Germano de Almeida – Ilha do Maio: A rota do Sal
30 Nov 2013

Germano de Almeida – Ilha do Maio: A rota do Sal

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Entre a ilha de Maio e a Boa Vista está uma baixa em meia coroa. E jaz com a ilha de Maio e Boa Vista norte sul e toma a quarta do nordeste e sudoeste. O navio que for de Espanha e houver vista de Boa Vista e de Maio e for para a ilha de Santiago vai da banda do sul delas por mor desta baixa.» É assim que no Livro das Rotas do século XV João de Lisboa recomendava navegar nesse rumo. Porém, hoje em dia é quase ao contrário, para se chegar ao Maio, indo da Boa Vista, há primeiro que passar por Santiago, pelo menos pelo aeroporto da Praia, só dali partem aviões para essa ilha. Aliás a mesma coisa para Fogo e Brava, com a diferença de que o Fogo é servido de avião, ainda que mal; para a Brava há que gramar os balanços do ferry-boat, uma tortura para quem enjoa, embora o novo Praia d’Aguada esteja neste momento muito na moda dentro da classe dos bons navios.

Mas Praia-Maio é um pulo, um voo de 15 minutos. De barco é um pouco mais de tempo, a distância é de 23 quilómetros. Por isso mesmo não se estranha que o Maio tenha sido primeiramente povoado por naturais de Santiago, talqualmente aliás aconteceu com a ilha do Fogo, mas no primeiro caso por gentes dos lados de Pedra Badejo e talvez mesmo por desalojados da pretensamente arrasada e salgada vila dos Alcatrazes. O que é certo é que em 1642 o Maio já tinha a sua primeira povoação, embora em 1718 ainda contasse apenas com 60 habitantes.

Dizem os que sabem dessas coisas que Maio é a mais antiga das ilhas de Cabo Verde. Dizem mais que ela é a única das nossas ilhas de constituição sedimentar e isso fez supor que tivesse pertencido à antiga Atlântida, algum pedaço solto e boiando no mar. Sobretudo por causa da presença de uns calhaus não muito grandes mas de todo diferentes da maioria, amontoados algures numa praia. Só muito mais tarde se veio a ter a explicação correcta para essas pedras especiais: como não havia qualquer carga destinada à ilha, os navios que para ali se dirigiam em busca de sal navegavam com lastro de pedra, uma pedra brasileira que arremessavam ao mar quando alcançavam o porto. Terá sido essa curiosa presença que levou alguém a sonhar nesta ilha os vestígios da defunta Atlântida. É, pois, de se admitir que algures no mundo se acabará por detectar a presença de Cabo Verde através dos matacões levados de São Vicente como lastro dos navios que ali descarregavam carvão.

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Ilha do Maio

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De todo o modo, Diogo Gomes tê-la-á descoberto em 1460, durante o período das chamadas festividades da primavera, quando os deuses Maio e Maia pontificavam entre os povos da Europa em diversões que misturavam o que ainda sobrava do paganismo com a nova religião cristã. Pretende-se por isso que terá sido em homenagem a esses deuses que a ilha foi baptizada com o nome de Maio, embora uma versão mais prosaica diga que não, que não é nada disso, a ilha foi descoberta por um tal Vicente de Lagos, na companhia de Luís de Cadamosto e António da Nola no ano de 1446 e chama-se Maio porque desde que foi encontrada que se viu abandonada às cabras e demais gado; só no mês de Maio de cada ano se ia ali fazer a sua matança e respectiva salga, seguida do transporte das carnes salpresadas para Santiago com vista ao aprovisionamento dos navios que demandavam essa ilha.

Seja como for, Maio foi inicialmente doada pelo rei D. Afonso V a seu irmão D. Fernando. Depois disso foi passando de donatário em donatário, até que acabou ficando na posse de um tal Rodrigo Afonso, descendente do Rodrigo Afonso da vila de Alcatrazes, a tal que se diz ter sido mandada arrasar pelo rei D. Manuel I com o objectivo de acabar com a raça dos mulatos que por lá proliferava. Ora, ou fosse natural desejo de vingança ou simples dificuldade na sua exploração, o certo é que este Rodrigo Afonso, sem dar cavaco fosse a quem fosse, e portanto sem estar para tal devidamente autorizado, pura e simplesmente vendeu a ilha do Maio, ou pelo menos o seu governo, a um tal João Baptista.

