Razão tínhamos nós quando (…) nos mostrávamos seriamente apreensivos em relação ao torneio quadrangular (…). Com efeito no final dos quatro jogos (…) vimos plenamente confirmados (…) o fraco nível técnico e tático das nossas equipes de futebol e o mal que pesa sobre essa modalidade em Cabo Verde.
O tom de desculpa, , fica também claro em matéria publicada em 1977:
Sendo Cabo Verde um país subdesenvolvido não é de esperar que ele (o desporto) tenha de imediato a craveira olímpica. Aliás, o desenvolvimento do desporto não deve, segundo cremos, ter por objetivo ir aos Jogos Olímpicos, antes visará as massas populares, não essencialmente mas sim como participação.
Nas notícias, constantemente, é possível perceber essa dubiedade: a crítica do “desporto capitalista”, mas o desejo de obter bons resultados internacionais; a ideia de “servir ao povo”, mas também de garantir uma maior projeção mundial. Isso fica explícito, por exemplo, quando o jornal celebrara intensamente o 4º lugar do cabo-verdiano José Correia na Corrida de São Silvestre de Angola. Ao ser entrevistado o treinador, e perguntado o porquê de não um resultado melhor, a resposta beira o hilário: “Há alguns vícios que um atleta tem de por de lado (tabaco e álcool inclusive) e já falei com o Zé acerca disso porque atualmente ele tem um papel a desempenhar servindo de exemplo aos mais jovens”.
Enfim, se para o Partido Único o desporto era uma ferramenta de formação, para os envolvidos era uma ocasião de festa: Zé Correia não via nenhum problema em fumar, beber, não treinar e correr. O problema é que isso feria não só a base moral, como também o desejo de melhores resultados.
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A esse caráter moral, ligado aos novos moldes de discurso político, também agredia uma velha ocorrência: a todo tempo vemos em Voz di Povo que seguem os conflitos entre jogadores e torcedores por causa dos resultados. No número 37, de 10 de abril de 1976, conclama-se: “Os jogadores precisam perder o feio hábito de falarem entre si e com o público e este deve deixar de dar instruções constantes ao jogadores em campo”. Esses comportamentos eram considerados uma traição dos princípios da nova sociedade: “Um jogo de futebol pode dar origem a uma lição de ética, pode constituir uma aula de moral. Mas no domingo, no campo da Fontinha, essa imagem foi desvirtuada”.
Os antigos conflitos entre São Vicente e Santiago parecem não só seguir como mesmo se acentuaram, provavelmente, inclusive, em função das novas orientações políticas, menos apoiadas pelos de Mindelo. Mesmo tratando-se de um jornal oficial, que obviamente filtrava as informações, é possível perceber algo dessas tensões no âmbito do campo desportivo:
Prosseguindo na política de renovação do nosso desporto, a Académica do Mindelo levou a efeito um torneio de futebol integrando equipe de Santiago, Sal e São Vicente (…). Iniciativa louvável e ao mesmo tempo arrojada, já que no primeiro caso as ilhas, antes afastadas (…) agora passam a integrar o desporto nacional com toda sua força nacional.
Na verdade, em meio a tantos problemas, o Governo cobrava o que não dava, e isso acabou perceptível na observação do jornalista em matéria publicada no Voz di Povo de número 74 (de 1 de janeiro de 1977), fazendo um balanço do desporto em 1976 (“Dessa coisa chamada desporto a essa gente chamada desportista”). Já de início o jornalista dá indícios que o tema sofre alguma forma de discriminação: “não minimize a página desportiva do jornal. E se o seu estatuto de estagiário para intelectual ou de intelectual já confirmado lhe põe sérios problemas de ordens éticas, leia o ‘desporto’ disfarçadamente”. Há claros indicadores de que, no novo quadro histórico, mudara a consideração para com a prática, por razões operacionais (dificuldades económicas), mas também por motivos políticos (a ideia de que havia muita alienação ao redor da prática, o que no arquipélago poderia até mesmo ser relacionado à força de Mindelo, centro das divergências, nesse campo).
Por fim, o jornalista tenta encontrar alguma justificativa para o quadro desportivo da época: “Claro que falamos aqui de desporto no seu sentido e dimensão universais que, por enquanto, em Cabo Verde, anda um pouco esquecido. Que é evidente, há tarefas mais prioritárias. Mas havemos de chegar lá”.
