18 Mar 2021
Inocêncio Lopes
Nasci em Monte Negro, no concelho de Santa Cruz, em Santiago. Tenho 83 anos de idade. Vim para São Tomé e Príncipe em 1940. Fui trabalhar como contratado para Ribeira Peixe. A primeira viagem que fiz, em 1940, demorou 14 dias de mar. Vim no navio Lobito. A meio dessa viagem, perdemos o rumo e andámos à deriva durante uns dias. A alternativa era voltar para Cabo Verde, mas o capitão estava receoso uma vez que os contratados estavam a trabalhar para as diversas empresas agrícolas e, caso regressássemos, as empresas teriam que nos continuar a pagar, mesmo sem trabalharmos. Por isso, encostámos na Guiné para abastecer o navio de alimentos e voltámos a fazer-nos ao mar, rumo a São Tomé e Príncipe. Nessa primeira viagem, vínhamos como se fossemos animais. Não havia o mínimo de condições a bordo nesses primeiros navios. Depois eram os maus tratos, que não acabavam quando desembarcávamos. Em Ribeira Peixe, vi pela primeira vez um chicote rasgar as costas a um dos contratados. Apesar da brutalidade que aqui reinava, os cabo-verdianos não eram tão massacrados como, por exemplo, os angolanos ou os moçambicanos.
Quando terminei o contrato, em 1945, regressei a Cabo Verde mas, passados dois anos, voltei, desta vez para a ilha do Príncipe. Estávamos em 1947 e a fome em Cabo Verde matava milhares de pessoas. Não havia chuva, não havia emprego. Acima de tudo, não havia nada para comermos. Certo dia, pedi a um dos homens que guardava um grande armazém, se me dava um prato de comida. Disse-me que viesse à noite, pois se alguém o visse a dar comida iria ter problemas. À noite, voltei a procurá-lo e ele deu-me cinco litros de grão de milho, mas avisou-me que não me poderia dar mais nada. Tive de andar escondido durante alguns dias para não me atacarem e roubarem o milho. As alternativas em Cabo Verde não eram muitas, por isso, vim procurar outra vida. Fiz novo contrato e regressei, dessa vez para a Sundy. Trabalhei mais de doze anos nessa roça. Fiz de tudo por lá. Começava às cinco da manhã e terminava às cinco da tarde. O pior era a chuva. Havia semanas que parecia que o céu estava aberto. Chovia noite e dia, sem parar. As roupas nunca secavam. Muitas vezes deitávamo-nos com a roupa molhada e, quando acordávamos, elas continuavam molhadas.
Na roça Sundy conheci a minha mulher. Fomos casar a Cabo Verde, em 1960. Depois, em 1964, fizemos novo contrato. Viemos para cá, para a ilha do Príncipe. Tivemos sete filhos.
Depois aconteceu o 25 de Abril. Vivi a independência de Cabo Verde com grande alegria. Quase todos os cabo-verdianos que aqui viviam foram para a rua celebrar. Foi muito diferente da independência de São Tomé e Príncipe, onde a grande maioria dos cabo-verdianos não se manifestou.
O que me dói foi nunca nos terem dado o dinheiro do último contrato. Com o 25 de abril, houve mudanças atrás de mudanças e o nosso dinheiro nunca nos foi restituído. Três anos de trabalho perdidos! Ficaram com o dinheiro do nosso esforço. Tínhamos passagem de volta para a nossa terra e, com a independência, até essa viagem nos tiraram. É a maior injustiça que fizeram connosco. Trabalhei nesta terra mais do que algum dia poderia ter imaginado. Aqui tive os meus filhos. Tive alegrias e muitas tristezas. Passei toda a minha juventude cá e, o que mais me entristecia, era ouvir dizer vai para a tua terra, esta terra não é tua. São Tomé e Príncipe também é a minha terra. Esforcei-me muito por ela. Também me sinto de cá. Foi com alegria que recebi, ao fim destes anos todos, a minha nacionalidade são-tomense, pois apesar de ser cabo-verdiano de nascença, sou são-tomense do coração. Foram os cabo-verdianos, os angolanos e os moçambicanos que fizeram esta terra. Fomos nós que desbravámos o mato. Aqui chorámos lágrimas incontáveis. Aqui nasceram os nossos filhos. Aqui morreram muitos dos nossos amigos. Por isso, era justo que também fossemos considerados são-tomenses. Aconteceu, ao fim de 40 anos.
Entretanto, há dois ou três anos, fui a Cabo Verde, em passeio. Estive lá oito dias. O Estado cabo-verdiano pagou-nos a passagem e, alguns de nós, tiveram a oportunidade de rever a terra e os familiares. Estive com a minha irmã, que mora em Santa Cruz. Na Praia, fui para ver como estava a minha casa, mas já não a consegui encontrar. Perdi o rumo. Quando saí de Cabo Verde, a cidade tinha meia dúzia de casas cobertas por colmo; quando agora lá voltei, não consegui reconhecer a maior parte dos lugares. Estava tudo diferente. A cidade tinha crescido; havia prédios nos lugares das casas; boas estradas e muito movimento. A estrada para a Calheta estava toda asfaltada, mas com bom asfalto! Fiquei feliz com o que vi. Eu quase não comia, tamanha era a alegria que sentia por estar novamente na minha terra. Regressei ao Príncipe feliz por ter conseguido ver, pela última vez, o meu querido Cabo Verde.
Dependência Nova Estrela – Príncipe