20 Fev 2013
Fernanda Maria de Brito Marques – Mudar os paradigmas estabelecidos
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A 4 de janeiro de 1977, Fernanda Maria de Brito Marques chega a Cabo Verde, terra dos avós da sua família, vinda de Luanda. Trazia consigo todo o imaginário da conquista da revolução feita e conseguida. Tinha a convicção que se podia mudar o mundo, e Cabo Verde era importante para essa mudança. O ensino aparece na sua vida em finais dos anos oitenta. Faz parte da geração que teve de trabalhar durante cinco anos, antes de se poder candidatar a uma bolsa de estudo. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e terminou o mestrado em Literaturas e Culturas Africanas de Expressão Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa. Regressa a Cabo Verde em 1986, tendo sido integrada no Ministério da Educação, no Departamento de Bolsas de Estudo e Cooperação. Após dois anos de serviço na cidade da Praia, muda-se para o Fogo para montar a primeira delegação do Ministério da Educação naquela ilha. Essa experiência viria a mudar a sua vida, estreitando para sempre a sua ligação ao ensino nacional. Após uma passagem na direção do Liceu Ludgero Lima, Fernanda de Brito Marques integra a Escola de Formação de Professores do Ensino Básico, também no Mindelo. A grande paixão pela reforma do sistema educativo que na altura se estava a implementar no País, fez com que viesse a desempenhar vários cargos de direção ao nível do Ministério da Educação. É atualmente a ministra da Educação e Desporto de Cabo Verde.
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Em 1975, após a independência nacional, a realidade do país não era das mais otimistas. Grande parte dos serviços estava inativo, havia enormes deficiências ao nível do capital humano com carências de toda a ordem. A taxa de analfabetismo rondava então os 70%, o que o mesmo quer dizer que a população era maioritariamente analfabeta. Havia algumas escolas, mas não eram suficientes para que toda a população pudesse frequentar a escola.
Os sucessivos governos de Cabo Verde colocam a educação como setor prioritário para o desenvolvimento do País. Conforme refere Fernanda de Brito Marques, ministra da Educação e Desporto de Cabo Verde, “só não é o mais importante, pois temos de garantir em primeiro lugar o direito humano à sobrevivência, por isso, a saúde é colocada à frente, mas a educação vem logo como a segunda prioridade. Todos os anos é feito um grande investimento nesta área, desde a formação de professores, até à construção de escolas, fornecimento de equipamentos e reformulação de metodologias.”
As reformas do ensino em Cabo Verde
Até ao momento, foram feitas três grandes reformas no sistema educativo cabo-verdiano. Conforme relembra a ministra da Educação e Desporto, “a primeira grande reforma, ocorreu em 1975, com a independência e a alteração do paradigma de governação de instrução e educação. No entanto, há que se fazer jus a Portugal, que sempre utilizou Cabo Verde como produtor de recursos humanos para a administração colonial, o que levou a que do Primeiro Governo de Cabo Verde pós-independência partisse de um patamar com alguma tradição ao nível do ensino no País”.
Nessa altura, com a existência de apenas dois liceus para todo o País, a maioria das pessoas não conseguia frequentar o ensino secundário. Apenas aquelas que tinham capacidade financeira para se deslocarem para as ilhas onde estavam esses dois liceus, nomeadamente para São Vicente e Santiago, é que podiam continuar a sua formação académica. A partir de 1975, investiu-se muito na educação dos cabo-verdianos e esse investimento mantém-se até aos dias de hoje. “Temos ao longo destas quase quatro décadas, vindo a evoluir no processo de ensino e aprendizagem. A título de exemplo, o processo de ensino e aprendizagem que foi adotado em 1990 foi o da aprendizagem por objetivos. Atualmente, estamos a reformular o sistema para a aprendizagem por competências. O nosso sistema educativo cresceu de tal forma significativa que, atualmente, toda a população com menos de 25 anos está escolarizada, o que quer dizer que, neste momento, não se pode falar de analfabetismo em Cabo Verde. Existirão analfabetos, alguns deles até funcionais, mas em termos de taxas não podemos falar em analfabetismo”, diz a ministra.
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Atualmente, a taxa de transição do ensino básico para o secundário situa-se praticamente nos 100%. De duas escolas secundárias em 1975, passou-se para as atuais 49, o que dá uma média de 2.8 por concelho do País. Está-se neste momento a construir mais quatro estabelecimentos de ensino médio e a restruturar também outros quatro, o que elevará para 57 o número de escolas secundárias em todo o território nacional.
