Pedro Pires – O exemplo da boa governação no continente Africano
01 Jan 2012

Pedro Pires – O exemplo da boa governação no continente Africano

Pedro Verona Rodrigues Pires, nascido a 29 de Abril de 1934 na Ilha do Fogo, cedo tomou consciência da necessidade de lutar por um ideal mais promissor por todos os que não se resignam ao fatalismo. Nesta entrevista envolvente e  transversal às várias fases da sua vida, Pedro Pires, relata-nos na primeira pessoa, o seu percurso de vida, as suas convicções e anseios.

Como é que a sua infância contribuiu para o reforço da sua posição na luta contra o colonialismo?

Pedro PiresCabo Verde é uma realidade específica no meio das antigas colónias portuguesas. Nasci e cresci na ilha do Fogo, portanto a minha vida e o meu pensamento reflecte precisamente a situação social e económica que naquele tempo se vivia. Tínhamos pouca comunicação com o exterior, e é claro que as influências vindas de fora eram mínimas. Sou o que se pode chamar de um “produto local”. As pessoas do Fogo são orgulhosas, e não gostam de ser repreendidas, de modo que ganhei essa personalidade característica da ilha, o que nos obrigava a ter que fazer um esforço para suportar algumas situações. Desde muito cedo, os meus pais acostumaram-me, a mim e aos meus irmãos, a fazer esse esforço e a ter um certo sentido de responsabilidade.

Em Cabo Verde, as crianças e os adolescentes tiveram que, cedo, ganhar o sentido da responsabilidade. Só para lhe dar um exemplo, quando tinha 12 anos, tive de sair do Fogo para fazer o exame de admissão em São Vicente, e tínhamos de ir de barco. Isso mostra um pouco a responsabilidade que tínhamos, o que nos dá um fortalecimento do espírito e um sentido de dever. Esse é o lado que terá contribuído para a formação da minha personalidade. Vivíamos num meio rural, com todas as condições e obrigações naturais da vida no campo. Isso também contribuiu fortemente para o meu sentido de responsabilidade. Todas estas experiências, acrescidas ainda aos meus estudos na Praia, deram-me um visão alargada do país, juntamente com um sentido de comprometimento muito próprio.

A sua passagem pela Universidade de Lisboa, e os relacionamentos que então teve com outros líderes dos movimentos de libertação da altura, contribuiu certamente para o fortalecimento das suas ideias nacionalistas. Conte-nos um pouco dessa experiência vivida em Lisboa.

Eu não sou da primeira geração dos líderes da luta de libertação. Eu serei de uma segunda linha. A primeira geração, é formada por Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Mondlane  entre outros. A minha geração é já uma segunda linha, que cedo começou a receber informações e dados dos movimentos de libertação do continente africano, nomeadamente informações provenientes de outros países africanos que iniciaram os seus movimentos antes dos nossos. Essas informações foram essenciais, pois permitiram-nos obter alguma inspiração, acrescida da experiência vivida por outros em situações semelhantes.

Pedro Pires 11Há um facto que nos tocou directamente e que acelerou a nossa consciencialização: a Independência do Congo e o assassinato de Patrice Lumumba a 17 de Janeiro de 1961. Estas duas circunstâncias foram um dos choques que antecederam a revolta, por exemplo, em Luanda, a 4 de Fevereiro. Outro facto foi o convívio com outros colegas, especialmente os angolanos, com os quais estava mais próximo, pois tive por companheiro no serviço militar obrigatório o “Iko” Carreira. Daí que toda a minha aproximação aos ideais da juventude angolana tenham partido, precisamente, deste convívio. A partir desta altura, frequentei a Casa dos Estudantes do Império e é nesse convívio, nesse debate de troca de ideias, que me informei muito mais e formei os meus ideais.

Não posso esquecer que o contexto político americano da altura foi também um marco determinante, pois nos Estados Unidos da América estava em curso a luta pelos direitos civis, os quais contribuíram decisivamente para a minha visão do mundo, e determinaram a forma como nos deveríamos posicionar no contexto político-social da época.

Ao ter decidido abandonar Portugal e juntar-se, na clandestinidade, à luta dos movimentos de independência da Guiné Bissau e de Cabo Verde, terá vivido certamente um dos momentos mais marcantes da sua vida. Fale-nos um pouco dessa sua decisão.

