Arménio Vieira — Ensaio sobre um hipotético romance autobiográfico
29 Jul 2016

Arménio Vieira — Ensaio sobre um hipotético romance autobiográfico

Dizem-me que nasci aqui no Plateau, no ano de 1941.

Comecei os estudos na Praia, nesta dependência cultural do então afamado Mindelo. Era lá que existia O Liceu. Os estudos aqui não passavam de meras explicações dadas por uns intitulados professores cujo grau académico se ficava, em boa hipótese, pelo sétimo ano… mas do antigo, que ainda valia alguma coisa! Sim, que agora, os que se enchem de orgulho de terem o “sétimo ano” não sabem escrever. Dão erros básicos e têm dúvidas que enchem de vergonha quem estudou noutra época:

— “Coreia é com um ou dois erres?”, perguntam muito espantados!

Não conseguem distinguir que, se for com dois, a palavra passa a ter um significado totalmente diferente, o que para eles acaba por ser indiferente, tamanha que é a ignorância de alguns. No caso dos acentos, a confusão é ainda maior, não havendo aí qualquer critério para a atribuição da acentuação; colocam-se acentos agudos no lugar dos circunflexos e os esdrúxulos ficam quase sempre em lugar nenhum!

— “Foi à sua vida…é com h?”, questionam cientes da sua ignorância.

— “E o acento? É para a esquerda ou para a direita?”, interrogam irrefletidamente, sem vontade de pensar.

— “É para a esquerda. É comunista!”, respondo quase maquinalmente, também indiferente às suas herdadas inculturas.

Arménio Vieira

Foi por estas e por outras que, depois de completar a quarta classe e de ter desperdiçado uma época escolar no famoso e pomposo “ano de admissão ao liceu” — que não passava de uma mera repetição das matérias dadas apenas no ano anterior — fui estudar para São Vicente, a Capital da Cultura de Cabo Verde! Era ali que ficava o liceu e com ele o mundo da luz, das ideias progressistas e o futuro. Terminei lá o segundo ano, qual súbdito do rei Dom Manuel — o reitor! Depois, vim para o recém-criado liceu da Praia — a sucursal¬ — que tinha o então vice-reitor. Era como se tivesse sido deportado para as Índias, sob tutela de Afonso de Albuquerque, ou melhor dizendo, sob alçada do senhor vice-reitor da Praia. Aqui me exilei até ao quinto ano, o último lecionado nesta filial do reino. Quem quisesse continuar, teria de voltar novamente à corte de Dom Manuel, no coração do Mindelo.

— “Rapaz, como até nem és mau aluno, acho que vale a pena continuares a estudar”, disse-me o meu pai.

Aquilo encheu-me de orgulho, pois na altura, com o quinto ano, já se arranjava um bom emprego. Apesar do empregador ser sempre o mesmo — o Estado — era seguro. O importante era entrar. Depois era aguentar um ou dois anos e estava-se em Moçambique ou em Angola. Quem ia para Moçambique ganhava melhor, mas em Angola era uma vida mais folgada. É como a Alemanha e a Suíça. Certa vez, perguntei a um alemão:

— “Porque é que trabalhas na Suíça?”

— “Porque me pagam muito mais do que se trabalhasse na Alemanha”, respondeu-me taxativamente.

Achei aquilo incrível. Como era possível que um país tão pequeno, quando comparado à grande Alemanha, pudesse pagar muito mais a quem para lá ia trabalhar? Talvez por ser uma economia feita com rigor e dinheiro. Não é lá que são feitos os melhores relógios e onde estão os maiores bancos do mundo? Apesar destes últimos estarem a entrar em decadência… enfim, o dinheiro, sempre o dinheiro! Foi precisamente para conseguir mais algum desse tão difícil dinheiro que fui uma vez mais para São Vicente dar continuação à ordem, por mim tão bem acatada, que o meu pai me tinha dado: continuar os estudos.

Concluí o sexto ano e, no ano seguinte, o ministro Adriano Moreira, autorizou a extensão do curso na Praia. Voltei novamente a Santiago, agora mais bem elucidado e informado… diria até que, para os padrões da época, um pouco subversivo, o que me valeu, no final do sétimo ano (esse mesmo, o tal prestigiante sétimo ano!) ter sido preso pela PIDE. Aí fui conhecer um outro tipo de liceu, não o das boas notas e o das ideias luminosas, mas o do presídio e da porrada.

Durante todo o meu tempo de estudante, apenas apanhei pancada duas vezes, e sempre por indisciplina dos meus colegas. Sempre fui um bom aluno. Decorava as lições todas, e quando digo todas, eram mesmo todas! Pegava na gramática do José Maria Relvas e decorava. Decorava interjeições, preposições, adjetivos, substantivos e tudo o que houvesse pelo meio. O professor dizia-me:

— “Tu és um colosso!”, o que acabava invariavelmente por rebaixar os meus colegas de sala.

Devia ser qualquer coisa de família, pois havia um outro aluno muito bom, o meu primo Zona, que agora até é Presidente da República. O Zona, além de decorar tudo, só tirava notas acima de 18 valores. O professor dizia:

— “Este miúdo é incrível! Até parece que nasceu em Roma. Latim é um língua difícil, ouviram? É mais difícil que matemática!”, comparava de forma eloquente.

O Zona rebentava as pautas todas. Era o melhor dos melhores.

— “Porque é que vocês não são assim?”, continuava o professor a perguntar, apesar de saber perfeitamente a resposta.

— “O Zona é o Zona, e nós, somos apenas nós!”, respondia a turma conformada com tamanha discrepância de valores.

Apesar de eu decorar tudo, nunca fui de estudar muito. A verdade é que não precisava. Gostava de colocar romances dentro dos livros da escola. Enquanto a aula ia decorrendo, eu ia sonhando ao ritmo dos romances que lia. Mas o meu pai era desconfiado! Andava sempre a ver os meus livros e, inevitavelmente, dava com os romances tão habilmente por mim camuflados. Ou assim gostava eu de pensar.