Para além de ter orientado o ensino por objetivos, em que numa primeira fase o que se pretendia era a erradicação do analfabetismo, Cabo Verde também passou por uma período de atribuição de bolsas de estudo, em cooperação com outros países, os quais tiveram um papel importante na formação de quadros cabo-verdianos. Muitos jovens partiram então para a União Soviética e para a China (embora esta última investisse mais ao nível das infraestruturas). Portugal, França, Angola, e Cuba foram outros destinos que cooperaram na formação de quadros nacionais. Conforme recorda a ministra, “quando pensamos em educação, pensamos sempre em resultados a longo prazo. A geração que entrou na primeira classe em 1975 tem hoje 45 anos, o que o mesmo é dizer que, a construção de Cabo Verde fez-se essencialmente sobre esses quadros.”
No pós-independência, quem terminava o 7º ano, para poder aceder a uma bolsa de estudo tinha que primeiro trabalhar durante cinco anos. Conforme diz Fernanda de Brito Marques, “a administração pública de então foi montada a partir de dois grandes contributos: por um lado com pessoal que tinha vindo do quadro colonial, por outro, com os jovens que tinham chegado ao 7º ano de escolaridade. A partir daí concorria-se para bolsas de estudo e podia-se tirar as licenciaturas nos países que cooperavam com Cabo Verde.”
O ensino superior e as necessidades do mercado
Em 1991, com a passagem de Cabo Verde para um regime de multipartidarismo, outros países abrem as suas portas à cooperação, o que faz com que o número de cabo-verdianos a estudar no exterior aumente significativamente. No entanto, a partir de 2001, regista-se um grande crescimento de estabelecimentos de ensino superior em Cabo Verde. “O ensino superior começa por ser privado, para depois o Estado vir a abrir a sua universidade pública e passarmos a uma seleção diferenciada relativamente às bolsas a atribuir, quer na procura, quer mudando, pela cooperação internacional, a tipologia da sua oferta, onde as licenciaturas que existem no país, não poderão ter bolsa de estudo para o exterior”, refere Fernanda de Brito Marques.
Este incremento exponencial de alunos a frequentar o ensino superior em Cabo verde, leva-nos de 748 alunos em 2001, para os mais de 12 mil existentes atualmente. Começam contudo a aparecer indicadores que relevam que, em determinadas áreas de formação, há um excesso de oferta cujo mercado não consegue absorver. Conforme diz a ministra, “a questão da absorção dos quadros recém-formados por parte do mercado de emprego é um dos grandes desafios do atual Governo. Pela primeira vez, temos um Programa de Governo integrado, isto é, não possuímos objetivos setoriais de governação, mas apenas objetivos de desenvolvimento do país. No que diz respeito aos recursos humanos, existem três Ministérios estratégicos: o Ministério da Educação e Desporto, o Ministério do Ensino Superior, Ciência e Inovação e o Ministério da Juventude, Emprego e Desenvolvimento dos Recursos Humanos. Temos também já pronto o primeiro programa integrado da Formação, Educação e Emprego, pois é exatamente aqui que temos de concentrar os nossos esforços”, e adianta que, “todas estas alterações têm por objetivo reduzir a elevada percentagem de população licenciada que não está a obter emprego de forma tão simples como, por exemplo, a geração a que pertenço. Há por isso necessidade de se adaptar o conhecimento às reais necessidades do mundo de hoje”.
A qualidade do ensino em Cabo Verde
Há, contudo, quem se questione sobre a qualidade do ensino em Cabo Verde. Para a ministra da Educação e Desporto, essa é uma falsa questão, pois conforme diz, “não existe um estudo específico sobre esse assunto, por isso, a qualidade deverá ser um tema que apenas poderá ser discutido em cima de critérios, quantificações e qualificações, os quais neste momento não existem. É comum falar-se na baixa qualidade dos nossos alunos, mas se olharmos para outros países, passa-se exatamente a mesma coisa: problemas de iliteracia (nos Estados Unidos da América, em Portugal, na França, etc.)”, e aponta o exemplo concreto do nível de insucesso extremamente baixo dos alunos que saem para o exterior para completarem os seus estudos. Conforme diz, “os alunos que terminam o ensino secundário em Cabo Verde e que continuam os seus estudos superiores em outro país qualquer, fazem o seu percurso académico lá fora sem grandes dificuldades. Isso deve significar alguma coisa quanto à qualidade do nosso ensino”.