Bem, foi uma decisão pessoal, mas também na base da solidariedade com os outros companheiros. Quando decidimos sair, éramos um grupo relativamente grande de estudantes e quadros africanos das colónias portuguesas que estavam em Portugal (este ano, comemora-se precisamente, os 50 anos dessa fuga). As nossas motivações são sempre muito íntimas. Chegámos à conclusão que tínhamos o dever de participar no processo de libertação dos povos africanos, mas também estávamos convencidos que era crucial pôr fim ao colonialismo. Depois de feitas essas opções, a vida tornava-se impossível de ser vivida dentro daquele contexto, e deveríamos aproveitar a primeira oportunidade que aparecesse para mudarmos as circunstâncias. Do meu ponto de vista, era uma consciência colectiva do destino comum, que nos impulsionava a participar na sua realização. E todos participámos de coração nesse processo.

O seu espírito de liderança, associado á experiência e sentido de responsabilidade, ajudou-o no processo de mobilização de muitos cabo-verdianos e nacionalistas durante o período que esteve em França e no Senegal. Qual o segredo para este espírito mobilizador?

Pedro PiresPenso que o grande “segredo”, se é que lhe podemos chamar assim, é o facto de possuir uma grande capacidade de comunicação e de persuasão. Penso que, com o tempo, fui adquirindo essa capacidade de convencer e mobilizar as pessoas à participação no processo. É claro que nem sempre é fácil, pois há muitas situações que dependem apenas das pessoas, nomeadamente da sua condição de poderem dispensar do seu tempo e de colocarem de lado certos confortos adquiridos, pois cada um tem o seu projecto de vida e por vezes é difícil mudar essas situações.

De qualquer forma, aprendi a comunicar e consegui persuadir muitos a participarem plenamente neste processo, que é algo imprevisível e que ninguém pode adivinhar como termina. Por causa desta imprevisibilidade, nem todos estão preparados para enfrentar as dificuldades que, de uma maneira natural, vão surgindo. Aqueles que estavam mais preparados e conscientes do risco associado à tomada de certas decisões, certamente que acataram a mensagem e apareceram para dar o seu contributo, tornando-se muitos deles, outros líderes dos movimentos de libertação africanos.

A sua disponibilidade e entrega, não foi só pela via da comunicação. Integrou igualmente a primeira célula de combatentes militares cabo-verdianos.

Uma vez que, na altura, eu já tinha mais responsabilidades e experiência política que outros dento do PAIGC, foi natural aparecer como o chefe desse grupo. Foi um novo ciclo que iniciou. Esse ciclo consistia essencialmente na preparação de um grupo de cabo-verdianos para a eventualidade de se intervir em Cabo Verde, no entanto, tal revelou-se impossível e tivemos que entrar num outro ciclo, o da participação directa na luta na Guiné.

Esse seu empenho e dedicação coroou-se em 1973 com a sua escolha para a liderança da Comissão Nacional do PAIGC, com a proclamação da independência da Guiné Bissau, assim como, posteriormente, com a nomeação para Ministro Adjunto para a Defesa da República da Guiné Bissau. Como foram as negociações do processo de independência?

1973 foi um ano dramático, pois a 20 de Janeiro, Amílcar Cabral foi assassinado. Imediatamente se nos colocou a necessidade de ultrapassar a situação de crise política que este acontecimento dramático gerou. Era necessário que os responsáveis do PAIGC assumissem as tarefas e responsabilidades que ficaram em aberto. É nesse quadro de reestruturação e recomposição dos órgãos do PAIGC que eu sou designado para a liderança do Conselho Nacional encarregue da preparação da acção política do PAIGC em Cabo Verde.

A minha participação no primeiro governo da Guiné Bissau, depois da proclamação da independência, surge também de forma natural. Nessa altura eu era membro do órgão superior político-militar do PAIGC, o seu Conselho de Guerra. Grande parte da liderança do governo provinha deste Conselho de Guerra, e de forma igualmente natural, fui destacado para o cargo de Ministro Adjunto para a Defesa da República da Guiné Bissau.

Dá-se 74 e volta para Cabo Verde. Também aqui o seu carácter de liderança vem uma vez mais ao de cima quando lidera o grupo que coordenou as acções do PAIGC em Cabo Verde. Que acções de sensibilização e recrutamento para o movimento de libertação nacional foram, nessa altura, aqui realizadas?

Foi um processo que se iniciou muito antes. Procurou-se introduzir em Cabo Verde elementos do PAIGC que estavam no exterior, nomeadamente em Portugal. Esses elementos, foram os primeiros em Cabo Verde a efectuarem as mobilizações iniciais. Com o reconhecimento do PAIGC pelas autoridades portuguesas como o interlocutor para o reconhecimento do Estado da Guiné e organismo oficial na negociação da independência de Cabo Verde, fizemos aqui entrar os principais quadros cabo-verdianos que se encontravam na Guiné.

