Corsino Fortes — “O segredo do sucesso dos cabo-verdianos é a ideia universalista que têm do mundo”
12 Ago 2016

Corsino Fortes — “O segredo do sucesso dos cabo-verdianos é a ideia universalista que têm do mundo”

Corsino António Fortes nasceu a 14 de fevereiro de 1933 na cidade do Mindelo, São Vicente. Em 1966 licenciou-se em direito pela Universidade de Lisboa. Exerceu até 1975 o cargo de delegado do Ministério Público e juiz de direito em Angola. Entre 1975 e 1981, Corsino Fortes foi embaixador de Cabo Verde em Portugal, estendendo a sua missão junto dos Governos de Espanha, França, Itália, Noruega e Islândia. Nomeado secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro em 1981, exerceu funções até à sua nomeação, em 1983, para secretário de Estado da Comunicação Social. Entre 1986 e 1989 desempenhou o cargo de embaixador da República de Cabo Verde em Angola, com igual representação diplomática em São Tomé e Príncipe, Zâmbia, Moçambique e Zimbábue. Entre 1989 e 1991 integrou o executivo do Governo de Cabo Verde, exercendo a função de ministro da Justiça. Nesta entrevista, Corsino Fortes leva-nos numa viagem pela sua vida, pelos bastidores da diplomacia, pelas primeiras reformas do setor da justiça, pelo empreendedorismo e pela aventura da escrita literária. 

 

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Corsino António Fortes nasceu em 1933 em Monte Sossego, Mindelo. A infância foi passada em São Vicente, uma ilha cosmopolita que fervilhava em torno do Porto Novo e da grande agitação social e cultural que o mesmo proporcionava. Por volta dos onze anos de idade, o jovem Corsino, à semelhança de quase todos os rapazes daquela época, começou a trabalhar. Arranjou emprego na Companhia Ferro, uma empresa cuja principal atividade era o transporte de água potável do Tarrafal de Santo Antão para São Vicente. “Após a morte dos meus pais, e com sete irmãs para ajudar a criar, tive de abandonar os estudos e começar a ganhar o sustento para a família. O meu primeiro vencimento na Companhia Ferro era de três escudos por dia. Apesar da pobreza — uma pobreza assumida de forma consciente — vivíamos com alegria. Eram grandes as dificuldades, mas encontrávamos sempre forma de as contornar e de nos divertirmos. Lembro-me que, sempre que estreava um filme, a malta juntava-se toda e quotizava um ou dois tostões. Aquele que pagasse mais é que ia ver o filme. Quem não tinha a sorte de ir ver o filme, ficava na Praça Estrela ou na Praça Nova à espera que o filme acabasse para ouvir o relato contado por quem tinha tido a sorte de a ele poder assistir. Isso era algo de maravilhoso e que, fortalecia a unidade e o espírito de entreajuda”, o qual demonstra com o exemplo do colega Talona, da zona do Monte Craca, nos arredores do Mindelo, que trabalhava a bordo dos navios que escalavam o Mindelo e que não tinha grandes recursos financeiros — “quando havia bailes de aniversário, por vezes, eu emprestava-lhe os meus sapatos para ele poder usar. Era comum. Os mais novos, tinham muitas vezes que emprestar sapatos para os mais velhos poderem ir aos eventos sociais organizados na época. A união era excecional nos rapazes daquela geração e isso foi fundamental para não se criar gente amargurada e isolada. Tudo era repartido.”

Corsino Fortes

Apesar de se ver obrigado a abandonar o liceu, Corsino Fortes nunca deixou os livros e, todos os dias, depois da hora de expediente, passava na Biblioteca Municipal para se inteirar das novidades e requisitar mais um ou dois livros que devorava nos tempos livres. “Aproveitava todo o tempo livre para estudar. A hora de almoço era passada a ler, logo não tinha tempo de ir a casa almoçar. Passei a almoçar na rua, na banca de umas senhoras que faziam uns pães doces que entretinham a fome”, relembra Corsino. O almoço custava 8 tostões, o que, em função do seu vencimento, era um montante considerável. Havia que arranjar soluções e, aquela que lhe pareceu mais viável, foi pedir um aumento ao encarregado da companhia. “Recordo-me que, junto com o meu colega Luís, fomos ter com o encarregado, um alemão que controlava as operações em terra, para lhe pedirmos aumento de salário. Depois de muito ensaiarmos as poucas palavras do nosso discurso, enchemo-nos de coragem e lá fomos reivindicar junto do engenheiro melhores condições salariais. Falámos os dois ao mesmo tempo, o que fez com que o homem sorrisse e aumentou-nos para quatro escudos por dia.”