Em um balanço da história do desporto em Cabo Verde definitivamente se aceita o limitado quadro do desenvolvimento desportivo; conecta-se, contudo, o estágio da época com as deficiências do passado, algo que pode ter muito incomodado os mindelenses, com suas ideias de que fora glorioso o passado da prática esportiva na Ilha de São Vicente: “Longe de nos pretender dizer que somos um povo rico de tradições desportivas e que fomos exímios no passado. Nada disso, de uma forma ou de outra, andamos sempre a tatear”. Esse tipo de posicionamento, aliás feria uma construção identitária muito forte para os de São Vicente: a de que a ilha dera grandes contribuição para o desporto nacional, entre outras tantas de natureza cultural.
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REESTRUTURANDO O CAMPO
A partir de 1977 algumas mudanças começam a ser implementadas, um processo que se tornará mais claro nos anos iniciais da década de 1980. O Voz di Povo de 22 de janeiro de 1977 (ano 2, número 7) anuncia que a recém criada Comissão Nacional de Educação Física e Desporto tentaria reestruturar e impulsionar o desporto nacional, a partir da constatação de que havia falta de espaços adequados para a prática, deficiência de técnicos especializados e mesmo desinteresse dos jovens.
O curioso: informa-se que os membros estiveram reunidos com líderes do desporto de São Vicente a fim de apresentarem o plano de desenvolvimento e coletarem sugestões. Na ocasião, é possível perceber que havia alguma movimentação esportiva em São Vicente, competições esparsas de remo, natação e ciclismo, mas constantemente alguns torneios de golfe, além do campeonato de futebol.
Em 1977 começa a ser realizado o que foi chamado de campeonato popular de futebol, procurando atingir um conjunto maior da população. Esses novos campeonatos tinham em vista que “a pratica do futebol popular, como a própria denominação indica, tem um alcance dinamizador e largado, na base de um conceito ddesportivo massificado, em especial entre os jovens”. Às subcomissões era apresentada a “tarefa árdua (…) de programar, espalhar e desenvolver o futebol, organizativamente” para aqueles que não se encontravam federados.
A ideia continuava sendo a de que “no dia que os jogadores se apresentarem como paradigmas de comportamento social, o futebol exercerá uma tarefa de educação quase coletiva”. Seguiam as preocupações com as brigas e confusões em bares e estádios, o que era encarado como um contrassenso à nova proposta de desporto do Governo.
Assim, não devemos crer que as intencionalidades tenham mudado bruscamente naquele ano de 1977. Vejamos, por exemplo, que, por ocasião das comemorações do dia da nacionalidade, Aristides Pereira teceu considerações sobre a importância do desporto em Cabo Verde, expressando a confiança que o partido e o Governo depositam no homem cabo-verdiano, que também se deve formar na escola do desporto para a realização, através de todos os sacrifícios, de uma vida de progresso e bem-estar social.
O que mudara então? Três dimensões merecem destaque: a tentativa de efetivamente estruturar ações governamentais para além do discurso; as iniciativas de tentar recuperar os vínculos com São Vicente; a busca de inserção no cenário internacional: o país começa a solicitar sua aceitação no Conselho Superior do Desporto da África, na zona desportiva número 2; veremos que esse tipo de vínculo no futuro ocasionará significativas mudanças na política esportiva.
Uma vez mais vemos a relação entre os problemas nacionais e o desejo de integrar o cenário desportivo internacional na matéria publicada no Voz di Povo de 18 de fevereiro de 1978 (ano 3, número 132). De um lado, o mesmo discurso oficial do partido: “O que se quer acentuar é que torna-se necessário revolucionar a mentalidade desportiva atual que faz o culto do vencedor, cria mitos, impõe a vitória a qualquer preço e é um eterna fonte de conflitos”.
Estava por vir a grande entrada de Cabo Verde nas competições internacionais. Anuncia-se para o ano de 1979 a realização da primeira edição da Taça Amílcar Cabral, a ser disputada anualmente entre seleções africanas da zona 2 do Conselho. O intuito anunciado era homenagear o líder africano.
