28 Jul 2016
Aldeias SOS Cabo Verde — Dar nova vida às crianças desprotegidas
Todos os dias em Cabo Verde, como em todo o mundo, muitas crianças são vítimas inocentes de miséria, maus tratos, de dramas familiares e de abusos sexuais. Encontram-se abandonadas e sem proteção. É para elas que existem as Aldeias SOS. 30 anos depois da chegada da primeira Aldeia SOS a Cabo Verde, Alexandre Rocha, membro conselheiro para o desenvolvimento de projetos da organização no país, faz-nos um resumo da atuação da ONG em Cabo Verde e uma visita guiada pelas suas diversas áreas de intervenção.
Em 1949, com a Europa devastada pela II Grande Guerra Mundial, os deslocados e sem abrigo abundavam no que restava das cidades e vilas do Velho Continente. Com eles, inúmeras crianças que se tinham separado dos pais e familiares necessitavam de quem por elas olhasse e cuidasse. Hermann Gmeiner, filho de uma numerosa família de camponeses de Vorarlberg, Áustria, sabia bem o que era viver sem os pais. Foi a irmã mais velha Elsa quem se encarregou de cuidar dele. Participou diretamente na Grande Guerra como soldado na Rússia, e as horríveis memórias da traumatizante experiência despertaram-lhe a necessidade de ajudar a minimizar o sofrimento de muitas crianças órfãs e sem abrigo que, diariamente, com ele se cruzavam.
Reuniu então algumas das mães viúvas e mães solteiras com as crianças órfãs. O conceito foi um sucesso. Viu neste conceito de família uma resposta mais eficaz para o saudável desenvolvimento dos jovens, pois, conforme constatou, para as crianças há a necessidade da presença da família. Não sendo a família biológica, que seja outra família substituta capaz de lhe dar a oportunidade de crescer num ambiente familiar favorecendo o seu desenvolvimento pleno, para que no futuro se torne um ser humano completo.
Com apenas 40 dólares no bolso, Hermann Gmeiner fundou, em 1949, a Associação Aldeias Infantis SOS e, no mesmo ano, deu início à construção da primeira aldeia em Imst, na Áustria. O trabalho por ele realizado junto dessas crianças era tão intenso e gratificante, que decidiu abandonar o curso de medicina para se dedicar exclusivamente ao projeto. Nos anos que se seguiram, a atividade das Aldeias Infantis SOS espalhou-se por toda a Europa e, em 1963, em Daegu, Coreia do Sul, foi inaugurada a primeira aldeia fora do continente. Outras se seguiram na América e em África. Em 1985, o trabalho de Hermann Gmeiner totalizava já 233 Aldeias Infantis SOS espalhadas por 85 países.
A convite do então primeiro-ministro Pedro Pires, Hermann Gmeiner assinou em 1982 um memorando de entendimento para trazer o projeto para Cabo Verde, país que na altura era considerado por muitos como inviável. Fruto deste encontro, foi criada, em 1984 na Assomada, a primeira Aldeia Infantil SOS e um jardim infantil em Cabo Verde.
Do grupo inicial de crianças que receberam acolhimento na Assomada, fazia parte Alexandre Rocha. O jovem Alexandre, então com apenas quatro anos de idade, chegou à Assomada em 1984 e saiu em 1999. Voltaria em 2006 para trabalhar como guia de jovens no lar juvenil. Em 2010, Alexandre Rocha tornou-se responsável pelo desenvolvimento de novos programas, cargo que ainda hoje mantém.
A Aldeias Infantis SOS Cabo Verde está atualmente presente em duas ilhas do arquipélago, com duas aldeias em Santiago e uma em São Vicente. Em Santiago, conta ainda com Centros de Intervenção em São Domingos e na Assomada. Em São Vicente, a organização possui o Centro Social SOS do Mindelo, localizado na Ribeira de Julião e ainda mais três Centros Comunitários distribuídos pela ilha.
A Aldeias Infantis SOS Cabo Verde mantém-se fiel à ideia original do seu fundador: dar uma família de acolhimento às crianças em dificuldades, ajudando-as a construir o seu próprio futuro e a participar no desenvolvimento das suas comunidades. Tal como refere Alexandre Rocha, “enquanto organização de desenvolvimento social que privilegia a intervenção junto das crianças sem cuidados parentais ou em vias de perder esses cuidados, também atuamos na área do acolhimento. No entanto, esta é uma área que só atuamos em último recurso. Privilegiamos a prevenção através do Programa de Prevenção ao Abandono Infantil e do reforço das estruturas familiares. Damos também grande atenção à parte da educação. Possuímos jardins infantis nas duas aldeias que possuímos em Santiago e temos um programa de educação para o Centro Social de São Vicente. Em paralelo, apostamos na formação profissional e na capacitação das famílias. Trabalhamos a proteção infantil no seu todo, sempre baseados no espírito da convenção dos direitos da criança das Nações Unidas”, diz o conselheiro.