— “Os romances são para as férias. Nas férias, até te compro mais, se quiseres. Agora, é para trabalhar!”, dizia-me de forma ríspida, mas afável. Apesar de rigoroso, o meu pai nunca me bateu.

Arménio Vieira

Depois veio a vida militar, essa sombra que pairava insistentemente nas nossas cabeças. Fui colocado em Mafra, Portugal. Três anos no serviço militar obrigatório na guerra colonial do ultramar. A minha primeira reação quando cheguei a Portugal foi a mesma que se tivesse chegado a Nova York ou, até mesmo à Lua. Os arranha-céus, as luzes, e a televisão. Para quem vinha da Praia era um acontecimento. Ah, a televisão. Foi nela que vi pela primeira vez o Eusébio a quase acabar com a Espanha. Agora é a Espanha a acabar com Portugal! Ironia dos tempos.

Três meses após ter chegado a Mafra, fui novamente preso. Não por ter feito alguma coisa, mas apenas por ser referenciado pela PIDE. Afinal, já tinha experimentado a hospitalidade da Polícia Internacional e de Defesa do Estado português. Fui cumprir pena para Penamacor. Engraçado isto das palavras. Cumprir pena em Penamacor! Também foi pena a pena não ter durado mais pois, quando se está preso, tem-se muito tempo para ler, e eu adoro ler. Fruto da minha passagem pelo quartel disciplinar de Penamacor, fui mobilizado para a frente de batalha em Angola. Fui para a frente de combate mas, na verdade, nunca dei um tiro. Era chato! Um tipo que se dizia anticolonial tinha agora que ir lutar contra os que combatiam o colonialismo! Era uma coisa tremenda. Mas tentei não ir de encontro à minha ideologia. Até tentei fugir de Lisboa para França, mas não pude por causa de sete contos. Uns míseros sete contos. Hoje deveriam ser aí uns 100 contos. Na altura era muito dinheiro e eu, como não estava metido nas redes políticas, não consegui fugir. Quem era eu, que nem uns miseráveis sete mil escudos tinha para poder escapar à guerra colonial?

Fui mesmo para Nambuangongo, na província do Bengo, em Angola. Estive lá três meses que pareceram-me uma eternidade. Depois regressei a Luanda integrado numa tropa de intervenção. Curiosa esta tropa de intervenção: tinha o quartel em Luanda, precisamente onde não haviam combates! O que fazíamos era acampar e eu, como bom soldado, acampava. Sim, apesar de ter frequentado a Escola de Oficiais, a minha patente era a mais baixa. Soldado, tal como Cunhal. Se bem se lembram, Álvaro Cunhal também foi um aluno brilhante e, no entanto, também prestou serviço militar como soldado. Não é que eu tivesse muita simpatia por ele, mas na verdade é que ele até tinha alguns talentos: pintava, desenhava e até escrevia. É pena que a ideologia da época tenha aniquilado a projeção de Cunhal. Será para sempre recordado como líder comunista!

Nos dois anos que passei em Angola não me faltou nada. O meu irmão mais velho, na altura também lá estava, só que não era soldado. Tinha um bom emprego e, como tal, não nos faltava nada. Era só tirar a farda e ir para as festas onde a malta ia beber uns copos, ouvir música, cantar e divertir-se. Eu, nos meus 21 anos de idade, aproveitava para engatar umas miúdas… bons tempos! Fui mobilizado em 1964, passei um ano em Portugal e dois anos em Angola. Tinha cumprido os três anos de serviço militar. Estava na altura de regressar a Cabo Verde.

Cheguei ainda antes da independência nacional. Tive oportunidade de presenciar alguns desacatos com agressões e desordem à mistura. Aquilo era curioso. Certa vez, vencido pela curiosidade, também para lá fui… apenas para ver! Acabei por ir preso junto com a maralha da desordem. O sargento, quando me vê entrar na esquadra, perguntou:

— “Porque é que estás junto com esta maralha toda?”

— “Faço parte da maralha”, respondi.

— “Então vais preso junto com ela”, decretou sem mais demoras o zeloso polícia recém-liberto do jugo que durante anos o amordaçou.

O meu amigo e escritor Osvaldo Osório, lembra-se bem desta história! Na altura, muitas pessoas eram acusadas de serem informadores da PIDE. Bastava que alguém se desentendesse por razões pessoais, que quisesse fazer mal a outro, ou que se achasse vítima de injúrias para ir fazer queixa que, fulano ou sicrano era informador da PIDE. A pessoa era presa sem quaisquer provas. Havia de facto uma pequena anarquia e o poder tinha caído na rua. Esta situação só viria a terminar com a chegada do PAIGC.

Depois veio a Independência Nacional. Viver a Independência Nacional de Cabo Verde foi um momento único, para mim e para todos os cabo-verdianos. Talvez o melhor dia das nossas vidas. Momento igual a este apenas senti na entrega do Prémio Camões, trinta e quatro anos depois, mas já lá vamos!

O que me fez começar a escrever? Precisamente a Independência Nacional de Cabo Verde. Diziam que eram poemas, mas penso que eram mais panfletários.

Sou um autodidata da escrita. Como lia tudo o que apanhava, também comecei a apanhar o gosto de escrever… de tudo, exceto poesia. Confesso que não perdia muito tempo com poesia. Preferia romances. Talvez por se parecerem mais com filmes. Além do mais, podia sempre voltar atrás e apanhar o enredo da história. Quando era pequeno, essa era a parte aborrecida dos filmes. Chateava-me quando as legendas passavam muito rápido… perdia muito da história e isso perturbava-me. Só nos filmes de ação é que não me dava ao trabalho de ler as legendas… bastava acompanhar os personagens para me sentir dentro do filme. Depois inventaram as cassetes e os DVD e a ordem foi novamente reposta! Quando é preciso, basta rebobinar, tal e qual como num romance escrito, onde basta voltar umas páginas atrás para estamos novamente sintonizados nos personagens.

Arménio Vieira

Ainda sob regime colonial português inscreveram-me na Sociedade Portuguesa de Autores. O Comandante Correia dizia que era para me proteger, caso fosse preso. Estando inscrito, serviria de mais um meio de pressão com recurso a abaixo assinados. Eu dizia-lhe:

— “Como é possível inscrever-me na SPA sem ter ainda publicado qualquer livro?”

