17 Mar 2021
O fim da inevitabilidade
A situação a que se remeteram os cabo-verdianos contratados e os seus descendentes em São Tomé e Príncipe é algo que, à primeira vista, confunde e se confunde. A aceitação tácita dos condicionalismos pelos quais se pauta a vida destas comunidades é algo que não deixa ninguém indiferente. Vivem com o possível e não ambicionam outro estado que não aquele que sempre conheceram. Não é uma resignação, mas apenas e só, uma couraça protectora contra novos desalentos.
Apesar da grande maioria dos antigos serviçais do regime colonial que aqui se encontra terem, há já muito tempo, decidido de livre vontade não regressarem a Cabo Verde, enfrentam atualmente o problema da tomada de consciência que, a questão central, já não é responderam à pergunta porque não saíram, mas sim porque ficaram? Gerem, da melhor forma possível, o processo de interiorização que os leva a concluir que, jamais regressarão à sua terra natal e isso torna-se difícil de assimilar. Nos mais velhos, os condicionalismos normais da idade (pois a perda da vitalidade da juventude, quase toda consumida no penoso trabalho das roças, assim os limita), e os laços de sangue que os ligam, de forma permanente, à terra e às relações que os seus descendentes nela estabeleceram, adensa-lhes este estado de perda permanente. Sentem-se incapazes de assumir a responsabilidade de terem que, hipoteticamente, fomentar a integração dos mais jovens num outro contexto sociocultural que não o seu. Estes são, em última análise, os dilemas que, dia após dia, enfrentam. Como tal, embora injusta e desprovida de expectativas, os cabo-verdianos que ficaram em São Tomé e Príncipe veem-se obrigados a aceitar a dura realidade em que mergulharam as suas vidas e as dos seus descendentes.
É evidente que, no processo de acomodação a uma realidade difícil, há histórias de sucesso e insucesso, tanto ao nível da integração pessoal, quer no que se refere à afirmação da sua identidade enquanto grupo. Para muitos dos casos de insucesso que presenciei, contribuiu de forma significativa a autoexclusão a que que relegaram muitos deles. Talvez tenha sido esta a forma encontrada para alguns se protegerem e defenderem das adversidades do incerto. Para estes, a aposta nas relações de grupo permite-lhes um maior grau de pseudoimunidade face às adversidades sociais. O facto de partilharem um passado, um presente e, eventualmente, um futuro comum, possibilita-lhes, no seu ponto de vista, a afirmação da sua identidade enquanto herdeiros de um passado também ele comum. Como tal, acomodam-se às dificuldades e vivem fechados em si próprios, não por incapacidade de comunicarem com o exterior, mas porque desta forma se sentem mais coesos na partilha da sua desgraça. Depois há os que conseguiram libertar-se e se integraram. Contactei com alguns destes que, apesar de também serem descendentes de cabo-verdianos, não se resignaram à exclusão e acabaram por concretizar a sua plena integração com a restante sociedade. Como eles, existem outros que poderão servir de elo de ligação entre as inúmeras comunidades cabo-verdianas existentes no território e as autoridades são-tomenses — até porque muitos deles são, efetivamente, são-tomenses. É que, a sua ligação a Cabo Verde existe apenas por direitos de origem.
A atual situação em que vivem estas comunidades resulta de uma aceitação velada de todos os seus intervenientes, inclusive dos governos de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde. Com base no livre arbítrio da escolha, a grande maioria está em São Tomé e Príncipe por opção própria. Inclusive, muitos deles outrora partiram e acabaram por regressar. O degradar das expectativas que criaram (e que lhes foram também criadas), conduziu-os à situação em que hoje se encontram e da qual, sem uma intervenção objetiva dos dois governos, dificilmente sairão. Vivem problemas graves ao nível da saúde, dos valores morais e cívicos que acabam, muitas vezes, em redundar em complexas questões intersociais as quais poderão, no limite, colocar em causa a própria saúde pública. A promiscuidade e a degradação dos ativos éticos são consequência direta desta acomodação que é imperioso combater. Desta forma, a abordagem dos Estados deverá ser revista, não numa ótica de mero existencialismo, mas numa atitude mais pragmática no combate à exclusão a que muitos se remeteram. É, pois, urgente identificar com objetividade as carências e as necessidades para então se intervir. Atirar dinheiro para cima dos problemas em nada irá alterar a condição destas pessoas, antes pelo contrário, poderá mesmo assumir um papel oposto ao pretendido, pois o sedentarismo em que muitos vivem, aliado aos vícios dele resultante, como por exemplo, o alcoolismo que assume dimensões preocupantes no seio destas comunidades, poderá catapultar problemas ainda mais graves.
A solução para toda esta problemática terá, forçosamente, que passar pela criação de modelos que recuperem os valores morais das primeiras gerações e os entreguem às segundas e terceiras, pois é precisamente nos mais novos que se concentram os focos dos problemas. Apesar de, por afinidade, estas segundas e terceiras gerações serem consideradas cabo-verdianos, o certo é que são são-tomenses. Já não têm as raízes nem os valores morais que os seus pais herdaram dos avós. Têm uma identidade esculpida na realidade que conhecem e que se cinge ao domínio das roças, e do pequeno mundo em que sempre viveram. Por isso, não faz sentido falar-se atualmente da existência de um problema ao nível dos emigrantes cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe, mas sim como podem ser ajustados e valorizados os seus descendentes face a uma realidade para a qual Cabo Verde pouco ou nada contribuiu.