“A Aldeias Infantis SOS acolhe crianças dos zero aos dezoito anos. Depois desta idade, continuamos a dar apoio aos jovens que já foram parcialmente reinseridos e que vivem em regime de semi-independência. Dentro da estrutura das aldeias, existem as casas familiares, onde permanecem as crianças até à idade dos 14 anos. Por volta dessa idade, e mediante alguns critérios que devem preencher, poderão ou não transitar para o lar juvenil, uma outra estrutura dentro da aldeia, que acolhe unicamente rapazes com idade a partir dos 14 anos. Temos igualmente nas casas familiares as raparigas com idade dos zero à idade adulta nas quais permanecem nas casas familiares. O total de crianças na aldeia de São Domingos é de 73 crianças e na aldeia de Assomada 69. No programa dos que já saíram da aldeia, mas que ainda recebem algum apoio, contabilizam-se 25 jovens. Temos ainda 1530 crianças no Programa de Prevenção ao Abandono Infantil”, diz Alexandre Rocha.
Implementar um projeto desta natureza e com esta envergadura requer uma equipa multidisciplinar e altamente especializada. Entre mães, tias, técnicos de terreno, coordenadores de educação, educadores e pessoal administrativo, a Aldeias Infantis SOS Cabo Verde conta com a colaboração de 105 pessoas. Todos têm de cumprir com rigor e dedicação o código de conduta que rege a organização. A seleção das mães SOS está sujeita a padrões rigorosos e a perfis psicológicos especiais. Contam igualmente com o acompanhamento de um técnico que as orienta durante todo o período que dedicam à causa social. Tal como descreve Alexandre Rocha, “a idade mínima estabelecida para se ser mãe ou tia SOS, ronda os 35 anos. É nesta idade que já existe uma maior maturidade psicológica no ser humano. Também não podem ter filhos pequenos a seu cuidado. Mesmo ao nível familiar, não deverão ter nenhum encargo. Cultivamos a ideia original do professor Hermann Gmeiner, que afirmava que era importante agregarmos ao projeto as mães sem filhos para filhos sem mãe e assim dar família a quem a não a tem. Apesar de todas as mudanças que têm ocorrido nos últimos anos na nossa sociedade, essa linha de pensamento ainda hoje se mantém.”
A Aldeias Infantis SOS Cabo Verde acolhe crianças com carências familiares cuja integração em ambiente familiar harmonioso pode contribuir decisivamente para o seu pleno desenvolvimento. Para Alexandre Rocha, “a mais-valia das Aldeias Infantis SOS no trabalho de intervenção com as crianças, nomeadamente no acolhimento, é o facto de ser primeiro modelo de acolhimento a longo termo. Por ser um modelo familiar, não existe a criação de laços; as crianças entram ainda numa tenra idade, normalmente até aos 8 anos, onde há a possibilidade de se estabelecerem laços de fraternidade de relação mãe/filho o que torna o ambiente parecido com qualquer lar. Todo o enquadramento ajuda e minimiza a propensão, por parte dos jovens, para determinados comportamentos desviantes. No entanto, tal não quer dizer que este tipo de comportamentos não existam; existem como em qualquer casa ou em qualquer família na nossa sociedade, mas são minimizados pelo modo como operamos”, refere o especialista, acrescentando que, “pela forma como os programas que desenvolvemos são desenhados, com o apoio psicólogo e acompanhamento extra escolar prestado às crianças, conseguimos reduzir os comportamentos desviantes dentro do seio dos nossos jovens”.
Já no caso do trabalho realizado pela Aldeias Infantis SOS Cabo Verde na prevenção ao abandono infantil, a intervenção é feita ao nível comunitário. Depois de filtrada determinada comunidade, as crianças e famílias que preenchem os critérios preestabelecidos são admitidas no programa de prevenção promovido pela organização. Nestes programas podemos encontrar crianças e famílias com as mais diversas dificuldades, quer ao nível social, comportamental e psicológico, quer ao nível financeiro. Tal como explica o conselheiro nacional para o desenvolvimento dos programas da organização, “há um trabalho de aconselhamento no terreno por parte dos técnicos sociais junto das famílias. Numa comunidade, normalmente intervimos por um período de três a cinco anos, que é o período de tempo razoável para realizar um trabalho sustentável. Não trabalhamos com a criança desagregada da sua família; intervimos com a criança mas sempre no âmbito do seio familiar. A um outro nível, trabalhamos com as associações da comunidade. Aí há todo um trabalho e políticas de confidencialidade e proteção no qual temos sempre a preocupação de assinar um memorando que garanta o respeito não só pelos direitos mas, também pelas necessidades e potencialidades das crianças. Apesar das dificuldades, temos conseguido realizar, junto de muitas dessas crianças, um bom trabalho de prevenção”, refere orgulhosamente Alexandre Rocha.