Antes disso, organizara-se em Bissau um quadrangular com as seleções de Mali, Guiné Conacri e Guiné-Bissau: a primeira vez que um selecionado cabo-verdiano representaria oficialmente o novo país. Saúda o jornalista de Voz di Povo:
Todos nós sabemos as dificuldades que se nos deparam para formar uma seleção que seja representativa do valor real do futebol cabo-verdiano. A descontinuidade do território não permite uma apreciação global dos atletas não só por escassez de contactos interilhas, mas também por inexistência de um selecionador permanente.
(…) Mas também é verdade que esta participação cabo-verdiana deve ser encarada, principalmente como um contato necessário para o desenvolvimento do nosso desporto. É preciso acabar com este isolacionismo a que fomos votados durante os anos de dominação colonial e que tão prejudicial foi o nosso desporto.
Assim, cercado de grande expectativa, o selecionado de Cabo Verde se desloca para o evento em Bissau. Mesmo que com algumas justificativas, é inegável a apreensão do jornalista ao comentar os preparativos:
A descolorida e apática exibição que desagradou ao público que acorreu, em número razoável, ao Estádio da Várzea, não é compatível com o nível, ainda que modesto, do nosso futebol. Quanto mais não seja, espera-se mais brio por parte dos atletas a quem foi dada a honra de representar o futebol cabo-verdiano, sem perder de vista o aspecto essencialmente ddesportivo de nossa participação, que não pode ser ensombrada por “chauvinismo” ou nacionalismo exacerbado.
Pelas páginas do jornal não conseguimos saber mais informações sobre os resultados (e sua ausência pode ser um sinal de que por lá as coisas não andaram muito bem). Sabemos, contudo, que nova atividade internacional foi prevista para a comemoração do 3º ano de independência nacional: um torneio de futebol para o qual foram convidadas representações de Angola, S Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique, uma seleção de emigrantes cabo-verdianos da Holanda, além de Cabo Verde. Foram também programados torneios internacionais de tênis e golfe.
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Há que se observar que, nesse contexto de construção de uma imagem internacional, o golfe volta às páginas do Voz di Povo, obviamente cercado por justificativas quanto a seu suposto caráter elitista, algo que acabou por fazer reemergir uma antiga representação do arquipélago: a de que em Cabo Verde esse desporto sempre foi popular. Na matéria denominada “Golfe cabo-verdiano tem nível internacional”, afirma o jornalista:
O golfe é uma modalidade desportiva de longa tradição em Cabo Verde e que atingiu um nível excelente, razão porque deve ser apoiado e incentivado. Uma certa acusação de elitismo e de “ricaços” aos seus praticantes não nos parece fundamentada, na medida em que os clubes existentes, na Praia e em São Vicente, têm as suas portas abertas a todos os interessados na prática salutar deste desporto.
Vale destacar matérias como as que anunciaram que José Borges, filho de um trabalhador das alfândegas e de uma empregada doméstica, empregado do Clube de Golfe e Tênis de Praia, venceu um torneio. Reforçava-se a representação: em Cabo Verde, gente do povo chega a ser campeã.
Enquanto isso, segue a expectativa e os preparativos para a participação do país na Taça Amílcar Cabral. Logo surge uma nova necessidade: a filiação à FIFA e a Confederação Africana de Futebol (CAF). Pelas páginas do jornal vemos a celebração dessa possibilidade, a exaltação da necessidade de reestruturação do desporto nacional e fundamentalmente como isso interferiu nas políticas governamentais.
Ainda assim surgem pequenas discordâncias, manifestas mesmo pelas páginas do periódico oficial. Na edição de 6 de dezembro de 1978 (ano 3, número 171), o título da matéria já dá o tom da argumentação: “Arrumar a casa primeiro e só depois participar lá fora”. O teor é de novo a tensão sobre os sentidos que o desporto deve ocupar no cenário político cabo-verdiano:
Definir de antemão que tipo de desporto (competição ou de massas) se pretende erigir e posteriormente lançar as bases para o seu relançamento, deverá ser uma das primeiras tarefas da Direção Nacional de Educação Física e Desportos. Essa opção implica, desde já, uma tomada de posição clara a fim de se evitar a indefinição atual da nossa prática desportiva que ainda persiste nos moldes de antigamente.