Com Cabo Verde já independente, resolvi mudar de rumo e optei por escrever livros. Apesar de nunca ter estado ligado a nenhum movimento político – até porque só havia um partido – dei por terminada a minha intervenção política pela escrita poética. Fui jornalista, professor e meteorologista. Gostei de todas, mas mais de meteorologista. Foi a melhor profissão que tive. Não tinha muito trabalho e o pouco que me davam era para olhar para o céu e registar o que os aparelhos liam. Coisa simples.

Como professor de português, aí era o contrário. Haviam turmas com 40 ou 50 alunos e eu chegava ao fim do dia derreado. Os professores em Portugal estão agora a queixar-se disso? Já de lá vim… O facto é que na altura haviam poucos professores, o que fazia com que as turmas fossem enormes. Aproveitei para introduzir outras literaturas no sistema de ensino em Cabo Verde pois, na altura, apenas a literatura lusa contava. Embora reconheça que o antigo patrão e o Brasil tenham mais força, sentia a necessidade de dar a conhecer outras coisas. É certo que Portugal tem literatura desde a Idade Média. São mais de 800 anos de escrita! Apesar do Brasil ter surgido 40 anos depois de Cabo Verde é um colosso, capaz de produzir um escritor por minuto.

Depois veio o jornalismo. Na verdade não era jornalista, mas sim revisor. Revia e corrigia os textos que os meus colegas escreviam. Naquele tempo os jornalistas eram muito mais rigorosos que atualmente. Escrevia-se melhor e com mais objetividade. Aristides Lima é um bom exemplo dos grandes jornalistas da época. Na verdade, havia mais disciplina e autoridade. A democracia tem disto! O lado lúdico é mais produtivo e a democracia contribui eficazmente para esta faceta do ser humano. O homem realiza-se mais a jogar que a trabalhar! Dançar é um jogo; cantar é um jogo, o futebol é um jogo. São tudo atividades que nos dão prazer. Quando se profissionaliza qualquer coisa, perde-se o prazer. É por este motivo que todos os bons xadrezistas da ex-URSS eram apenas semiprofissionais. Anatoly Karpov, o menino da Komsomol, a organização juvenil do partido comunista da União Soviética, foi como que a bandeira da URSS no renhido mundo do Xadrez e da Guerra Fria contra os Estados Unidos da América. Primeiro teve como adversário Bob Fischer – o americano judeu que acabou por fugir e se refugiar na Islândia, considerado o melhor xadrezista de todos os tempos; depois veio Garry Kasparov que não era da linha do regime, que teve como adversário o decidente Victor Korchinoi, e que também pediu asilo na Suíça. Tiveram jogos renhidos! Já o Boris Spassky, que era um cavalheiro. Também acabou por se exilar em França, com autorização do governo. Foi Bob Fischer quem lhe arrebatou o titulo! Na verdade, Garry Kasparov tinha sangue judeu por parte do pai. Aquele estigma de todos eles terem algo de judeus acabou por persegui-los a todos. Primeiro na União Soviética e depois, em toda a Europa cristã.

Arménio Vieira

Voltando ao meu percurso… O meu primeiro prémio literário foi ganho em 1976, logo a seguir à Independência Nacional. Foi um bom arranque! No segundo ano da competição organizada pela AEC – Associação de Escritores Cabo-verdianos, também ganhei. Mais tarde, no Prémio António Aurélio Gonçalves, fiquei empatado com o meu amigo Giovanni, na categoria de prosa de ficção. Ironicamente não ganhei o prémio Jorge Barbosa; deram-no a um amigo meu, com um romance! A vida é assim: feita de surpresas.

O Prémio Camões foi uma dessas surpresas. É um prémio sem concurso. Funciona por atribuição de um júri. Certo dia, estava eu em casa, quando recebi um telefonema de alguém muito excitado a me informar que tinha sido eu o escolhido para receber esse tão prestigiado prémio. Perguntei de imediato:

— “De onde fala?”

— “Do Rio de Janeiro.”, respondeu a voz agitada do outro lado.

— “Mas não estamos no Carnaval nem aqui, onde moro, é dia 1 de Abril”, contradisse sarcasticamente.

— “Você não acredita?”, retorquiu a voz.

— “Não.”

— “Então vou mandar aí alguém que vai confirmar o que acabei de lhe dizer.”

De facto, foi o Corsino Fortes, que fazia parte do júri, quem me ligou a confirmar a veracidade da informação.

Em 2011, quando recebi o prémio, o Governo português ainda tinha ministro da Cultura. Foi Gabriela Canavilhas quem serviu de interlocutor com a organização do Prémio Camões. Como não a conhecia, tratei logo de perguntar a um amigo:

— “Como é ela?”

— “Tem mais de 25 anos! Não é o teu tipo. Mas é uma mulher muito bonita.”, respondeu.

Fiquei mais tranquilo. De facto, era uma mulher muito bonita e simpática. Convidou-me para um almoço que demorou três horas. Após o almoço, mal entrei no hotel onde tinha ficado hospedado, a minha mulher tratou logo de arranjar uma cena de ciúmes. Pensou que o almoço era a dois e que, dado o tempo que tinha demorado, devia ter sido mais que um mero almoço. De facto, foi um almoço para muitas pessoas: embaixadores, convidados, fotógrafos e pessoas da organização. O prémio iria ser entregue às cinco horas da tarde desse dia, e eu tinha menos de duas horas para me arranjar e preparar para a cerimónia! Quase a correr, fui tomar um banho e vestir o fato que tinha levado para o evento.

— “Arménio, não me leves a mal o que te vou dizer, mas ficas melhor vestido à cowboy como sempre andas” — disse-me a minha mulher quando me viu sair da casa de banho de fato escuro e camisa branca.

Apenas faltava a gravata. Ora aí estava um problema inesperado: o nó da gravata! Então lembrei-me que à entrada do hotel estava um homem todo engalanado, o porteiro, que mais parecia um general. Se a memória não me falhava, devia ter uma gravata colocada. Só ele me poderia valer. Perguntei-lhe:

— “Sabe fazer o nó da gravata?”