E ninguém deu conta disso senão depois da morte do Baptista, quando um escudeiro da casa real de nome Egas Coelho e também um seu irmão chamado João Coelho, que eram ambos genros do falecido Baptista, invocaram a qualidade de seus herdeiros e naturalmente tomaram posse da ilha. E também do gado que ali havia, e do algodão e outras benfeitorias, e passaram a agir de facto como donos da mesma.

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Ilha do Maio

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Naquele tempo as comunicações não eram nada fáceis, de modo que levou bastantes meses até o rei tomar conhecimento dessa contrariedade aos seus interesses. Porém, logo que soube que estava desapropriado da totalidade de uma ilha entrou em acção, deu ordens rigorosas aos Coelhos para, no prazo de um ano, retirarem da sua ilha tudo que dissessem pertencer-lhes e lha deixassem livre e despejada.

Mas o poder dos reis já não era de todo absoluto, já funcionava algum direito. E assim, em vez de simplesmente aceitarem obedecer à ordem real, como era hábito comum, e fugir com o rabo entre as pernas, os Coelhos contestaram o que acharam ser uma prepotência, isto é, agravaram do despacho que lhes ordenava a retirada para o próprio dono do mesmo, neste caso o próprio rei. E de uma maneira tão hábil, tão inteligentemente engenhosa que a peça produzida acabaria ficando nos anais jurídicos. Por exemplo, não lhes ocorreu negar que a ilha pertencesse ao rei, embora seja certo que o poderiam fazer. Preferiram fundamentar o seu pedido na base de que tinham ali o seu gado e outras benfeitorias; essas coisas lhes pertenciam e não tinham para onde levá-las ou que fazer com elas. E por isso, falando em estritos termos de direito, o rei não tinha o poder de os obrigar a tirá-las dali para fora pelo simples prazer de arrendar a ilha a outrem. O máximo que podia fazer, sem violar as suas próprias leis, disseram-lhe, era reconhecer-lhes a posse, e estabelecer e cobrar-lhes o respectivo dízimo.

Para grande sorte deles era rei ainda o D. Manuel I, pessoa que em muitas coisas gostava de se reger por princípios jurídicos, no seu tempo já se falava e se usava de uma certa legalidade na decisão dos litígios, haja em vista as famosas Ordenações do seu nome. E que certamente terá ficado muito impressionado com o argumento dos Coelhos, que parecia inatacável, porque é seguro que antes de definitivamente decidir mandou «ver este caso a letrados perante nós». Que aliás deram total razão aos agravantes, pois que a 10 de Julho de 1504 o rei assinava carta de doação aos dois Coelhos, concedendo que «eles ambos tenham e hajam de nós a dita ilha em suas vidas e de suas mulheres e de seus filhos que deles e das ditas suas mulheres ficarem mais velhos à hora de suas mortes». Com a obrigação, bem entendido, de pagarem o quarto e o dízimo de todo o gado, vacum e caprum, bem como das peles e sebo que resultassem das matanças periódicas.

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Ilha do Maio

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Anos antes de 1585 que o pirata Francis Drake escolhera para saquear a cidade da Ribeira Grande; mais propriamente em 1578, esse inglês famoso tinha desembarcado na ilha do Maio, diz-se que com o fim de ali fazer espera a seis navios portugueses que tinha planeado assaltar. E enquanto os navios-vítimas não aportavam, Drake, sem outros afazeres imediatos, dedicou–se a passear a ilha de trás para a frente e de frente para trás. Escreveu depois nas suas memórias que no Maio só tinha encontrado sal e cabras: grandes montes de sal, semelhantes a montes de neve, o mais fino e perfeito em estado natural, com uma tal abundância e aumento constante, que poderiam abastecer todas as terras e ilhas em contacto com elas, e mesmo assim seria impossível todo o seu consumo, diz ele com evidente exagero. Refere também que encontrou galinhas-do-mato, muitas galinhas. Nos vales e terras baixas, palmeiras, figueiras e vinhas de aspecto agradável e que lhes proporcionaram uvas de boa qualidade.