TAÇA AMÍLCAR CABRAL: A ESTREIA DA NAÇÃO
Enfim, é chegado o grande dia. A bandeira e as cores cabo-verdianas, os símbolos do país independente, finalmente seriam expostas em uma competição internacional oficial, carregadas por novos heróis que deveriam honrar a gloriosa história da nação. Pouco importa que se tratava de uma competição menor no quadro futebolístico internacional. Era o máximo que podia o país naquele momento, além do que eficaz enquanto ferramenta de mobilização interna. Mais ainda, o torneio homenageava o grande líder Amílcar Cabral, aquele cujas palavras e imagens não saiam das páginas do Voz di Povo, eleito pelo regime vigente como a maior representação do que deveriam ser seus concidadãos. As emissoras de rádio cobriram o evento, mandando o maior número possível de informações para os ávidos cabo-verdianos.
A participação na Taça Amílcar Cabral também tinha haver com uma situação específica: o projeto de Estado Único com a Guiné-Bissau. Por vezes equipes cabo-verdianas para lá se deslocavam, para participar de comemorações ou festivais, como forma de reforçar os supostos laços de amizade entre os países. Antes houvera inclusive o já citado quadrangular de Bissau. Mas agora o intuito era outro: representar o país em uma competição oficial.
Assim, o Voz di Povo de 8 de janeiro de 1979 sacramenta no título da matéria: “Cabo Verde na alta roda do futebol africano”; o selecionado já estava em Bissau para disputar a contenda com equipes de Mali, Gâmbia, Senegal, Guiné- Bissau, Guiné Conacri e Mauritânia. O tom, é verdade, não era lá muito otimista; a equipe tivera dificuldades de preparação, inclusive em função das despesas. De qualquer forma, a nação ia entrar em campo.
Confirmou-se o tom pessimista: os resultados não foram muito bons para a seleção insular. Antes de começar o jogo contra Guiné-Bissau (ao fim vencido pela equipe da casa por 3 x 0), o treinador de Cabo Verde informa que muitos jogadores foram atingidos por paludismo. É muito provável que seja verdade, esse era um problema comum naquele país, mas também se conseguira uma desculpa para o desastre: o selecionado não fez nenhum ponto, nem um golo sequer.
Pelos jornais cabo-verdianos não conseguimos saber mais. Posteriormente, na edição 176, de 24 de janeiro de 1979, somente vemos notícias sobre as atividades esportivas organizadas por ocasião do Dia dos Heróis Nacionais, ocasião na qual uma vez mais se reiterou a importância e valor do desporto, bem como se falou das dificuldades nacionais nesse âmbito. O fato é que, por problemas diversos, uma vez mais o campeonato nacional de futebol não se realizou, o mesmo que ocorrera no ano anterior.
A matéria publicada na edição de 14 de fevereiro de 1979, retoma a célebre pergunta: “Que desporto em Cabo Verde?”. As constatações são as de sempre, de maneira alguma infundadas: as múltiplas dificuldades e deficiências para que se implementasse uma prática esportiva de melhor qualidade. A Comissão de Educação Física e Desportos mais uma vez entra na berlinda. O Voz di Povo ainda celebra a criação de cursos de iniciação desportiva para jovens na Achadinha, os vendo como caminho concreto para a massificação do desporto. Mas o tom era mesmo de pessimismo.
Pode-se perceber que várias modalidades continuam a ser praticadas, alguns torneios organizados, os escolares mobilizados para competições. A Juventude Africana Amílcar Cabral passa a ser envolver ativamente com ações esportivas. Todavia segue a questão que parece sempre incomodar: se a participação esportiva internacional deve ser considerada um elemento importante para a visibilidade do país, como compor equipes competitivas, contando com poucos recursos e ainda tendo que lidar com a ideia de que a principal função do Governo era estimular a massificação?
O país não enviara representação para a Taça Amílcar Cabral de 1980, o que causou grande polêmica interna. De outro lado, uma vez mais, nos festejos de comemoração da independência, entre as competições de várias modalidades, organiza-se um quadrangular de futebol com seleções de Senegal, Guiné-Bissau e Guiné Conacri. A equipe cabo-verdiana, treinada por Du Fialho, tendo Toca como assistente, era formada por 13 jogadores de São Vicente, 8 de Santiago, 4 de Sal e 1 do Fogo. O desporto foi a base das comemorações, a mobilização da nacionalidade era explícita.