O homem espantado respondeu que “sim” e eu senti um peso enorme sair-me de cima.

Na verdade eu não escrevi assim tantos livros para receber o Prémio Camões. Penso que deva ter sido um recorde mundial, pois não conheço ninguém que tenha recebido um prémio desta natureza com a publicação de um único livro. Fernando Pessoa com o livro Mensagem certamente não o receberia! Não pela qualidade do que lá escreveu, mas pelo facto de Mensagem ter apenas 90 páginas. Mesmo que o livro seja uma obra-prima, as editoras ganham menos em função do número de páginas do livro, daí que o número mínimo de páginas que um livro tem de ter para ganhar o Prémio Camões seja de 100! Nestes casos, quantas mais melhor. Eu nunca escrevi um livro com menos de 100 páginas. Pode ser que ainda venha a ganhar outro prémio por isso.

Há escritores que me marcaram pelo estilo e a forma como escreviam. Fernando Pessoa, Luís de Camões e Charles Baudelaire foram alguns deles. Depois da Independência, e sobre influência destes nomes comecei a escrever de forma diferente, pois tudo o que era transitivo na minha poesia tinha terminado, incluindo o ato de escrever. Se vermos bem, o próprio verbo escrever é transitivo! Nunca sei o que vou escrever. Depois de iniciar a primeira linha, o personagem comparece tal como uma alma invocada. Não há herói; o personagem toma conta do livro e o poeta apenas lhe dá voz. Pode até ser um discurso tosco, mas é o discurso do personagem e pode surgir quando menos se espera. Foi o que aconteceu ao escriba egípcio no meu livro O Eleito do Sol.

O Eleito do Sol surgiu na redação do jornal onde trabalhava. Estava eu e outro colega, ambos sem muito para fazer. Ao ver que ele estava a dormitar, aproximei-me da sua secretária e, dando uma estrondosa palmada no tampo, disse-lhe:

— “Uma sentinela não dorme!”

Nisto, da pilha de papéis que estava em cima do tampo, solta-se uma folha escrita à máquina que dizia: Escriba Egípcio. Admirado e estupefacto, disse:

— “Isto é um achado! O escriba egípcio escrevia! Mas o que será que ele escrevia?”

Pensei um pouco e cheguei à conclusão que ainda não se tinha escrito nada sobre os escribas. No Egito escrevia-se sobre os Faraós, a religião, os sacerdotes, os templos, as orgias e o ouro, mas não se escrevia sobre os escribas. Até poderia ser um tema interessante! Saramago, certo dia, teve de ir ao registo civil e deu de caras com um nome que achou interessante e perguntou-se: como seria este homem? onde teria nascido? o que fazia? será que se casou e teve filhos? Pronto, estava lançado o mote para o seu romance Todos os Nomes e que foi um sucesso. Há coisas que nos acontecem e que, no momento, não as entendemos. Só mais tarde conseguimos ligar as pontas das muitas histórias que fazem a nossa vida.

Com aquela ideia presa no raciocínio, tratei logo de escrever três capítulos sobre o tal escriba egípcio que, de soslaio e sem aviso prévio, me tinha aparecido na redação do jornal. Com o texto na mão, fui ter com um amigo e disse-lhe:

— “Lê lá esta merda e depois rasga.”

Ele respondeu-me que não rasgava absolutamente nada e até tratou de arranjar uma pasta de arquivo para guardar aqueles três capítulos sobre o escriba egípcio. Fiquei a pensar que talvez até nem estivesse muito mal! Resolvi continuar a escrever para ver no que aquilo ia dar e, quando me dei conta, já tinha escrito mais de 100 páginas! Afinal o personagem até tinha muito a dizer… eu é que não sabia transpor no papel tudo o que ele queria transmitir. Apercebi-me que sabia muito pouco da história do Egito e dos Faraós. Por obra do acaso, ou talvez não, encontrei um amigo que tinha um monte de livros velhos dos quais se queria desfazer. Na gigantesca pilha, lá estava um que retratava pormenorizadamente a história do antigo Egito. Sabia pouco dos personagens que fizeram a história, até porque os seus nomes são difíceis de decorar. Conhecia alguns, mas era pouco! É desta forma que aparece o nome da princesa Hatshepsut!

O enredo é todo autobiográfico. O mau da fita, o governador, representa o gajo da PIDE que, em tempos, me atormentou. É um livro cheio de anacronismos. Por exemplo, no Egito não se fumava, e muito menos cigarros populares fabricados em São Vicente e embalados em caixas de cartão! É um livro metafórico. O Eleito do Sol começa com o personagem principal, um marginal, que estava desempregado e impedido de trabalhar. Ele sabia escrever e o todo poderoso Faraó, não. Então, fazendo-se valer deste conhecimento, inicia uma guerra do poder intelectual contra o senso comum e fomenta uma rebelião. O escriba vive importantes desafios e torna-se um herói, mas é conflituoso, o que acaba por jogar a seu favor. No fim, transforma-se num democrata. É um momento antecipado em muitos séculos no qual se retrata a chegada da democracia a Cabo Verde. É que no antigo Egito ainda não havia o MpD! Dizem-me que o livro parece que descreve muitas das alterações políticas que se têm registado no nosso país, mas a verdade é que não pensei muito nisso. O desenrolar da história não passa pela razão. São meras intuições! Tudo estava incubado em mim e, à medida que fui escrevendo, fui dando corpo às ideias que fazem o meu ser. Não é um texto filosófico pois nada nele é racionalizado. A minha escrita é quase automática; ela revela o que tenho encerrado em mim. Não tenho que me esforçar!

