João Cabral Varela
18 Mar 2021

João Cabral Varela

Chamo-me João Cabral Varela. Vim no contrato em 1958, com a idade de 22 anos. Agora tenho 82 anos, mas ainda me recordo da viagem de Cabo Verde até São Tomé e Príncipe. Vim no Benguela, numa viagem tranquila. Quando atraquei em São Tomé vim diretamente para a roça Ponta Figo. Ainda hoje aqui estou, nunca de cá saí. 

Durante o tempo do contrato fiz quase todos os trabalhos do mato: plantei e apanhei cacau, capinei, rachei lenha, acartei coco, tudo. 

Depois, veio a independência e continuei a trabalhar a terra, só que sem contrato, mas tenho que ser sincero e afirmar que, pessoalmente, no tempo do colono, as coisas eram melhores; tínhamos muito trabalho — que era exigente e esforçado — mas depois de cumpridas as horas do patrão, íamos para casa e ficávamos tranquilos. Não nos faltava nada. Não tínhamos muito, mas também não havia faltas. Comida à vontade, bebida à vontade e tudo barato. Ganhávamos o nosso dinheiro e ainda nos sobrava qualquer coisa para amealharmos. Agora para os malandros que não gostavam de trabalhar, as coisas não eram tão simples, pois se não trabalhassem eram castigados. Eu como sempre fui um homem responsável e trabalhador, naquele tempo vivia tranquilo e descansado.

Hoje as coisas são muito diferentes. Tudo custa muito dinheiro, por isso, o mata-bicho quase sempre fica por tomar, almoçamos mal e jantamos pior. Há quem viva só com uma refeição por dia e, mesmo essa, é fraca, sem grande sustento. Quem diz que agora é melhor, não está a ser verdadeiro. Estou aqui há cinquenta e sete anos e vejo que as condições que agora temos são muito piores que as que tínhamos antes da independência. Depois, há ainda a questão do dinheiro que nunca nos foi dado. Quando os colonos foram obrigados a ir embora, não foram pagos os vencimentos relativos aos contratos que estavam em exercício. No entanto, durante os primeiros anos de independência, as roças continuaram a produzir com a mão-de-obra que existia. Nós continuámos a trabalhar as mesmas 12 horas, estivesse sol ou chuva. O branco quando se foi embora não levou nada, nada, nada! Deixou tudo cá, em São Tomé, inclusive o dinheiro dos contratados que estava guardado nos bancos, por isso, alguém nos deveria ter pago, tal como os colonos nos pagavam sempre que os contratos terminavam e nós queríamos ir para a nossa terra. No entanto, não foi isso que aconteceu. Além do dinheiro dos contratos que ainda tínhamos com os brancos e do trabalho que fizemos logo após a independência, ficaram-nos também com o dinheiro que tínhamos guardado nos bancos e que os brancos aqui tinham deixado. Esse dinheiro, até hoje, nunca apareceu. Alguém o deve ter metido ao bolso. A partir desse momento, tudo se complicou para os antigos contratados que nunca mais conseguiram recuperar as condições que tinham. É a maior injustiça que nos fizeram e é algo que jamais esqueceremos. 

Agora dão-nos uma reforma que nem dá para comermos durante uma semana. Ainda o que nos vai valendo é a pequena ajuda que, de três em três meses, Cabo Verde vai enviando. Fazem-no por pena, pois não têm obrigação em nos ajudar. Nós nunca trabalhámos em Cabo Verde, por isso, nunca ajudámos Cabo Verde a se desenvolver. Trabalhámos sim em São Tomé. Contribuímos para o crescimento desde país. Desbravámos mato, plantámos cacau e café. Colhemos coco. Abrimos estradas. O justo era sermos acarinhados por isso, mas não, somos desprezados e abandonados. Recebemos 470 mil dobras mensais que, nem para esmola é digno. Se nos dessem o dinheiro que é nosso, poderíamos ter uma vida mais condigna. Não queremos esmolas, apenas queremos o que é nosso e nos foi tirado. Os que já morreram, deixaram filhos e netos. Esse dinheiro é, por direito, desses filhos e desses netos. Ficarem com o dinheiro ganho com o suor do nosso rosto é um pecado. Penso mesmo que este país não evolui porque nasceu com os olhos nesse dinheiro. Enquanto não for feita justiça, as coisas irão continuar sempre assim, sem futuro, sem crescimento, sem perspetivas, pois quem faz as coisas de má fé, pode até trabalhar muito, mas não tem Deus com ele e por isso, não terá nunca um bom futuro.

Roça Ponta Figo


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