Depois de muito tempo, uma novidade, um nome volta às páginas dos jornais, na seção de notícias de desporto: Joaquim Ribeiro. Logo nos primeiros meses de 1980, vemos esse antigo líder do jornalismo e do desporto de Cabo Verde exercer a sua verve crítica. No Voz di Povo de 5 de março de 1980, na matéria “Não brincar com o desporto”, ele responde a crítica feita por Luís Carlos Vasconcelos na edição anterior, levantando a história da prática no arquipélago, ressaltando a falta de investimentos e criticando que Cabo Verde não enviara equipes para a última edição do Torneio Amílcar Cabral.
O debate parece ser de natureza múltipla: geracional – antigos versus novos líderes; política – uma sutil crítica ao abandono, por parte do PAIGC, das construções culturais do arquipélago (em nome do intuito de construir um país novo); cultural – o abandono de São Vicente e suas tradições seria uma expressão dos dois itens anteriores.
Na verdade, muitos antigos líderes desportivos de São Vicente, e da nação, deixaram o país no pós-independência, exilados politicamente. Por exemplo, Evandrita morreu em Portugal em 24 de outubro de 1976, tendo sido bastante homenageado em São Vicente. Depois de certo ostracismo nos primeiros momentos da independência, identificados que foram com a antiga defesa de uma relação mais próxima com a antiga metrópole, em função da não participação direta nos conflitos armados e/o por discordar da adoção do socialismo, uma relativa abertura trouxe de volta antigos protagonistas que passaram a ser sentidos como necessários para a construção da nação.
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Nesse mesmo ano de 1980, reaparece outro líder do desporto cabo-verdiano: Antero Barros, na sua contumaz defesa da importância do golfe, comentando um torneio realizado no país. Depois de narrar as peculiaridades do desporto, lembra: “mais uma vez o golfe provou ser a modalidade esportiva em que estamos mais habituados a competir no nível internacional. Pela 3ª vez consecutiva, os nossos jogadores venceram os jogadores portugueses”.
Um pouco mais a frente veremos também de volta as posições de Baltasar Lopes. Por exemplo, em 1984, numa cerimônia de homenagem a João André Barros, Nhô Fula, pai de Antero Barros, um dos mais célebres desportistas de Mindelo, vemos também em sua fala a velha defesa do cricket e do golfe. Aproveita para fazer uma crítica à ação governamental: “afigura-se que a tônica de uma boa política desportiva entre nós, deve ser posta nos desportos individuais (e individuais, mesmo se inseridos numa atividade de grupo), tais como o cricket, o golfe e o atletismo”.
Na verdade, Lopes já tinha tomado posição semelhante alguns anos antes, quando fizera o prefácio do livro de Barros (1981). Na ocasião afirmara:
Nunca se esboçaram, sequer, nas esferas governamentais as linhas mestras de uma política esportiva, melhor dizendo, de educação física. O resultado é que viemos a cair na inflação futebolística, com a total hegemonia da modalidade menos aconselhável, dentro do nosso condicionamento social e econômico, numa perspectivação do chamado desporto de massa.
Mais ainda, voltando ao discurso de 1984, ao exaltar Nhô Fula como herói, acaba por contrapor as figuras heroicas que tinham sido eleitas pelo PAIGC:
Apregoamos que a superação da nossa insularidade e, com o estabelecimento de relações assíduas, a formação de uma consciência de unidade, precursora indispensável da independência, essa superação – dizia – foi em grande parte obra dos homens humildes e corajosos que, numa rotina diuturna de navegação costeira e estimada, levavam os veleiros de porto em porto.
Heróis, ou ao menos as figuras a serem exaltadas, não eram necessariamente (ou ao menos exclusivamente) aqueles que lutaram nas selvas da Guiné, mas também (ou principalmente) aqueles que por sua experiência pessoal (obviamente estamos falando de representações) expressaram e ajudaram a construir o jeito cabo-verdiano de ser, marcando a peculiaridade de um povo e de um local no cenário mundial.
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A crítica também está presente nas palavras de Antero Barros, proferidas na ocasião em que fora homenageado pelo Clube de Golfe de São Vicente (depois da independência deixou de ser Clube Anglo-Português), em outubro de 1980. Ele abre seu discurso afirmando: “Começo por informar-vos que (…) está-se a dar ao nosso desporto uma nova estrutura, imprimindo-lhe uma nova filosofia, melhor adaptada às nossas realidades e às nossas necessidades”).