Arménio Vieira

As metáforas são uma constante em todos os meus livros. O livro No Inferno é prova disso mesmo. A ideia para o livro surgiu-me após uma louca e conturbada paixão que me levou a Lisboa e me obrigou, literalmente, a escrever o romance. Na altura tinha decidido largar o jornal e tinha recebido uma boa indemnização. Como tinha dinheiro fresco e estava completamente apaixonado, decidi levar a miúda comigo para Lisboa. De bolsos cheios, devo ter entrado em todas as boutiques chiques da cidade. Onde eu a levava, ela comprava e eu pagava! Levei-a ao Centro Comercial Amoreiras… o centro da perdição dos homens apaixonados! A puta, que em Cabo Verde andava praticamente descalça, com brincos de latão e cera no cabelo, mal chegou ao Amoreiras só queria casacos! Eu, em mangas de camisa, e ela a comprar casacos! Comprou um, dois, três e quatro. Cada um mais caro que o anterior. Quando se preparava para escolher o quinto casaco, o homem da loja disse-lhe:

— “Olhe que esse é muito caro!”

— “O senhor, por acaso, sabe o dinheiro que eu tenho? Sabe se eu sou milionário?”, respondi-lhe a jeito de insulto! Ora não queiram lá ver que o tipo, em frente à minha namorada, me estava a achar com cara de pelintra! Era uma ofensa. Enchi o peito e comprei o casaco. O primeiro tinha custado 15 mil escudos e este já ia nos 50 contos.

Já quase falido, quando vi que o dinheiro já não ia durar para nem mais um dia, fugi do hotel apenas com a camisa que tinha vestida e deixei a tipa entregue aos seus casacos. Arranco para o aeroporto para regressar a Cabo Verde, mas já nem dinheiro para o táxi tinha. Coincidências da vida, encontro o Adido Cultural Português que, ao ver-me apenas em camisa sobre aquele frio cortante que se fazia sentir, perguntou-me:

— “Ó Arménio, o que andas tu aqui a fazer em mangas de camisa? Porra pá, está um frio de rachar aqui em Lisboa. Tu estás maluco?”

Contei-lhe a história toda.

— “Tu não mudas, pá. Anda comigo”, ordenou-me de imediato.

Fiquei em casa dele. Nessa noite fui até uma boîte onde vi gajas ainda melhores que aquela que tinha deixado ficar no hotel. Precisava de alguém que me fizesse esquecer essa paixão louca, mas não tinha dinheiro. Como a necessidade aguça o engenho pus-me a pensar… Então, lembrei-me que tinha autorizado o Centro Cultural Português a reeditar um livro antigo que tinha escrito. Fui ter com a Ana Maria Cordeiro e disse-lhe:

— “Parece que tenho que receber 60 contos do meu livro que está em reedição”, atirei-lhe categoricamente, sem dar muita oportunidade de contestação.

Mas não resultou! Explicou-me, com toda a paciência do mundo, que havia regras para esse tipo de coisas e que ela não podia simplesmente dar-me o dinheiro antes do livro sair. Disse-me que o atraso na reedição era meu, que eu é que não tinha disponibilizado o material atempadamente, etc., etc. Tudo verdades, mas… depois de muitos contra-argumentos da minha parte, lá consegui sacar-lhe a massa, com a promessa de lhe entregar a revisão do trabalho até ao final dessa semana. Como não tinha cabeça para ser eu a fazer a revisão, pedi ao meu amigo Osório que a fizesse. Contrariado, o Osório lá acabou por fazer o trabalho. Ainda a semana não tinha terminado e eu já tinha perdido o rasto aos 60 contos. Estava outra vez falido!

Mas a sorte nunca abandona os audazes. Já em Cabo Verde, o Mário Fonseca, irmão do atual Presidente da República, veio ter comigo e disse-me:

— “Queres ganhar 2 mil contos?”

Aquela pergunta bateu-me como um martelo.

— “Claro que quero. O que tenho de fazer?”

— “Temos uma doação da Suíça para projetos culturais e tu, como és bom escritor, podes candidatar-te à bolsa. Como vais certamente ganhar, posso adiantar-te já 250 contos mesmo antes de escreveres o livro. Como andas apaixonado, sei que o dinheiro vem em boa hora”, disse-me em tom irónico.

— “Não, já não estou apaixonado. Já acabou a paixão. O que eu preciso mesmo é de uma ventoinha e mais umas coisitas”, disse-lhe.

— “Estão estamos acertados”, retorquiu ele.

— “E se eu gasto o dinheiro e não escrevo o livro?”, perguntei, já com algum receio que a coisa corresse mal.

— “Ouve lá, não foste tu que ias morrendo de frio em Lisboa por causa de uma aventura maluca com uma tipa qualquer? Ora aí tens uma história para o teu novo livro. Isso vai dar uma boa história!”, disse-me em jeito de provocação.

O facto é que até dava, nas não numa recriação do acontecido. Tinha de ser ficcionado e descontextualizado dos acontecimentos reais. O livro No Inferno conta a história de um homem fechado numa prisão e que, apenas tinha como alternativa viajar pelas histórias que os livros lhe contavam. Chega então à conclusão que estava melhor dentro da prisão que fora dela. Ali dentro era o paraíso. O paraíso sem liberdade é o inferno, no entanto, o inferno com liberdade é o paraíso, o que o mesmo é dizer que, não há paraíso em liberdade!

Tenho de ser sincero: ao receber o dinheiro, fui como que obrigado a escrever o livro. Ia recebendo as várias tranches à medida que entregava o que escrevia. Como não tinha coragem de ir pedir mais dinheiro antes de ter entregue o texto da tranche anterior, lá fui fazendo o livro, mais ou menos dentro dos prazos acordados.

Não tenho nenhum escritor de referência. Também não falo mal de nenhum deles. São todos diferentes. Se compararmos Saramago a Lobo Antunes, vemos imediatamente que são estilos e formas diferentes. Os escritores ultrapassam as ideologias. O que tem o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis a ver com O Memorial do Convento? Zero. Nada. São bons romances mas não têm nada em comum. Lobo Antunes queria formalmente ser poeta, tal como Mia Couto o queria, no entanto, ser poeta não quer dizer que se tenha que escrever em verso. Versos são simples linhas de prosa cortadas. É como o meu mais recente livro: também tem um soneto para contar ovelhas e carneiros! Tem catorze rimas para o leitor adormecer.