A premiar a formação dos seus quadros, entre os países lusófonos, Cabo Verde é o que regista a maior taxa de sucesso. Estes resultados são explicados, segundo a ministra, “pela necessidade de sobrevivência, pois como cantava a Cesária, o único petróleo que temos é para acender o candeeiro. Acredito que não somos melhores que os outros, temos é eventualmente mais necessidade e essa necessidade é que nos empurra para a busca de conhecimento.”
O ensino e o desporto
O desporto é outra das componentes que tem merecido, por parte do atual Governo, um tratamento especial. Conforme salienta a ministra Fernanda de Brito Marques, “estão a decorrer um conjunto de iniciativas através da Coordenação Nacional da Educação Física e Desporto Escolar que visam o fomento da prática desportiva ao nível do ensino nacional, com a introdução de escolas de iniciação desportiva na maior parte da rede de escolas do País. Temos ainda a bolsa Jovem Atleta, que também permite incentivar os jovens na prática do desporto de alto rendimento.”
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Apesar de a prática da educação física fazer parte do programa nacional de ensino, há ainda alguns constrangimentos quanto à quantidade e à distribuição dos espaços que, ao nível escolar, permitem a sua prática. Conforme adianta Fernanda de Brito Marques, “o Ministério da Educação e Desporto, está neste momento a finalizar a Carta Desportiva, para que a mesma possa ser integrada na Carta Escolar. Desta forma, podemos ter a identificação de todos os espaços, quer escolares, quer desportivos a nível nacional, rentabilizando-os ao nível do ensino”. Existem ainda outros tipos de iniciativas, com alguns protocolos já celebrados, que permitem a utilização de espaços comunitários e associativos ao nível do ensino nacional.
Formação artística nos novos currículos
Também a formação artística dos jovens cabo-verdianos tem sofrido profundas alterações ao longo destes últimos anos. A quando da segunda reforma do sistema educativo, os técnicos que na altura trabalharam nos vários programas educativos, lutaram para que o peso das denominadas expressões fosse equivalente às restantes disciplinas. No entanto, e conforme diz a ministra, “essas questões tendem a alguma burocracia de processo e as expressões ficaram sempre com uma carga horária inferior às outras disciplinas tradicionais”. A atual equipa do Ministério da Educação e Desporto voltou a repensar esta questão e está já a preparar uma série de legislação que permita que, no novo currículo, este equilíbrio entre as disciplinas ditas de base – língua portuguesa, matemática, ciências integradas, etc., e a área artística, se consiga efetivamente firmar”. Com este equilíbrio entre as cargas horárias das diferentes componentes de ensino, pretende-se fundamentalmente atualizar os vários programas, mas também, e tal como explica a ministra, “por uma questão da atualidade económica e financeira do mundo, em que, paralelamente à economia do conhecimento, a economia criativa tem cada vez mais espaço”, e adianta que “estamos a atravessar uma mutação natural entre estas duas vertentes. Cabo Verde tem um grande potencial humano na economia criativa, por isso, teremos que o saber aproveitar. Estamos por isso empenhados em que, a partir do pré-escolar, possamos ter um currículo que desenvolva mais a aptidão artística dos nossos alunos, até por uma necessidade pedagógica de base.”
Pensar o ensino especial
O evoluir natural do sistema de ensino no País, introduz novas necessidades que, se inicialmente não eram prioritárias, nos dias de hoje são obrigatórias. O ensino especial é uma destas obrigatoriedades em que o Ministério da Educação e Desporto está a trabalhar. “Temos dado cada vez mais atenção às necessidades educativas especiais, no entanto, ainda não temos um sistema capaz de se ocupar da totalidade dos casos especiais. Em 1990, na famosa Conferência Mundial sobre a Educação para Todos, em Jomtien, Cabo Verde também participou e desde logo adotou as resoluções definidas, adotando uma educação para todos, sem regimes de exclusividade. Só passados estes anos todos, é que conseguimos incluir nas escolas os nossos meninos com paralisia cerebral, por exemplo. Já temos no ensino secundário um conjunto importante de alunos surdos-mudos, mas o certo é que, ainda não temos capacidade efetiva de poder chegar a todos os casos. O exemplo dos que estão acima da média, por exemplo, são outro dos grupos que não podemos acompanhar, como tal, integramo-los no ensino regular, junto com as outras crianças”, confidencia Fernanda de Brito Marques.