Quatro escudos faziam a diferença, mas ainda era pouco para o jovem Corsino manter o seu plano de aproveitar a hora de almoço para estudar. Em casa entregava vinte escudos, o que fazia com que ficasse com os quatro escudos que sobravam do ordenado. O problema é que o almoço a oito tostões, somava quatro escudos e oito tostões por semana. “Ficava todas as semanas com um problema de oito tostões por resolver, pois só ganhava 24 escudos. Então tive de arranjar mais uns trabalhos por fora para arranjar os oito tostões que precisava. Fiz chumbos para as redes de pesca e até ferros de engomar. Com o dinheiro que conseguia, pagava o almoço, comprava livros e estudava”, relembra.

Este seu comportamento rigoroso e interessado chamou a atenção do vizinho João Manuel Varela, um ilustre poeta e reputadíssimo neurocientista cabo-verdiano que tinha feito os seus estudos em Angola. As capacidades e o empenho do jovem Corsino entusiasmaram o cientista e, João Varela assumiu dar-lhe explicações gratuitas. Já com 22 anos, Corsino Fortes volta de novo ao liceu e completa o segundo ano como estudante externo. No ano seguinte fez o quinto ano de letras e, passado mais um ano, completou o quinto ano de ciências. Entretanto arranjou trabalho no escritório do Sr. Marcelo Leitão, um empresário famoso em São Vicente, o que lhe permitiu arranjar mais tempo para os estudos. Após completar o quinto ano, Corsino Fortes é convidado pelos colegas que não tinham tido aproveitamento escolar a dar-lhes explicações. Começa assim a atividade de explicador, a qual o iria acompanhar por longos anos.

Em 1961, após completar o sétimo ano, Corsino Fortes mudou-se para Santiago onde lecionou no liceu da Praia a disciplina de português. Santiago revelou-se-lhe uma surpresa. “Apesar de ainda ser jovem, apercebi-me que tinha um conhecimento muito limitado da nossa realidade. São Vicente tinha toda a dimensão dada pelo Porto Grande, o que conferia à cidade um ambiente mundano e que nos ofuscava o conhecimento do nosso engajamento africano. Só em Santiago é que tive essa consciência. Fiquei deslumbrado com o que encontrei no interior da ilha: a música tradicional, danças e cultura. Essa vivência foi fundamental para o resto da minha vida”, afirma.

Corsino Fortes

Entretanto, obteve uma bolsa de estudo da Gulbenkian para o curso de direito da Universidade de Lisboa. Por razões políticas, Corsino Fortes não foi autorizado a abandonar o país. Resolvido em prosseguir a sua carreira académica, concorreu a uma bolsa de empréstimo que lhe permitisse concluir os estudos. Dadas as notas elevadas que sempre tinha conseguido obter, não foi difícil conseguir a bolso e, com ela, partir para Portugal para terminar a sua formação. Em Portugal, em simultâneo com a frequência das aulas na Universidade de Lisboa, continuou a dar explicações, o que o ajudava a complementar a parca bolsa de mil e cem escudos mensais. Para conseguir mais algum dinheiro que lhe permitisse viver mais tranquilamente na capital portuguesa, fruto dos seus conhecimentos cinematográficos, ainda conseguiu uns trabalhos no Instituto Português de Cinema. Tal como lembra, “a convite do presidente do IPC, que também estudava na Faculdade como aluno externo, fui fazer as sinopses dos filmes que, futuramente, iriam estar em exibição. Por cada ficha realizada recebia 50 escudos. Além do dinheiro, que me dava imenso jeito, recebi um cartão que me dava livre acesso a todos os cinemas e espetáculos. Para um apaixonado por cinema como eu, aquilo era maravilhoso”. Com o dinheiro da bolsa, das explicações que continuou a dar até ao quinto ano do curso, e as atividades extras para o IPC, Corsino tinha uma vida desafogada. Do dinheiro que lhe sobrava mensalmente, parte era entregue ao seu alfaiate de eleição para, no final de todos os anos, lhe confecionar um fato completo que lhe compensasse o esforço do trabalho realizado ao longo do ano. Extremamente metódico e organizado, conseguia sempre tempo para realizar com empenho e dedicação todas as atividades a que se propunha.

