João Egídio Vaz
18 Mar 2021

João Egídio Vaz

Tenho 77 anos. Vim para São Tomé e Príncipe com 17 anos. Foi o meu pai quem me trouxe. Cheguei aqui no dia 12 de Junho de 1952. Como o meu pai veio contratado, achou por bem trazer-me, pois sempre o podia ajudar no que fosse preciso. As alternativas também não eram grandes, como tal, vim com ele. Primeiro, fomos para a roça de Porto Alegre. Ali vivemos durante algum tempo. Acabei por fazer também um contrato para trabalhar e ganhar algum dinheiro. Ganhava um escudo por dia.

Em Porto Alegre, conheci uma rapariguinha que também tinha vindo no contrato. Acabei por me amigar com ela. 

Em 1960, o meu pai resolveu voltar para Cabo Verde e queria que eu fosse com ele. Como na altura a minha mulher estava grávida do nosso filho mais velho, resolvi ficar. Mais tarde, em 1980, viríamos a casar aqui em Santa Catarina. 

A minha mulher faleceu há pouco tempo. Sem ela sinto-me muito desgostoso. Isolo-me dentro do meu quartinho e não quero ver ninguém. Tivemos seis filhos: duas mulheres e quatro homens. O meu primeiro filho nasceu em Porto Alegue. O segundo nasceu na roça de Uba Budo, o terceiro em Ribeira Palma e os restantes nasceram aqui. Já tenho dezasseis netos e oito bisnetos. São todos meus amigos, mas sinto muito a falta de minha mulher.

Dos tempos do contrato não tenho boas recordações. Posso dizer que naquele tempo aconteceu de tudo. Quando aqui cheguei, era o coronel Gorgulho que mandava na terra. Matava-se sem compaixão. Mata-se com o maxim… sempre era mais barato! Depois enterravam-se os mortos no meio do mato, debaixo de qualquer bananeira. Bastava alguém se insinuar contra à política que nos era imposta e essa pessoa ficava marcada. Mais tarde ou mais cedo acabava por desaparecer. Por volta de 1953, houve aqui uma grande guerra. Os brancos queriam à força contratar os nativos das ilhas, mas eles não aceitavam, o que originou grandes convulsões sociais e banhos de sangue. As revoltas terminaram por volta de 1957. Acabou a violência contra os nativos mas não contra os cabo-verdianos. Muitos continuaram a apanhar de lemba-lemba, que era um chicote feito de corda que, depois de bem entrançada, fazia três pernas. Quando nos batiam com o lemba-lemba era como se apanhássemos três chicotadas ao mesmo tempo. Cada uma delas deixava marcas profundas. Quando não era o lemba-lemba era o andala, um outro chicote feito a partir das folhas da palmeira. Felizmente que, depois de 1956, esses flagelos terminaram. Havia apenas a palmatória que continuava a ser usada no escritório. Quando alguém se portava mal, o patrão mandava irmos ao escritório para levarmos de palmatória. Não vale a pena falar do que aqui se passava. São águas passadas. As coisas foram entretanto melhorando até que foi dada a independência a São Tomé e Príncipe. 

O dia da independência nacional foi de grande alegria para os cabo-verdianos. Sentimos-nos livres. Com entrada em funções do partido único, as pessoas respeitavam-se. Não havia a desordem que há hoje. Os homens respeitavam os mais velhos. O problema foi mais tarde, com a distribuição das terras. Prometeram-nos uma coisa que, depois não se concretizou. Agora temos umas lavras que nos sustentam. Já não temos patrão, por isso, trabalhamos para nós. Os mais velhos recebem ainda uma pensão de 460.000 dobras (18 euros) complementada por um apoio que Cabo Verde nos envia, de três em três meses, de cerca de de 750.000 dobras (30 euros). É uma grande ajuda.

Gostava de voltar a visitar Cabo Verde, mas não tenho economias para tal. Depois, há ainda a questão dos filhos. Iriam ficar aqui sozinhos. Tirando os meus filhos e netos, não tenho amigos; em São Tomé e Príncipe é cada um por si e Deus por todos. Antigamente, quando tinha patrão, se houvesse muita necessidade de regressar a Cabo Verde antes do fim do contrato e se durante o tempo que trabalhámos nos tivéssemos portado bem, geralmente não recusavam que fossemos e até nos pagava a viagem no barco de volta para a nossa terra. Depois que ficámos livres, ninguém quer saber de nós. Ficámos abandonados e entregues a nós mesmos. Agora é tarde, além disso, o que é que um velho como eu iria agora fazer para Cabo Verde? O meu pai já morreu, a minha mãe já morreu, os meus irmãos estão espalhados pelo mundo. Não sei do paradeiro deles nem eles do meu, por isso, tenho que me convencer que esta é a minha terra e é aqui que eu vou morrer. Resolvi deixar de alimentar essa esperança. Há que encarar a realidade e a realidade dos velhos do contrato que aqui ficaram e que ainda não morreram é esta. No dia em que enterrarem definitivamente a esperança de voltarem a Cabo Verde, vão ser muito mais felizes.

Santa Catarina – São Tomé


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