Drake não menciona ter encontrado gente. Diz apenas ter visto algumas cabanas. Já um anónimo que pelo Maio tinha andado entre 1535 e 1550 havia escrito que há na ilha um lago com mais de duas léguas de comprimento, bastante largo, cheio de sal seco pelo sol, suficiente para encher milhares de navios. E muito posteriormente a isso tudo, já no ano de 1606, dizia da ilha um certo padre Baltazar Barreira que ali não há mais do que gado de vacas e cabras, de que fazem chacinas e couros para vender, e umas 10 ou 12 pessoas.

Assim, pode concluir-se que o Maio, que foi visto de forma muito semelhante ao Sal, era uma ilha mesmo de muito pouca gente. Aliás, o «mancebo que residiu algum tempo nesta Província» e em 1842 ofereceu ao Boletim Oficial as memórias das ilhas por ele escritas em 1840, descreve o Maio como um lugar que «nada produz do necessário para a vida».

Mas mesmo que essa exagerada opinião pudesse de alguma forma ser verdadeira, Maio foi sempre uma ilha de muito sal, e depois também de muito gado. Os seus cronistas pretendem que era a mais frequentada das chamadas ilhas salinas, isto é, ela própria, Boa Vista e Sal. Verdade ou não, o que se pode afirmar é que Maio foi pelo menos muito cobiçada. Por exemplo, depois do casamento em 1662 da infanta D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV com o rei de Inglaterra Carlos II, os ingleses passaram a frequentar a ilha do Maio com a assiduidade de proprietários zelosos, para ali carregarem navios e mais navios de sal. E tudo isso sem qualquer assentimento das autoridades portuguesas; alegavam que, tal como Tânger e Bombaim, Maio também tinha passado para a coroa inglesa, levada que tinha sido como dote pela referida infanta. E por causa disso estavam na ilha com abuso de valdevinos, sabe-se que faziam toda a casta de vexames aos habitantes locais, nomeadamente proibi-los de frequentar as salinas, e espancá-los quando ali os encontravam por ocasião da colheita do sal. Diz-se que chegaram mesmo a levantar uma fortificação dentro da ilha, num alto próximo da salina, para desse modo ficarem mais separados da massa popular negra que consideravam estar a infestar a ilha. Já naquele tempo viviam esses ingleses permanentemente guardados por cães treinados a quem também tinham ensinado a atacar os indígenas que se atrevessem a aproximar-se dos montes de sal sem serem autorizados por eles.

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Ilha do Maio

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Esse estado de coisas duraria até 1717, data em que o conhecimento desses desaforos chegou finalmente ao Reino. Imediatamente se perguntou ao então Governador SerafimTeixeira Sarmento de Sá se era ou não possível fortificar a ilha, de modo a impedir os ingleses de se considerarem senhores dela e do seu sal. Era, respondeu-se daqui com entusiasmo. Porém nem foi preciso chegar a tanto, bastou aos portugueses colocar uma peça de artilharia num local sobranceiro, onde aliás tempos depois se viria a edificar o forte de nome Leopoldina, para não só os ingleses como mesmo outros estrangeiros entrarem na ordem e começarem a comerciar, não como senhores da terra, mas sim como gente de fora que de facto eram.

Naquele mundo em descoberta, o sal tinha um valor muito particular, e nesse sentido a ilha do Maio possuía uma riqueza considerável e que abismava todos os visitantes. Por exemplo, um aventureiro francês de nome Dampier calculou a salina da ilha como sendo de duas milhas de comprimento por meia milha de largura, mas quanto à quantidade de sal disse que era imensurável dado a sua abundância. E de tal modo que era oferecido de graça. «O sal nada custa, excepto o trabalho dos homens para o amontoar e transportá-lo em carros», escreveu ele, «os habitantes do Maio nada recebem pelo sal em si, mas apenas pelo trabalho dos homens e pelas bestas que o transportam, e por tudo isso damos víveres, algum dinheiro, roupas velhas, chapéus, camisas e outras roupas.»