Em relação aos mais velhos, a acomodação à realidade é resultante do processo natural de conservadorismo a que muitos se sujeitaram. Após cinquenta ou sessenta anos a viverem na mesma roça, a se relacionarem com as mesmas pessoas e a partilharem as mesmas vivências, seria quase imoral querer que mudassem alguma coisa. Pessoas que durante parte das suas vidas de subalternização estiveram privadas de expressar as suas opiniões e, diria mesmo, pensarem por si próprias, verem-se agora a ter que gerir e solucionar problemas desta envergadura é algo impensável, daí, tal como foram desde sempre instruídos a fazer, acomodam-se. Muitas das condições de vida degradantes que presenciei advêm precisamente desta condição de incapacidade de gestão, essencialmente devido à falta de apetência para tal. A sua condição de meros executantes foi, de forma natural, passada às gerações futuras, como tal, não se regista também entre elas uma cultura de proatividade, apenas de usufruto e pouco mais. É da própria natureza humana que, se não for moldada e direcionada noutro sentido, inviabiliza qualquer alteração aos padrões informalmente instituídos.
Aliás, a notória incapacidade de gestão não se coloca apenas ao nível dos ex-serviçais e seus descendentes. O próprio Estado demonstrou, ao longo da sua recente história, esta mesma incapacidade de gerir. Como tal, o Estado não pode ser simplesmente desculpabilizado na comiseração dos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe. Note-se, contudo, que este não é um processo exclusivo de São Tomé e Príncipe; é transversal a todas as ex-colónias lusófonas que, há quarenta anos, se tornaram independentes e com autonomia própria para gerirem o que, entretanto, havia sido herdado. O modelo político por elas adotado, pelo menos numa primeira fase, baseado numa economia de direção central — em que os Estados passaram a deter e a gerir toda a economia — também contribuiu para a degradação a que hoje se assiste. Tratando-se de uma herança, o modelo de conservação e manutenção de todas as estruturas herdadas não era unicamente responsabilidade das pessoas que nelas trabalhavam ou viviam. O Estado, como principal interessado no sucesso dos empreendimentos, deveria ser o primeiro a interessar-se pela sua conservação, manutenção e até mesmo aperfeiçoamento, inclusive em relação ao próprio capital humano, também ele herdado. Ora, não foi isso que aconteceu. O modelo de gestão encontrado pelos Estados, ao qual São Tomé e Príncipe não é exceção, não foi o mais acertado. A degradação das infraestruturas é prova cabal disso. Se os espaços estavam equipados, produziam e a mão-de-obra existente mantinha-se ativa, porque é que se assistiu impavidamente à delapidação e degradação deste património? Para agravar ainda mais a situação, quando estes países resolveram alterar os seus processos constitucionais, voltaram a repetir o mesmo erro. Os processos de privatização a que foram sujeitas as roças, já na década de noventa, poderiam ter alterado a situação de decadência que se vinha a verificar desde o início da independência nacional, no entanto, não foi isso que aconteceu, acabando por se agravar ainda mais a situação dos que delas dependiam. Como os produtos não acabaram – continua a haver cacau, café, palma, coco e todos os produtos que davam a rentabilidade às roças — como a mão-de-obra se manteve e até, em muitos casos, se renovou, é um paradoxo assistir-se ao desmoronar do potencial destes espaços. Faltaram, por isso, estratégias de gestão eficiente, quer ao nível das empresas agrícolas, como em relação aos recursos humanos existentes. Acima de tudo, falhou o comprometimento com a herança obtida na conquista da independência que, no fundo, era a base para a sobrevivência das suas populações.
Para se combater todas estas inevitabilidades são necessários mecanismos capazes de criar ruturas com o passado e pôr fim à consciência coletiva da impossibilidade de alterarem os futuros. É preciso fazer-lhes acreditar que a perpetuação da miséria não é uma inevitabilidade. É preciso que se renovem e que voltem a acreditar neles próprios. Para que tal seja possível, é necessário um grande trabalho ao nível da sua ressocialização, capaz de impulsionar e alavancar a sua autoestima. Depois de consciencializados para as suas condições, serão eles próprios que tenderão a melhorar os seus desempenhos e, assim, melhorarem as suas condições de vida. É necessário voltar a introduzir os valores da sã relação comunitária e resgatar os valores cívicos e morais que muitos perderam ou distorceram. Um trabalho pedagógico orientado neste sentido irá, certamente, contribuir de forma decisiva para a rutura da propagação e perpetuação da miséria em que estas pessoas se encontram. Será através dos mais novos que o elo da acomodação se irá partir e serão eles próprios, de forma radical, a alterar o modo de vida a que os progenitores os habituaram. Como tal, os governos que estiverem verdadeiramente interessados em melhorar as condições de vida destas populações terão que, entre si, concertar esforços no sentido da reeducação dos mais novos e centrarem-se numa estratégia de reabilitação a médio prazo. Há, por isso, que apostar na socialização dos que ainda estão a tempo de se salvar das tais inevitabilidades, para que seja a própria sociedade a resgatá-los e a integra-los de forma efectiva na construção desta ainda jovem nação.
Texto: Luís Neves
Fotografias: Pedro Matos