Podemos supor que aqui não se encontra exatamente sua vinculação à ideia de “desporto novo” do PAIGC, mas uma proposta que sucede a essa no novo quadro que se está construindo no início da década de 1980. De toda maneira, não parece desprezível o diálogo com as novas questões do pós-independência: “pretende-se fazer do desporto um meio de aperfeiçoamento individual e coletivo, um fator de integração nacional, ou seja, criar um desporto que nunca divida os cabo-verdianos, mas sim que os una cada vez mais, para a construção de uma Pátria forte e próspera” .
Em Cabo Verde, afirma, as coisas se passaram de forma distinta. Para ele, isso tinha haver com uma antiga ideia que sempre defendeu: o caráter popular do golfe no arquipélago, especialmente em São Vicente: “Creio que o nosso Clube constitui a única exceção no mundo. Não há no mundo outro clube de golfe, de raiz profundamente popular. Esta é a nossa coroa de glória que devemos manter a todo custo”. Para Antero Barros, foi isso que impediu que o clube acabasse, ainda que “alguns elementos do poder constituído (Partido e Governo) fossem alheios ao golfe”. O seu desejo de conexão com o passado é de tal ordem que conclui sua fala propondo que se faça uma reforma dos estatutos: “no ato da revisão, façamos justiça histórica – agora que nos é possível fazê-la -, restituindo ao nosso Clube o seu verdadeiro nome de LORD GOLF CLUB DE S. VICENTE”.
Na verdade, ao final do ano de 1980, duas ocorrências vão ter significativo impacto no país: a promulgação da primeira constituição de Cabo Verde, que inclusive previa, que “Incumbe ao Estado encorajar e promover a pratica e difusão dos desportos e da cultura física”; e o golpe de Estado na Guiné, com a deposição de Luís Cabral, o que daria fim ao projeto de construção de um Estado Único. Com isso, a ideia de uma identidade africana se relativiza: “com o fim da unidade, criaram-se as bases para uma paulatina desideologização da cultura, possibilitando o resgate parcial dos achados culturais claridosos, antes votados ao ostracismo, sem perda relativa para a herança afro-negra reabilitada”.
Enfim:
Até a década de 1980 a elite do PAIGC buscou enfatizar a importância dos “combatentes”, que, da mata da Guiné, teriam trazido a liberdade, minimizando o papel concorrente da luta dos seus quadros da clandestinidade que continuaram no arquipélago. Entre oitenta e noventa se destacou a importância dos movimentos culturais anteriores do PAIGC no processo de formação da nação cabo-verdiana.
É nesse ambiente de reconciliação com o seu passado, e certamente de tensão interna, que a seleção de futebol cabo-verdiana parte para disputar a 3ª edição da Taça Amílcar Cabral (1981), em Mali, obtendo o que foi considerado um honroso 4º lugar. O detalhe curioso: a realização de um jogo entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, vencido pelo primeiro pelo placar de 3 X 0, ocasião que acabou revestida de caráter político: “O clima era tenso entre os meios ddesportivos da capital maliana”. O Voz di Povo comemora a participação: “quando partimos da capital, séria responsabilidade pairava no espírito dos 20 jovens que condignamente representaram as cores nacionais: ‘Cabo Verde espera que cada jogador de o Máximo de si’ – havia afirmado o Ministro da Educação e Cultura Carlos Reis”.
O ano de 1981 traria muitas novidades para o país. Na estrutura governamental, observa-se uma série de mudanças. O PAIGC deixa de existir e é renomeado para PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). Na pasta de Educação e Cultura, responsável pelas questões do desporto, José Araújo assumira. A Diretoria Geral de Desportos era dirigida por João Burgo Tavares, e logo se instalará também um Gabinete de Coordenação do Desporto, dirigido por Antero Barros. É constituída uma comissão para organizar uma assembleia que vai se debruçar sobre o tema; sua composição permite vislumbrar o quadro de transição, o equilíbrio entre o “antigo” e o “novo”: Luis Fonseca (pela Juventude Africana Amilcar Cabral), João Burgo, Abailardo Barbosa (pela FARP), Antero Barros (pelo Ministério) e Joaquim Ribeiro (representante do desporto).
Em longa entrevista concedida ao Voz di Povo, o novo ministro dá algumas pistas desse novo momento, mesmo que antigas ideias sigam presentes no discurso: “a política do Governo em relação ao desporto assenta no valor que o Partido reconhece, o desporto como fator de formação do homem novo em Cabo Verde”.