Ainda de acordo com o mesmo Dampier, o pessoal estava de tal modo habituado ao transporte do sal da salina para a praia que o faziam de forma rápida e eficiente, em grandes sacos colocados no dorso de burros. Não era como agora que a ilha já tem um cais acostável, de modo que o embarque para os navios é que era complicado, e muitas vezes até bastante difícil devido às ondas revoltas do mar da baía. Para lhe fazer frente com o menor prejuízo possível acabaram por inventar uma lancha de formato especial, isto é, de fundo chato, mas construída com madeira mais resistente, própria portanto para navegar contra as vagas sem que elas pudessem atacar o sal. Uma vez carregada, a lancha era levada através das ondas até ao mar alto mas mais calmo porque distante da costa, e então ali o sal era transbordado para o navio.

Foi uma solução, mas estava ainda longe de ser a melhor pelo facto de provocar muita perda de tempo e também muita quebra no sal, que de algum modo acabava ficando molhado. Pelo que, tempos depois, seria produzido um engenhoso, ainda que complicado, sistema a partir de um poderoso guindaste fincado no lajedo sobranceiro ao mar que normalmente servia de embarcadouro. E com um aparelho de grandes cordas a que chamavam de «gaia» passaram a levar e trazer dos navios não só as mercadorias como inclusivamente os passageiros, que suspensos sobre ondas tão alterosas que alguém as descreveu como um monstro que abre uma fauce enorme para devorar as suas vítimas. Por causa da inovação que representou esse guindaste, o primeiro nome dado ao porto do Maio foi exactamente de Porto do Guindaste. Passaria a ser chamado de Porto Inglês no período em que aqueles decidiram que a ilha lhes pertencia e praticamente tomaram conta dela.

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Ilha do Maio

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Das ilhas que produziam sal, Maio pode ter sido até ao século XVII a mais frequentada para a recolha desse produto, sobretudo com destino ao Brasil. Porém, não era de forma alguma um lugar aprazível para se viver, dizem alguns cronistas, afora sal e gado nada mais possuía. Seria já nos princípios do século XVIII, quando os barcos começaram a tornar-se mais numerosos no seu porto, que se foi estimulando o seu desenvolvimento, ainda que limitado. Por exemplo, no ano em que Dampier escalou a ilha, 1699, apenas encontrou 230 habitantes, distribuídos por três povoações, que se chamavam Pinoso, Lagoa e Ribeirão João.

Mas não é absolutamente fidedigna a afirmação de que a ilha nada produzia. De facto, sabe-se que nela se cultivavam melancias, legumes, algodão e abóboras e também figueiras. Diz-se inclusivamente que as figueiras eram as únicas árvores que forneciam madeira para a construção, quer de navios quer de outros apetrechos, razão por que eram tão acarinhadas. E para além das galinhas-do-mato, havia também cabras e burros em grande quantidade. Parece que o gado vacum é que era mais escasso. E, tal como a Boa Vista, era rica em tartarugas que na época própria cobriam as praias da ilha.

Maio tinha poucos indivíduos brancos residentes. Dampier escreveu sobre a população: «Os habitantes desta ilha, mesmo os feitores e os padres, são negros de cabelo carapinha, semelhantes aos seus vizinhos africanos, de que são descendentes.» Notou também o mesmo Dampier que, não obstante súbditos portugueses, tinham língua e religião próprias. Isso em 1699. É que nesses tempos o pessoal que residia fora da ilha de Santiago vivia praticamente em estado de abandono por parte da igreja, e só de tempos em tempos um padre aparecia para administrar os sacramentos.

O que está fora de dúvida é que o quase permanente contacto com os estrangeiros a pouco e pouco foi europeizando os maienses porque anos mais tarde, mais propriamente em 1736, um estudioso que visitou a ilha disse ter sido admiravelmente recebido por um administrador preto, com seis pés e quatro polegadas de altura, chamado António Évora, e que era praticamente o dono da ilha. Disse que Évora lhe mostrou o desembarcadouro do guindaste, as salinas, a parte verde na lagoa, e também os mesmos aspectos de desolação que Dampier havia testemunhado, provando que poucas coisas tinham mudado em todo esse tempo.