As rimas são boas para a música. Por falar nisso, já escrevi para música. O tema Canta Cu Alma Sem Ser Magoado foi um sucesso em Angola na voz do Maiuca. O Bana também o cantou, mas não disse que o poema era meu. Era benfiquista e isso é que importa!

Angola foi onde publiquei os meus primeiros poemas. Tinha eu os meus 19 anos quando os enviei ao Bernardino de Andrade, um português de esquerda que para lá estava. O meu pai ficou bastante surpreendido. O facto é que o Bernardino elogiou o meu trabalho e publicou os poemas.

O meu primeiro poema permitiu-me ganhar 100 escudos! Andava eu no sexto ano e aquele dinheiro deu-me para ver imensos filmes e comprar muitos maços de tabaco, que na altura custavam cinco escudos. Agora não dava para nada. Está tudo muito caro. O tabaco então, nem se fala!

Arménio Vieira

Por falar em tabaco: em 1952, decidiu-se desencadear uma guerra global contra o tabaco. Comecei a fumar em 1959. Sete anos depois, Fidel Castro tornou-se o herói cubano que derrubou o ditador Fulgêncio Batista. Uma vez que Fidel Castro não desistiu de fumar os seus charutos Havana, eu também não desisti dos meus cigarros. Na altura, havia a ideologia do mundo livre e se um dos libertadores dos oprimidos continuava fiel ao tabaco, não era eu que o iria contradizer. Apesar de libertadores, Fidel Casto e Che Guevara foram diabolizados. Li algures que o verdadeiro ideólogo era o Che e não o Fidel. Na verdade, o único livro que conheço de Fidel Castro é o Libero, que ele leu em tribunal. O próprio Amílcar Cabral escreveu pouco, mas escreveu! O Gorbachev já escreveu; escreveu tanto que acabou por ganhar um prémio Nobel. Mas para Fidel Castro agora já é tarde. Normalmente, os políticos depois de velhos escrevem as suas memórias. Não me parece que seja este o caso de Fidel Castro. Leopolde Senghor não precisou de esperar pela velhice para escrever. Enquanto político já era escritor, com livros publicados e tudo. Era um bom poeta e um mediano político. Teve uma forte expressão no pensamento do Movimento da Negritude.

O Movimento da Negritude não tem nada a ver com o que os Claridosos quiseram fazer. Esses eram crioulos, mestiços. Gilberto Freyre, que tinha publicado o livro Grande-Casa & Senzala, em 1933, e no qual rechaça as doutrinas racistas de branqueamento do Brasil, veio cá doutrinar e, os Claridosos, entusiasmados com as suas teorias, quiseram fazer de Cabo Verde um pequeno Brasil. O facto é que, segundo Jorge Barbosa, quando  o primeiro navegador chegou a Cabo Verde não encontrou pessoas, ao contrário do que tinha acontecido no Brasil. Talvez alguns macacos, mas não humanos! Se calhar, Cabo Verde foi o único mundo que, de facto, os portugueses criaram… e tem graça, desgraçadamente foi o mundo mais pequeno que poderiam ter criado! Todos os outros já tinham lá pessoas, inclusive em Moçambique, que há muito que já lá tinha o Islão, mesmo antes do primeiro católico lá pôr os pés. Por isso, quem diz que Cabo Verde não tem cultura própria é parvo! Pode não ter agricultura, mas cultura tem certamente. Por acaso existe algum povo sem cultura?

Cabo Verde, numa visão mais Eurocêntrica, tem cultura e civilização. São os eventos técnicos que fazem a cultura antropológica evoluir. Algumas são ainda um pouco atrasadas e retardadas mas, fruto da globalização, rapidamente alcançam as outras. O homem, quer queira, quer não queira, é um produtor de cultura. Veja-se o falar! O próprio ato de falar é um ato de cultura. O homem já não vive nas árvores nem nas cavernas. O homem evoluiu. Enterra os mortos, talha a pedra e constrói utensílios para o auxiliar na produção das suas outras culturas. O homem tem história. Se não tivesse história continuava um macaco! E quiçá o macaco também não tenha cultura? O macaco não é mudo; comunica e tem entendimento, por isso pode criar a sua própria cultura, embora diferente da nossa. Pode é não ter a nossa capacidade. E o que é isso da capacidade? A de Albert Einstein? Essa só ele a tinha. Talvez eu tenha alguma, mas só para a poesia, caso contrário não seria poeta. Em muitas coisas até o poderia superar. Por exemplo, na música. Eu podia tocar melhor que o Einstein, que era um péssimo violinista. Já Charlie Chaplin era um génio… um verdadeiro génio. A esse eu não o batia. Tocava, dançava, fazia saltos, patinava e era um bom ator. Chaplin era de origem judaica e Hitler dizia:

— “Ainda bem que esse homem nasceu palhaço, caso contrário mandava matá-lo!”

Mas, na verdade ele não era palhaço; era um génio, um acrobata que não precisava de duplos para fazer as suas cenas cinematográficas.

Eh pá, isto de sermos interrompidos para nos cravarem cigarros já faz parte da Constituição. Dar cigarros a quem não tem dinheiro para os comprar deve estar escrito algures na Constituição de Cabo Verde, só não me recordo agora em qual dos artigos!

Onde é que eu ia? Ah!, no Charlie Chaplin e na cultura dos povos. Pois, a cultura cabo-verdiana existe e é real. A nossa música e a nossa dança, por exemplo, não se comparam a outras. São únicas e originais, fruto da evolução dos artistas que as interpretam. Eles são os verdadeiros precursores da nossa cultura. Não pode ser o Estado, por Decreto Lei, a fazer evoluir a nossa cultura. Não, os artistas têm de intervir. A cultura é livre, não pode ser obrigada. Cada um que a faça da maneira que puder. Tal como na tropa, o artista tem de se desenrascar. Se não tiver dinheiro para comprar as cordas do violão que toque nas latas, que também é música! Algum de vocês pensa que me oferecem papel e tinta para escrever? Olha, o Fernando Pessoa usava tudo o que lhe aparecia na frente para escrever; escrevia em envelopes, em papel velho, em tudo o que encontrava! A máquina de escrever dele tinha uma tecla avariada mas, que eu saiba, ele não pediu um subsídio ao Estado para a arranjar. Eu durante muitos anos também escrevi numa dessas máquinas velhas, uma Olympia ou Royal mas, agora, estou a utilizar o telemóvel, pena é que tem pouco espaço, tal como Cabo Verde.