Uma das discussões centrais era a necessidade de “africanizar o desporto”, o que em boa medida era compreendido como inserir Cabo Verde ativamente nas instituições esportivas do continente, especialmente da zona 2 do Conselho Superior dos Desportos de África. Para o ministro, a despeito das dificuldades, financeiras materiais, isso deveria ser buscado tanto porque projetaria o país internacionalmente quanto porque “a africanização de nosso desporto dá um novo alento à concepção da Unidade Africana”.
José Araújo comemorava, assim, que São Vicente fora escolhido para sediar a 7ª Conferência dos Ministros de Juventude e dos Desportos da zona 2. Informa também que o país já começava a se preparar para ingressar na FIFA (o que ocorreu em 1986) e no COI, com a criação das cinco federações exigidas para tal. É o próprio primeiro ministro Pedro Pires que abre a 7ª Conferência, expressando o orgulho de sediar o evento, conclamando que as decisões apontem para uma prática esportiva que contribua para que a juventude livre-se definitivamente de “heranças coloniais” e aponte um futuro glorioso para o continente africano.
Para o ministro José Carlos, isso era uma prova de que, depois de passados alguns anos da independência, o desporto começa a ganhar espaço entre as preocupações governamentais, revertendo o que fora, no seu ponto de vista, “uma atividade marginal no período colonial, período em que, de um modo geral, as iniciativas não eram encorajada e as atividades desportivas careciam de apoio”. No seu modo de entender, naquele momento, só havia interesse pelas “manifestações desportivas que poderiam servir aos objetivos de desmobilização no que tocava aos grandes problemas com que nosso povo se debatia”.
Um dos indicadores desse novo momento é exatamente o fato de o país ter assumido a responsabilidade de sediar a 4ª edição da Taça Amílcar Cabral. De um lado, diz o ministro: “para nós isso tem uma importância de caráter político, podemos dizer, visto que essa taça traz o nome do Fundador de nossa nacionalidade, para nós é importante que a sua disputa tenha também lugar na nossa terra”.
De outro lado, ele lembra que isso será fundamental para chamar a atenção sobre o tema no cenário interno, induzirá reformas de espaços desportivos, possibilitará o intercâmbio. Além disso, contribuiria para a inserção de Cabo Verde no cenário africano.
Cabo Verde, assim, ao mesmo tempo em que melhor estrutura sua política de desportos, se prepara para organizar a 4ª Taça Amílcar Cabral, ações que devem ser compreendidas já como expressões de um novo momento no país: os novos pressupostos pós-independência se ajustam com uma antiga representação de cabo-verdianidade.
Se a participação na 1ª edição da Taça Amílcar Cabral significara a grande estreia do país no cenário internacional, agora mais ainda tratava-se de demonstrar que Cabo Verde tinha condições de receber delegações estrangeiras, colocando à prova sua capacidade organizativa, sua condição de ser aceita no grande tabuleiro geopolítico mundial: não era uma questão somente esportiva, a jovem nação estava em jogo.
A Taça Amílcar Cabral seguirá sendo durante muitos anos a grande referência nacional em matéria de competição internacional, a “nossa copa do mundo”, como por vez e outra a ela se referiu um jornalista. Quando, em 2000, quase 10 anos depois da adoção do multipartidarismo (que se deu em 1991), no mesmo Estádio da Várzea, Cabo Verde, que de novo sediava o evento (a 12ª edição), conquistasse a vitória na final disputada contra a seleção de Senegal (1 x 0), o país inteiro comemoraria a sua maior conquista internacional.
É verdade que aparentemente tal comemoração fora, em certo sentido, “tumultuada” (ou ao menos minimizada), na opinião de alguns, pela vitória do Sporting no campeonato nacional da antiga metrópole. De qualquer forma, os “tubarões azuis” finalmente fizeram tremular no mais alto patamar de um evento internacional a bandeira do país; já não mais a do período do PAIGC, mas sim a do período pós- abertura, adotada a partir do momento em que o Movimento Pela Democracia (MpD) assumiu pela primeira vez o poder.
Como foi possível perceber, como de costume na história do arquipélago, os posicionamentos sobre a prática desportiva dramatizam e ajudam a pensar nos debates que cercaram o nascimento da nova nação.
[su_spacer] * Universidade Federal do Rio de Janeiro**O presente texto está escrito em português do Brasil, conforme a versão original do autor [su_spacer]