Pedro Pires

Vieram cerca de uma dezena de elementos que com eles trouxeram um novo impulso ao desenvolvimento da mobilização política, de forma ao PAIGC ter a força de levar a população de Cabo Verde a aderir à ideia da independência. Antes de ter vindo para Cabo Verde, liderei ainda as negociações com Portugal para o processo de independência da Guiné Bissau. Isso deu-me muita visibilidade aqui em Cabo Verde, o que me permitiu ter a aceitação política necessária para o sucesso da mobilização.

Isso facilitou-lhe, em 1975, ter sido eleito, sem grande contestação, o Primeiro Ministro de Cabo Verde?

A minha indicação para Primeiro Ministro surge no seguimento lógico do trabalho feito no processo de independência nacional. Era a pessoa com maiores responsabilidades políticas em Cabo Verde, e era lógico que assim fosse.

Como encarou o peso das dificuldades e limitações que  Cabo Verde enfrentava, logo após a proclamação da independência?

Se por um lado estavam as dificuldades e os problemas naturais da situação, do outro estava o entusiasmo. Aliando esse entusiasmo que se sentia nas pessoas, à esperança da juventude cabo-verdiana, sem nunca esquecer o realismo das dificuldades que tínhamos pela frente , iniciámos o trabalho. E foi preciso muito trabalho, empenho e sacrifício para juntos ultrapassarmos as dificuldades. Sabíamos que o nosso futuro apenas dependia do nosso desempenho, pois os recursos eram poucos e tínhamos que servir de exemplo a todo o povo.

Foram 3 mandatos ininterruptos caracterizados por grandes avanços na melhoria da qualidade de vida do povo cabo-verdiano. A que se deve este sucesso na sua governação?

Pedro Pires 7Sempre transmiti às pessoas o realismo da nossa condição. Não tínhamos uma vida fácil, logo não havia a possibilidade de facilitarmos, nem podíamos criar fantasias no povo. Era preciso trabalhar. Desde cedo sabemos que somos um país pequeno, com as consequentes limitações da nossa dimensão. Era fundamental que todos os cabo-verdianos se empenhassem ao máximo, quer a nível pessoal, quer colectivamente. Ao contrário de outros, que podiam oferecer os recursos que os seus países possuíam, nós, o único recurso que podíamos oferecer, era o resultado desse trabalho.

Durante todo esse tempo, utilizei muito uma palavra, que é a “viabilização”. Nós estávamos no governo para viabilizar Cabo Verde. Nesses 15 anos, sempre procurámos soluções, alternativas e recursos para o país. Chegámos à conclusão que era preciso reorientar a nossa política, liberalizar a política económica, e finalmente, liberalizar o regime político. No entanto, também admito que, no seu todo, Cabo Verde ainda é um projecto por concluir. Ainda temos muito trabalho pela frente, e todos os cabo-verdianos têm de ter a consciência que precisam de contribuir para a viabilização total deste projecto que é Cabo Verde, por forma a nos tornarmos auto suficientes.

Olhando para trás, sente que executou em pleno o seu papel ou sente que houve algo que gostaria de ter feito e não o conseguiu realizar?

Bem, fiz o possível, e estou satisfeito com o possível que eu e os meus companheiros realizámos. Esse realismo na aproximação e equacionamento dos problemas, bem como da fixação de objectivos, foi fundamental. Não podemos viver ansiedades ou frustrações pelo que fizemos ou deixámos de fazer, pois o que fizemos foi o possível, e na minha opinião, não foi mau.

Foi o responsável pela introdução do multipartidarismo em Cabo Verde, fomentando a consciência democrática no povo cabo-verdiano. Como vê hoje a democracia em Cabo Verde?

Pedro Pires 19Era preciso introduzir um novo impulso de forma a permitir que o país progredisse. Por outro lado, era necessário que o país pensasse no seu futuro e se responsabilizasse, pois sabíamos que iríamos ter pela frente muitos desafios: os desafios da liberalização da economia e os desafios das diferenças sociais, com as obrigações que elas acarretam. Por isso, era preciso analisar e optar. É possível que muitas pessoas não tenham percebido esses desafios, mas tínhamos a noção que precisávamos de aumentar a responsabilidade dos cabo-verdianos pelo futuro do seu país.

Houve um ciclo de 15 anos, findo o qual, pensámos que seria oportuno iniciar um outro, em que a participação das pessoas deveria ser mais ampla, com a possibilidade de, eventualmente, poderem fazer outras opções.

Após um período de relativa ausência da vida política, em 2001 regressa e candidata-se à Presidência da República, onde vence as eleições. Considera essa vitória como um reconhecimento do povo cabo-verdiano ao seu desempenho enquanto governante do país?