Aliás, o nome Cabo Verde não passa de uma anedota! Onde já se viu um arquipélago ser um cabo? Cabo é uma porção de terra que entra pelo mar dentro. Penso que os navegadores portugueses deram esse nome a estas ilhas por causa do cabo do Senegal. Na altura talvez lá chovesse muito, daí que, talvez existisse por aqui muita vegetação. O nome deve ter pegado e nós ficámos com a herança de termos um cabo que, para além do mais, ainda por cima é verde! É irónico. O certo é que ficámos com o nome, mas não com o proveito. Aliás, o problema da seca devia servir de moeda de troca nos nossos acordos internacionais. Tipo cláusula contratual de rescisão. Imagine-se que a Troika intervinha no nosso país. À semelhança do que eles fazem por onde passam, tinha tudo de ser muito bem negociado. Sim, que eles não dão nada a ninguém! A primeira coisa a fazermos devia ser colocar como cláusula que, apenas pagaríamos o empréstimo quando chovesse durante dez anos ininterruptamente em Cabo Verde. Quando eles vissem que nunca iriam receber o dinheiro, certamente que tratariam logo de rebocar as ilhas para mais perto do Equador, para junto de São Tomé e Príncipe. Lá chove que até chateia! É engraçada a história de São Tomé. Diz-se que foi um navegador do Infante D. Henrique quem descobriu o arquipélago — descobriu, não! Achou! Quando comunicou o achado ao rei, D. Henrique ofereceu-lho como paga pelos seus préstimos, mas o homem recusou, alegando que aquilo não servia para nada, que era só mato. Entretanto, alguém aceitou e deu-se ao trabalho de desbravar o mato todo e lá produziu cacau e café. Mas atenção: é preciso estar constantemente com as catanas a desbravar o mato, caso contrário, o mato volta a instalar-se. Quem vos avisa vosso amigo é! Apesar do muito mato, não vi lá tantas cobras como em Angola.

Aqui os problemas não são as cobras, que essas não param por cá. Se não quisermos ter de escrever a tal cláusula da chuva com a Troika, teremos que procurar soluções para os nossos problemas fora do contexto europeu. Se continuarmos agarrados à Europa, vamos embarcar num cenário idêntico ao filme de Federico Fellini que se chamava “E La Nave Va“, que se passa todo no interior de um barco desgovernado e onde, por ironia do destino, até chove. Se perguntarmos a um português:

— “Como vai Portugal?”

— “Mal. Vai de mal a pior!”, responde-nos.

E porquê? Porque Portugal faz parte de um sistema amarrado aos interesses da Alemanha comandada pela senhora Angela Merkel. É um sistema muito forte que seca tudo à sua volta. Havia a esperança que a Holanda pudesse reverter a situação, mas também foi subjugada. Veja-se o caso da França: o atual presidente francês Hollande prometia muito mas, não conseguiu fazer nada. A diferença entre ele e o anterior, o Sarkozy, é que ao menos este não anda agarrado às saias da senhora germânica. Por isso, Cabo Verde não conseguirá grandes soluções para os seus problemas internos se continuar agarrado às saias da Europa.

Arménio Vieira

Sempre que se fala de saias, lembro-me de mulheres. Há poucas mulheres escritoras em Cabo Verde! Umas quatro ou pouco mais. É natural, pois a literatura é largamente masculina. A bíblia não é masculina? Deus criou a Eva porquê? Só porque lhe apeteceu? Claro que não! Criou a mulher porque Adão lhe pediu. E Satanás? É masculino ou feminino? Como era um anjo, não devia ter sexo! Isto da bíblia é complexo! A bíblia tem escritos que não podem ser levados a sério. Eu, prefiro as mil e uma noites, o Ali Babá e a lâmpada mágica; embora não sejam textos sagrados, sempre são mais verdades que o do Sansão que, mesmo sem um olho, matou aquela gente toda. Não sou religioso. Talvez o meu lado de esquerda ainda não tenha desaparecido por completo, apesar de gostar da ideia de se poder viver eternamente. Mas não acredito na vida para além da morte. O verdadeiro cristão também não lê a bíblia. Na verdade, a Igreja  e os padres não os deixam ler a bíblia, pois se os deixassem, eles certamente tornavam-se todos ateus. Depois há os que se dizem “de fé”. Esses não contam porque já estão radicados. Se um individuo nunca leu a bíblia, a partir do momento em que o faz, torna-se imediatamente ateu. Começa pelo Pacto. Deus é ciumento e pela guerra! De entre tantos povos, escolhe justamente um dos mais pequenos e miseráveis que na altura existiam e sem qualquer possibilidade de travar uma luta de igual para igual. Era um povo esmagado e torturado pelos egípcios e babilónicos. Eram os seus escravos. Como é que um povo assim poderia ser o escolhido para levar a mensagem de Deus? Quando foram para a Europa é que foi um problema. Adolf Hitler quase que os exterminou. Não ficou quase nenhum para contar a história; e tinham um pacto com Deus! Imagine-se se não o tinham! Ainda agora, no Brasil, quando lá esteve o Papa, mobilizaram-se mais de dois milhões de jovens só para o irem ver. Será que entenderam alguma coisa do que ele disse? Bem, se ele falasse em latim, certamente que não entendiam mesmo nada. Era o que acontecia se lessem os meus livros. Era mais que certo que não os iriam entender, mas a mim dava-me jeito que cada um daqueles dois milhões de jovens me comprasse pelo menos um. A mil escudos cada livro, resolviam logo o meu problema.