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Ilha do Maio

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Com já foi dito, a ilha do Maio exportava grandes quantidades de sal. Porém, isso em nada beneficiava a sua população que durante muitos anos continuou a viver na maior indigência. Conforme relatos da época, tal era assim porque um pequeno grupo, constituído pelo feitor, o comandante militar e mais três ou quatro moradores, se tinha apossado de todo o comércio, quer fosse a exportação do sal quer a importação das mercadorias, criando desse modo um verdadeiro monopólio de que eram os únicos beneficiários. Ora o sal era um produto considerado como res nullius, absolutamente pertencente a quem o recolhesse. Aceitava-se que quem assim quisesse podia criar pequenos canteiros que enchia de água através de regos feitos a enxada e cujo sal lhe pertencia; no entanto muito pouca gente se dava a esse trabalho porque havia a Grande Salina, propriedade da comunidade, que em princípio produzia sal suficiente e cuja venda aos navios estrangeiros garantia o sustento de todos os habitantes.

A distribuição desse sal pelos moradores da ilha era feita de uma forma um tanto ou quanto sui generis: logo que a salina ficava conglutinada, o administrador escolhia um dia para a sua recolha. A hora determinada, todo o povo rodeava a salina, com a presença das autoridades locais, e logo que estas davam um sinal, uma apitadela ou um tiro de revólver, as pessoas corriam tumultuosamente a marcar o maior espaço que pudessem e cujo sal lhes ficava pertencendo para extrair e vender.

Enquanto houve pouca gente no Maio, esse esquema de distribuição resultou sem grandes contrariedades porque o sal era abundante. Porém, à medida que a população foi crescendo, a modalidade começou a dar origem a problemas, graves rixas entre os beneficiados, e mesmo outras formas de violência física algumas vezes mortais. O que levou um certo administrador a lastimar que o dia da abertura da salina fosse um dia de grande regozijo para a ilha, mas também de muita desgraça, porque, na ânsia de marcar a maior porção possível de terreno, desde a véspera que grande multidão de homens, mulheres, crianças e escravos cercava a salina à espera do sinal para partir à porfia. Chegada a hora da abertura em que ele dava o sinal, desde esse momento em diante a voz da autoridade deixava de ter força. E o que acontecia era que os mais velozes corriam sobre a superfície da salina no meio de uma vozearia infernal e, com um instrumento próprio para cavar, formavam um rego que anunciava que todo o conteúdo naquele âmbito lhes pertencia, pelo que aquele que tivesse uma maior porção de escravos estava à partida seguro de vir a possuir uma maior porção de sal. E resultavam desse despique não só muitos ferimentos graves como também que os velhos, os enfermos e as mulheres, que não podiam fazer-se representar por familiares vigorosos e atrevidos, podiam contar que não iam ter direito ao seu quinhão.

Houve, pois, reclamações. Para tentar pôr cobro a essa injustiça, em 1827 o governo da então Capitania da ilha resolveu introduzir alguma ordem nessa situação começando por proibir as fictícias consignações de navios ao grupo do feitor e seus amigos, e a seguir estabelecer o que ficou conhecido na história da ilha com o nome de «a roda do sal». Segundo esse novo esquema, já não era a força que ditava a repartição, antes todos os habitantes da ilha que exerciam a função de cabeça de casal, e na proporção do número dos seus familiares ficavam com o direito de embarcar, alternativamente ou por turno, uma certa porção de sal, por um preço antecipadamente definido e igual para todos.