A minha candidatura à Presidência da República teve como objectivo poder resgatar a luta de libertação nacional, os seus princípios e os seus símbolos, tendo em conta o que se tinha passado durante os dez anos anteriores. A minha vitória nas eleições é uma prova que o povo também dá importância a esses princípios, daí que, de certa forma, se possa dizer que houve esse reconhecimento. Sempre fiz política a favor do desenvolvimento de Cabo Verde e das suas gentes, daí ser natural que houvesse um certo reconhecimento dos cabo-verdianos pelo trabalho desenvolvido.

Durante os dez anos que foi presidente, Cabo Verde tornou-se num exemplo de governação em África. Que desafios se deparam a Cabo Verde na actual conjuntura económica mundial?

Pedro Pires 10Do meu ponto de vista, existe um instrumento fundamental para vencermos os desafios e ultrapassarmos as dificuldades, que é a edificação do Estado de Direito. É este Estado de Direito que dá protecção aos cidadãos e cria a possibilidade de todos poderem, sem restrições, participar na vida política. O meu engajamento foi no sentido de estimular a consolidação das instituições do Estado de Direito, dando sempre atenção à justiça, à segurança, à defesa do país, ao “clima” político estável, etc., de modo que é esta consolidação do Estado de Direito e das suas instituições, que transmite confiança aos cidadãos.

Outra preocupação, foi sempre a criação de um ambiente que permitisse uma boa governação do país, tudo fazendo para garantir a estabilidade e a sua governabilidade. Entendo que o desígnio do país deva estar acima dos interesses partidários e particulares, pois o país, não tendo grandes recursos, apenas pode evoluir com base na co-responsabilização partilhada de todos. Penso que esta foi a minha contribuição para com o meu país.

Na sua opinião, quais são as grandes apostas estruturais em que os actuais governantes se devem empenhar, por forma a garantirem o crescimento sustentável e a melhoria das condições de vida dos cabo-verdianos?

Este é o momento em que as responsabilidades ultrapassam os governantes. Neste momento, cabe a cada cidadão responsabilizar-se pelo futuro do país, e não ficar à espera que sejam os governos a resolver os problemas. Não podemos estar numa situação em que uns exigem e outros têm de encontrar soluções. As soluções têm de ser encontradas em conjunto, sendo um dever de todos a participação no encontro das resoluções dos nossos problemas. Para mim, este é um momento para uma boa escolha de prioridades, da poupança e do bom uso dos poucos recursos que temos, mas também é o tempo da responsabilidade individual dos cidadãos, pois os novos sucessos de Cabo Verde, são da responsabilidade de cada um de nós.

Por outro lado, penso que se deve diversificar as relações económicas internacionais com outros parceiros. Isto já tem vindo a ser feito, havendo neste momento um esforço para trazer investimento privado externo, possibilitando-nos reduzir o peso da ajuda pública ao desenvolvimento. Temos de projectar as nossas acções, de forma a reduzirmos gradualmente as nossas dependências externas e darmos mais atenção aos nossos recursos internos, que, apesar de limitados, podem ser fortemente desenvolvidos, nomeadamente na agricultura e nas pescas, assim como tirarmos mais partido da nossa localização geoestratégica.

Em reconhecimento do excelente trabalho que realizou na transformação de Cabo Verde num modelo democrático de estabilidade, crescimento e prosperidade, foi-lhe recentemente atribuído de forma unânime por um júri, o prémio Mo Ibrahim 2011 que premeia a Excelência de Liderança e Boa Governação em África. O que representa para si esta tão importante distinção?

Pedro Pires 17É claro que depois de uma longa vida de militância e de liderança política, ser reconhecido pelo trabalho desenvolvido ao longo dos anos, é sempre reconfortante e motivo de satisfação. Este reconhecimento é uma prova que todo o sonho e esforço pela luta de libertação africana, pela qual sempre me empenhei, é uma causa justa e motivo de grande orgulho para todos os cabo-verdianos. Este prémio, é como que o coroar de tudo isso. Depois de tanto tempo na política, terminar com um prémio destes, é sempre agradável e fortificante.

Este prémio irá permitir ainda concretizar um outro sonho, que é o de trabalhar a história da nossa luta de libertação nacional, trabalhar na consolidação do Estado Soberano de Cabo Verde e criar um grupo de trabalho em torno das minhas memórias, pois acredito que a nossa história, devemos ser nós mesmos a contá-la.

Que mensagem gostaria de deixar a todos os cabo-verdianos que sempre olharam para si como um estadista que sempre lutou pela democracia, pela estabilidade e crescimento do seu povo?

É uma mensagem muito simples, muito objectiva, mas muito real: o trabalho sempre compensa. Devemos sempre trabalhar na busca dos nossos ideais e investir no empenho e dedicação por esses ideais, pois os resultados, esses, mais tarde ou mais cedo, acabam por surgir.


 


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