Os projetos e apoios executados pela Aldeias Infantis SOS Cabo Verde apenas são possíveis com o apoio de diversos parceiros. O Governo de Cabo Verde, o Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICA), organismos públicos, associações e outras organizações similares são alguns destes parceiros que tornam possível a implementação dos diversos projetos nas comunidades em que opera. Tal como diz Alexandre Rocha, “à partida, a SOS por si só não conseguiria fazer uma intervenção numa determinada localidade. É necessário sempre a articulação com uma alargada rede de parceiros, cada um com as suas especificidades, com as suas ferramentas e técnicos, monitorizando os recursos e intervindo nas comunidades.”
Ao nível financeiro, a Aldeias Infantis SOS Cabo Verde sobrevive essencialmente graças ao Hermann Gmeiner Fonds, sediado na Alemanha e à SOS Luxemburgo, que financia os programas de intervenção comunitários e de prevenção ao abandono infantil. Ao nível interno, a SOS angaria a maior parte dos recursos financeiros necessários à sua atividade através da boa vontade de pessoas singulares, carinhosamente apelidadas de padrinhos que se reveem na causa da organização. “Temos cerca de mil padrinhos em nome singular que nos apoiam financeiramente mensalmente, além dos padrinhos internacionais que são, maioritariamente do norte da Europa. Também não podemos esquecer o importante contributo de alguns médicos e enfermeiros que nos prestam serviço de forma gratuita”, explica Alexandre Rocha.
O controlo orçamental e o rigor empregue em todas as fases dos diversos programas da Aldeias Infantis SOS Cabo Verde é sempre auditado por técnicos internos da organização e por entidades externas e independentes. Tal como explica o conselheiro, “a auditoria não é só a nível financeiro, mas a todos os níveis. Vêm colegas de outros países verificar tudo o que é feito, quer a nível financeiro, à qualidade e articulação de procedimentos. Há normas, manuais de procedimento, regulamentos internos, comité de entrada de crianças, comité de saída de crianças, proteção – tudo junto assegura a qualidade de atendimento e acolhimento pela qual nos regemos.”
Em termos de colaboradores, o controlo é ainda mais rigoroso. Existe um departamento de recursos humanos e de desenvolvimento organizacional que também atende a estrutura da SOS Internacional. É este departamento que é responsável pelo recrutamento e desenvolvimento de competências do colaborador. Por fim, realiza a avaliação de desempenho do trabalhador. Estes, para além de terem de ser qualificados, terão obrigatoriamente que possuir um perfil adequado ao trabalho que desempenham. “Tratando-se de uma organização que trabalha essencialmente com crianças, procuramos colaboradores cujo perfil se enquadre, por exemplo, na educação. Temos o cuidado de analisar o histórico das pessoas ou instituições com as quais trabalhamos”, refere o técnico.
A organização Aldeias Infantis SOS Cabo Verde procura acompanhar o desenvolvimento do próprio país, tentando sempre adaptar-se à realidade, às exigências e às necessidades da sua população. A curto prazo, está já contemplada a criação de um novo programa, através do qual a organização pretende construir Casas de Emergência, tentando assim ir de encontro às solicitações da sociedade. Conforme explica Alexandre Rocha, “pretende-se criar uma casa piloto de acolhimento a crianças em situação de emergência. Iremos arrancar com este projeto no mês de maio na aldeia da Assomada. Pretendemos também criar famílias substitutas à imagem do que é praticado noutros países. Pretendemos ainda, cativar outras instituições no nosso modelo de trabalho para que, desta forma, possamos dar resposta a um maior número de crianças que, todos os dias, necessitam do nosso apoio e do amor de uma mãe de acolhimento.”
A Aldeias Infantis SOS Cabo Verde é uma organização laica, apartidária que tem por missão facultar uma família às crianças em dificuldades, ajudando-as a construir o seu futuro e o das suas comunidades. Trabalham para que crianças órfãs, abandonadas ou cujas famílias não são capazes de cuidar delas, se tornem capazes de se tornarem membros ativos da sociedade, independentemente da sua cultura ou religião, ajudando-as a reconhecerem e a expressarem as suas habilidades individuais, interesses e talentos, valorizando o desenvolvimento moral e espiritual das crianças que acolhe, privilegiando a transmissão de valores morais, éticos e sociais às gerações vindouras.