18 Ago 2016
A genuína cabo-verdianidade
Da lista das ilhas a visitar, São Nicolau sempre ocupou lugar de destaque. A mística, a história e a especificidade cultural das suas gentes, aguçavam-me a curiosidade. Contudo, devido às dificuldades nos transportes — voos cancelados, horários trocados ou frequências suspensas — fui constantemente forçado a protelar a viagem. Ouvi dizer que “agora até nem está tão mal”, mas o certo é que, para chegar a São Nicolau, tive que empreender uma complexa operação logística. Por isso, neste nosso roteiro pelas ilhas do arquipélago de Cabo Verde, São Nicolau tenha ficado para o fim. Talvez por isso, o leve para sempre no coração.
Confesso que, este foi dos poucos roteiros de viagem onde experimentei o mais vasto leque de sentimentos e onde me abandonei à perplexidade da riqueza humana que encontrei em harmoniosa coexistência com a quase imaculada beleza natural que ainda subsiste nesta parte de Cabo Verde. Penso que, devido à sua centralidade no agrupamento das ilhas que compõem o arquipélago, São Nicolau permitiu que, de forma consensual e transversal, se concentrasse durante muitos anos, grande parte da massa intelectual cabo-verdiana. Esta corrente de pensadores e ideólogos seria confirmada pelo movimento dos Claridosos, cujos seus membros muito devem aos valiosos ensinamentos auferidos no histórico liceu dos Salesianos.
Fiquei com a certeza que muito mais se poderia fazer pelo desenvolvimento de São Nicolau. Também confirmei, por exemplo, ao nível agrícola e das pescas. que esta ilha tem ainda muito a dar a Cabo Verde. Com o seu imenso património histórico, do qual destaco a antiga Sé Catedral, o Seminário-Liceu ou o primeiro Campo de Concentração de Presos Políticos do antigo regime colonial, São Nicolau tem igualmente potencial para atrair outro tipo de turismo e, com ele, gerar outras formas de receitas. O potencial existe, está latente. Apenas necessita de ser catapultado.
Mas São Nicolau é muito mais. Incorpora em si a profundidade humana e o sentimento do povo cabo-verdiano recriado na eterna morna Sodad. Recordei os tocadores de violino, os tocadores e cantadores de mazurca que animavam os tradicionais bailes de S. Nicolau e que, compenetradamente, dançavam “esta dança” de expressão nobre e cuja origem já quase todos desconhecem. Assisti ao renascer da tradição dos tamboreiros e aprendi a distinguir o som dos tambores da Praia Branca dos da Ribeira Brava. Presenciei a persistência, a determinação e a coragem de um homem que dedicou toda a sua vida à indústria conserveira nacional e que é um exemplo vivo do génio e tenacidade deste povo. Vi trabalho, audácia e respeito. Vi vontade e força para tornar o amanhã melhor.
Findo este ciclo, fica a promessa de darmos início a uma outra etapa, enquadrada por diferentes culturas e tradições, contextualizada em outras latitudes e realidades. Porque Cabo Verde é muito mais que um arquipélago no Atlântico, propomo-nos retratar a face universalista dos cabo-verdianos na diáspora, lá onde nos for possível.
Para terminar, levo comigo as sentidas palavras de um grande filho da terra, um sanicolauense a quem não poderia deixar de homenagear: o poeta, compositor, instrumentista e intérprete, Paulino Vieira, cujas palavras são o eco do genuíno sentimento de todos os cabo-verdianos, os de cá e os do mundo:
S`na mundo tem mornas e mornas dedicód / Tónt morna bô te mereçê
S`beleza ta trazê inspiração /Esse bô beleza, ê más cum belo horizonte
Infeitód cum bom pôr do sol / Ô um arco-íris mut bem d`stacód.
Amim djam cria ser poeta / Pám fazê um mar di poesia
Pám cumpará que`s bô beleza d`natureza / Parsem nem mar, nem lua cheia
Nem sol brilhante, nem noit serena / Ta cumpará q`bô formosura e bô corpo.
(in ‘m Cria Ser Poeta)
Luís Neves
Diretor