A educação especial ainda é apenas uma disciplina na formação de professores, mas a tendência é para se vir a ter cursos especializados para estas necessidades educativas. Há já no País técnicos de ensino especial para diferentes valências, tais como a terapia da fala, a surdez, etc.
A formação de professores e a capacidade de assimilação do País
À medida que o Governo investe na formação dos seus cidadãos, também investe na formação de professores. Durante algum tempo, Cabo Verde teve nos professores cooperantes, nomeadamente aqueles provenientes de Portugal, uma interessante ajuda no desenvolvimento do sistema educativo nacional, contudo, hoje em dia, todos os professores são nacionais.
Também a reforma do ensino que está a ser implementada é toda elaborada com recurso aos quadros técnicos nacionais. Conforme salienta a ministra Fernanda de Brito Marques, “a primeira e segunda reforma do ensino foram desenhadas a partir do exterior, mas esta terceira reforma já está a ser executada essencialmente por nacionais, com algumas consultorias técnicas específicas, muitas vezes ligadas a organismos regionais, exteriores”.
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A formação de professores em Cabo Verde é da responsabilidade do Instituto Pedagógico, com três escolas de formação: uma no Mindelo, outra na Praia e ainda uma terceira em Santa Catarina. Foi recentemente reconfigurado para Instituto Universitário da Educação, precisamente para formar professores do pré-escolar até ao ensino universitário. Neste momento, o País é autossuficiente ao nível das necessidades de professores a ponto de, este ano letivo, ter registado um número excedentário para os quais não conseguiu colocação. Por forma a contornar esta problemática, o Governo, através do Ministério da Educação e Desporto, está a colocar professores no exterior do País, nomeadamente em São Tomé. Também para Timor estão previstos partirem alguns dos professores cabo-verdianos. Conforme argumenta Fernanda de Brito Marques, “sempre fomos um país de emigrantes e os professores já não são exceção. Contudo, já não é a emigração do corte da cana, mas é outro tipo de emigração… hoje em dia muito mais qualificada!”
O ensino e os desafios do País
Olhando para o percurso do ensino nacional nestes últimos 37 anos de independência, podemos verificar a grande evolução que o setor registou. De um país com dois liceus e 70% de analfabetos, passou-se para um país com um dos mais altos índices de literacia em África. No entanto, conforme diz a ministra, “há ainda muito para fazer. Quanto mais se faz, mais se tem a dimensão do que ainda temos pela frente. Estamos no momento em que temos de mudar de paradigmas, temos de acelerar o passo, pois tudo à nossa volta muda muito rapidamente.”
O paradigma do trabalho é talvez aquele que mais se alterou nos últimos anos. A pensar neste facto da sociedade atual, o Ministério da Educação e Desporto, reforçou a componente da formação técnico-profissional como forma de contornar as necessidades do mercado de trabalho. Está igualmente a criar famílias profissionais que não existiam, nomeadamente na área da economia criativa e das indústrias culturais. Há por isso muitas oportunidades que estão por explorar dentro do País. Conforme sublinha Fernanda de Brito Marques, “se vermos o que está a acontecer na Europa, com os desempregados espanhóis, portugueses, italianos, gregos, etc., eu, com a responsabilidade que tenho, que estou num pequeno país insular localizado no meio do Atlântico, tenho de me questionar sobre os paradigmas que tínhamos como certos, e tenho que encontrar soluções que não levem ao desemprego. Uma dessas soluções e que está desenhada nesta reforma é, precisamente, desenvolver o conhecimento em torno do empreendedorismo, tendo perfeita consciência que os nossos avós não precisaram de ter uma disciplina de empreendedorismo para empreenderem. Há por isso uma transformação em curso ao nível de tudo o que tínhamos como certo. Temos que nos adaptar às mudanças que estão a acontecer no mundo. Temos, por isso, que conseguir agregar conhecimento que sirva para o nosso desenvolvimento”, e conclui dizendo que, “temos de refletir e ver o que é o mundo hoje, adaptando-nos às suas transformações, sempre acreditando nas nossas capacidades”.
Comentários
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you sound like you know what you’re talking about! Thanks