Já disse e repito: não sou religioso! Para se ser crente, basta ser inculto, mas para se afirmar que se é ateu, tem de existir cultura para se saber explicar porque o somos. A maior parte das pessoas acredita em Deus sem nunca questionar a sua existência. Isso qualquer iletrado pode fazer! O meu pai também não acreditava na bíblia. Dizia que eram histórias para criancinhas. Nunca disse que era ateu ou agnóstico, mas eu pressentia-o. Dizer que Jesus é filho de Deus não o convencia. Jesus era um homem. Sempre foi um homem. Amava, odiava, vingava, castigava, falava, ouvia, comandava e acabou como um homem. Acabou sem defesa. Foi morto à mão dos judeus. O Cristo tinha sido crucificado, tal como um vulgar criminoso. Seria mesmo filho de Deus?

Cristo! Em Cabo Verde ainda havemos de escrever Cristo com um K. E porque não? Há uma coisa que me preocupa: pôr-do-sol agora é tudo junto ou separado? O acordo ortográfico até foi algo de bom que alguém se lembrou de inventar. Havia que uniformizar. Se a língua portuguesa não fosse uniformizada, acabaria por ser colonizada pela brasileira, o que era mau. Mais vale juntos que separados! Isto das palavras tem muito que se lhe diga, não pode ser feito de qualquer maneira. Por exemplo, há uma história sobre o nome que seria dado à Guiné depois da Independência. Se tivesse uma ponta de verdade até poderia ser considerado como Caso de Estudo em universidades de prestígio, mas acredito que seja só mesmo anedota. É assim:

Após a independência da Guiné, propuseram a Amílcar Cabral mudar o nome do recém-conquistado território. Um ilustre e patriótico combatente, pergunta a Amílcar:

— “O camarada já pensou no nome que vamos agora dar à Guiné?”

— “Mudar o nome? E que nome poderia ser esse?”, interroga-o Amílcar Cabral.

— “E que tal se for Gebo, o grande rio da Guiné?”, sugere o camarada de armas.

Amílcar Cabral, admirado com tal proposta, responde-lhe:

— “Isso é ridículo!”

— “Porquê camarada?  O Gebo é motivo de orgulho para todos nós.”

— “Quer dizer, nós tornamo-nos independentes e vamos ter relações diplomáticas com Portugal. Certamente que iremos enviar a Portugal delegações formadas pelo nosso Presidente da República e pelos nossos melhores ministros. Estou mesmo a ver os títulos dos jornais portugueses, escritos em letras garrafais: “Delegação de Gebos chega a Portugal!”

— “E qual é o problema, chefe?”, pergunta o antigo combatente.

— “Você sabe o significado dessa palavra em português?”

— “Não camarada!”

— “Gebo em português significa estúpido, burro, idiota! Já imaginou? “Delegação de burros chega a Portugal!”. Está fora de questão”, sentenciou Amílcar Cabral. 

Ficou tudo na mesma! Tal e qual como quando Sékou Touré tentou anexar a Guiné-Bissau à Guiné Conacri. Ainda não é altura. Para já, tem de ficar cada macaco no seu galho! Ainda é cedo. O que está a dar é separar. Sim, s-e-p-a-r-a-r! Veja-se Timor, a ex-Jugoslávia, e antiga Checoslováquia, etc. Tudo foi separado. Depois, e tentando aproveitar a onda da separação, temos os Bascos, os Tchetchenos, e outros separatistas que tentam por tudo separar-se, mas, tal como disse, ainda é cedo. Quem sabe se um dia a Escócia também não se venha a separar? Ou a Madeira? Havia de ser bonito ver o Alberto João Jardim a governar a Madeira sem o auxílio de Portugal. Ficava preso como um pinto na grande asa da América. Acho-o interessante! Gosto dele, é um desbocado mas, diz as verdades. Uma vez, no meio de uma entrevista, perguntaram-lhe:

— “Como seria se um dia governasse Portugal?”

— “Numa semana mudava o rumo desta merda, só que depois, levava um tiro!”, respondeu.

Gostava de um dia o ver a governar Portugal, não para o ver a levar um tiro, apenas para ver como é que ele fazia pela vida… sem o apoio da Troika.

E o que é a vida? Porque vivem mais uns que os outros? Que justiça há nisso? Veja-se o caso do Manuel de Oliveira que, com mais de 100 anos ainda continua a filmar. Esse sim, é imortal! É o único cineasta que vem do tempo do cinema mudo e, quando aparece, aparenta ter menos 30 anos do que os que tem. É uma chatice termos de morrer. Não devíamos morrer nem envelhecer… mas, pensando melhor, seria uma catástrofe, um verdadeiro desastre. Só Johann Goethe é que queria viver mil anos, mas morreu aos oitenta e poucos! O que há para além disto? Nesta vida não somos ninguém, não temos propósito algum. Estamos lançados no mundo e agora temos que nos desenrascar. O Alberto Carvalho, professor catedrático, não gostou que eu afirmasse que o único sentido da vida era ficar vivo a qualquer preço. Qual é o sentido da vida? Uma coisa chata que Freud descobriu sobre o ser humano é que ele também deseja a morte. Tipo refúgio, para não enfrentar os problemas que possa ter. Uma barata, uma mosca ou um rato não têm este dilema. O instinto manda-os sobreviver a qualquer custo. É o instinto vital da preservação, excetuando, é claro, os japoneses que, na Segunda Guerra Mundial, quebravam as regras. Esses, ou matavam ou morriam. Dom Quixote quando sabia que ia levar porrada, gritava e pedia socorro; os japoneses não! Ou matavam ou morriam… nunca se rendiam!

Rendermo-nos é mau! Nunca nos devemos render, nem dar os factos como consumados, pois a história pode mudar quando menos se espera. Veja-se o caso dos Claridosos: quando parecia que o milagre dos Claridosos tinha terminado, eis que aparecem escritores como o Corsino Fortes, ou mesmo eu! São tudo fases. Todos passamos por várias fases e por vários momentos que jamais se tornarão a repetir. Eu, estar para aqui a contar estas histórias todas é, certamente, um desses momentos. Entretanto, aproveito este mesmo momento para vos dizer que, se alguma destas minhas histórias der romance, esteja eu onde estiver, quero 30 por cento dos proveitos!

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Boas leituras.


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