A roda do sal provocou uma considerável melhoria na vida da população pelas inegáveis vantagens que lhe ficaram associadas quanto à exportação desse produto. Diz-se que antes dela muitas pessoas andavam quase em estado de nudez, porém logo começaram a aparecer vestidas e bem comidas, e a ilha não só ficou liberta da mendicidade como até garantida com algumas poupanças. E mesmo com alguma sobranceria, como pelo menos conta o secretário do Governo-Geral da Capitania de Cabo Verde e autor da Descrição Corográfica das Ilhas, António Marques da Costa Soares, que escreveu sobre o povo do Maio com alguma acrimónia: «Pode dizer-se com verdade que os habitantes desta ilha do Maio são os piores que há nestas ilhas, por sua indolência, rusticidade e ridículo orgulho. Inóspitos para os portugueses, preferem os ingleses cujo idioma toscamente falam quase todos, pela muita comunicação que com eles e com os americanos têm sucessivamente.» Bem, talvez mais um exagero provocado por um conhecimento apressado do tipo Lucas de Senna. O governador António Pusich, que perante os reflexos em Cabo Verde da Revolução de 24 de Agosto de 1820 acabou por se refugiar na ilha do Maio durante cerca de três meses, muito tendo escrito sobre Cabo Verde e as suas ilhas, nada refere sobre esse pormenor que certamente teria chamado a sua atenção. Aliás, sobre a ilha do Maio a sua única reclamação foi ser o clima tão doentio quanto o de Santiago, e ser «ela muito pouco provida de mantimentos; em uma palavra, à excepção de peixes e carnes, é falto de toda a espécie de comestíveis».

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Ilha do Maio

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Já o Sempalhudo, que escreveu sobre as ilhas e os ilhéus na sequência do que considerou as arbitrariedades do Sr. Chelmicki e da sua Corografia Cabo-Verdiana, contesta que este não tenha visto que o que chama de «falta de índole natural dos maienses», quando os acusa de serem pouco dados ao trabalho, não é senão algo que é congénere dos povos que habitam a zona tórrida, homens que não conhecem outra necessidade senão as do dia actual e que tendo uma calça e uma camisa com um punhado de milho e um pouco de leite olham com indiferença para montões de moedas d’ouro. E daí que nunca se dariam ao trabalho de tentar fazer produzir um terreno ingrato como era o do Maio, tendo uma salina que sem esforço os alimentava a todos e com proveito.

Mas era visível que a forma de distribuição do sal da Salina Grande estava ainda longe de satisfazer os interesses de todos, como aliás se depreende do despacho datado de Maio de 1843 do governador-geral, brigadeiro Francisco de Paula Bastos. Paula Bastos tinha chegado a Cabo Verde em 42 com o coração transbordando de amor ao povo das ilhas e desejoso de lhe resolver todos os problemas. Ora, segundo ele, no caso particular da ilha do Maio, que tinha visitado, a experiência de muitos anos mostrava que o método da divisão do sal da Salina Grande era inconvenientíssimo para a tranquilidade pública que sofria graves transtornos quando se procedia à sua divisão, pois que a mesma era sempre feita pela força física dos interessados e muito tumultuariamente. Reconhecia o despacho do governador que aquela Salina era o único manancial de riqueza dos habitantes do Maio, de modo que era importante não só mantê-la cuidada e limpa como também ao serviço de toda a população. Pelo que nomeou uma Comissão, presidida pelo conselheiro Manuel António Martins, nessa época de novo nas boas graças do poder, à qual foi pedido que elaborasse um plano que desse lugar a uma justa divisão do sal por todos os habitantes da ilha.

A nomeação dessa Comissão saiu no Boletim Oficial de 17 de Maio e logo no dia 24 seguinte já vinha publicada uma longa, pormenorizada e rigorosa portaria de 43 artigos, regulando quase ao pormenor a propriedade, administração e limpeza das salinas e também a venda e exportação do sal, sem sequer ter esquecido as disposições transitórias destinadas a garantir, sem problemas de maior, a divisão naquele ano de 1843.

A portaria é um belo documento. Começa por constatar que o método de distribuição do sal da Salina Grande da ilha do Maio não só estava em completo desacordo com as mais simples noções de justiça, por deixar à força e à arbitrariedade a decisão de um objectivo que apenas pelas regras da legalidade devia ser resolvido, como igualmente estava de todo fora das conveniências sociais porque tendia a promover a desordem e a alteração da tranquilidade pública. Mas também reconhecia que a Salina era a principal, senão mesmo a única fonte donde o povo extraía os meios da sua subsistência. Pelo que, findo esse intróito, declarou no primeiro artigo que a Salina Grande da ilha do Maio era de uso comum dos habitantes do concelho.

A seguir, permitia o direito ao usufruto da Salina a todos os vizinhos do concelho, e também aos que nele tivessem dignidade ou ofício vitalício de que vivessem. Uma particularidade interessante era que «os cidadãos portugueses» só participavam no direito ao sal da Salina Grande se estivessem há mais de um ano com residência estabelecida no Maio. Os estrangeiros não naturalizados, os domésticos e os escravos eram excluídos de todo o direito de participação.

A administração da Salina passou a ser garantida por 3 membros: um Inspector-Geral, nomeado pelo Governo, um Procurador eleito pela classe dos Negociantes e um outro Procurador também eleito pela classe do Povo. Os Procuradores tinham como função zelar pelos interesses da sua classe, mas não tinham direito a voto nas deliberações que fossem tomadas pelo Inspector, embora esse devesse sempre proceder de acordo com eles. Dado que a Salina era um bem comum, ficava óbvio que competisse aos habitantes a sua limpeza e conservação. Para isso e para esses trabalhos, o Inspector tinha poderes para os convocar por povoações e através de editais, punindo os faltosos com multa ou prisão até três dias.

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Ilha do Maio

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O esquema estabelecido pela portaria para a distribuição do sal passou a ser simples e pacífico: no mês de Janeiro de cada ano o inspector levantava o cadastro da população da ilha, com a designação dos chefes de cada família e o número dos seus membros. Depois disso, ele e os procuradores dividiam a Salina em lotes numerados, que podiam ou deveriam ser de tamanho variável, desde que tivessem a mesma quantidade de sal.

Definidos esses lotes, dividiam as famílias em tantos ranchos quantos fossem os lotes, mas sempre de forma a cada rancho ter o mesmo número de pessoas. Depois disso reuniam os chefes de família de cada um dos ranchos e entre eles escolhiam um representante. Definidos os representantes de todos os ranchos, esses eram chamados para o sorteio dos lotes, que se fazia retirando cada um deles de uma vasilha um papel com o número correspondente ao lote. A seguir, os chefes de rancho procediam à divisão do seu lote em quinhões que eram calculados de acordo com o número de pessoas de cada família.

Conforme ainda a portaria, a exportação do sal continuava a ser feita pelo método da roda, porém com certos melhoramentos: quando um navio aparecia no porto a pedir sal, o Inspector-Geral mandava primeiro perguntar qual a quantidade desejada. A seguir, essa quantidade era dividida, uma metade para os Negociantes e a outra metade para o Povo. Os negociantes preenchiam a sua metade na proporção das suas existências em sal; o Povo fazia-o rateando a sua metade na razão de setenta e dois alqueires por cada chefe de família, trinta e seis por sua mulher e dezoito por cada uma das demais pessoas do agregado. O pagamento do Inspector e dos Procuradores consistia em poderem embarcar uma certa quantidade de sal todas as vezes que havia navio, regalia que era independente do seu direito na roda.

O sal da ilha do Maio, e no geral das demais ilhas salinas, era exportado para a Inglaterra, Caraíbas e também Brasil. Porém, a exportação para a Inglaterra já vinha sendo prejudicada desde os tempos da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, pois que os ingleses apenas compravam através de trocas e a Companhia não aceitava essa modalidade de venda, queria sempre dinheiro vivo. Com o aparecimento das indústrias salineiras na América do Sul. Cabo Verde acabou ficando reduzido a exportar apenas para algumas colónias da África e mesmo assim só de tempos a tempos. E foi desse modo que a ilha do Maio entrou em crise, tendo a fome de 1863 feito grande parte dos seus habitantes procurar a emigração como forma de sobrevivência.

Num esforço para fazer ressurgir a ilha, em 1880 o Governo admitiu, como solução de recurso, a criação de uma colónia penal «que empregaria na salina a actividade do braço dos condenados a degredo». Para isso haveria sem dúvida que ter ali um forte destacamento militar para efeitos de garantir a segurança pública, facto esse que iria contribuir para o geral incremento da ilha. A ideia foi, porém, abandonada.

Tal como o Fogo, o Maio vive ainda hoje em estreita ligação com a ilha de Santiago, especialmente com a localidade de Pedra Badejo que lhe fica próxima. A maior fonte de receita da ilha são as remessas dos seus muitos emigrantes. Tal como o Sal e a Boa Vista, é uma ilha considerada como reserva do turismo.


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