Após terminar o curso, foi convidado para estagiar em Lisboa. Uma vez mais, por razões políticas, recusou, contudo, aceitou estagiar com outro advogado, por sinal cabo-verdiano e filiado no Partido Socialista. Findo o estágio, pede colocação em Cabo Verde, a qual foi recusado. “Como eu tinha estado no grupo de Abílio Duarte em São Vicente, fiquei sempre um pouco conotado à luta pela independência e, como tal, após o estágio, não me colocaram em Cabo Verde. Em vez disso, através da influência de um juiz de origem cabo-verdiana, acabei por ser colocado, em 1967, em Benguela, Angola, como delegado no Tribunal de Trabalho.”

Em Angola, além do Tribunal de Trabalho, Corsino Fortes exerce ainda funções no Tribunal Cível e, posteriormente, no Tribunal Criminal. Angola mostra-lhe outra realidade: a falta de acesso das pessoas aos tribunais e a sede do povo por justiça. A alegria de verem os seus casos ouvidos e judicialmente resolvidos ficarão para sempre na sua memória. “O povo não tinha o hábito de resolver os problemas judicialmente. Sabiam que os tribunais existiam para se fazer justiça, mas ficavam sempre à porta. Nunca entravam. O conceito do que era importante nas declarações ao tribunal era muito ambíguo. Lembro-me de uma situação caricata: certo dia, um homem foi ter comigo para apresentar o seu caso. Levou consigo um intérprete pois ele apenas falava a língua local. O homem falou, falou mas o intérprete não me dizia nada. Já um pouco aborrecido por estar a ouvir o queixoso a falar sem que ele me traduzisse o que dizia, perguntei-lhe — “Então o homem está farto de falar e o senhor não me diz absolutamente nada do que ele está a contar?” — ao que ele me respondeu — “Não senhor doutor, ele ainda só está a falar, ainda não disse absolutamente nada!” – aquilo foi, de facto, totalmente hilariante para quem sempre se tinha pautado pelo rigor e pela ponderação de todos os factos”, recorda.

Corsino Fortes

Depois de concorrer a uma vaga como juiz de direito, é colocado em Luanda como Magistrado. Recorda a sua estreia com alguma ironia, uma vez que iniciou funções com um processo disciplinar. “Ainda em Benguela tive de deixar de comer carne e peixe pois o meu organismo rejeitava-os, o que fez com que tivesse ficado fisicamente bastante debilitado. Fui então destacado para Luanda em pleno período de convalescença, mas dado o meu estado físico tive de solicitar que me dessem baixa médica. No entanto, como os processos se estavam a acumular, resolvi estuda-los em casa e, um a um, ir dando o meu parecer. Como estava de baixa médica, tive que fazer os despachos apenas no primeiro dia em que me apresentei ao trabalho e, de uma assentada, assinei mais de trinta processos no mesmo dia. Ora, aquilo causou indignação nas chefias. Como era possível ter despachado mais de trinta processos num só dia? Foram ter comigo e expliquei o que realmente tinha acontecido. Apesar de entenderem, não me livrei do processo disciplinar.”

É em Angola que Corsino Fortes conhece Alfredo Ferreira, um dos fundadores do PAIGC. Era costume reunirem e debaterem politicamente os acontecimentos que entretanto iam irrompendo em África. Na clandestinidade, junto com elementos do MPLA, ajudaram a esboçar estratégias para a luta de libertação de Angola e Cabo Verde.

Em 1974, Corsino Fortes deixa Angola e regressa a Cabo Verde. Depois de se constituir o Comité de Ação do PAIGC, do qual foi eleito presidente, o Partido quis que fosse para a Guiné-Bissau para esclarecer as populações sobre a necessidade da independência. “Estive na Guiné-Bissau a presidir um tribunal cuja missão era julgar os processos herdados do período colonial. Muitos desses processos eram instaurados contra os militantes que tinham fugido para a luta armada. Foi aí que tive a experiência de serem as próprias pessoas a irem à porta do tribunal a solicitarem ser julgadas. Dadas as circunstancias, o tribunal era bastante benemérito, sendo recorrente, através da aplicação de um código penal especial, a diminuição e a total absolvição das penas, daí o interesse das pessoas serem julgadas”, conta.

A sua passagem pela Guiné-Bissau não durou muito tempo. Havia missões mais importantes e urgentes que eram precisas colocar em marcha. “Numa das viagens que realizei a Cabo Verde, Pedro Pires disse-me que, dada a urgência de resolução de determinados assuntos relativos ao processo colonial, tinha sido designado como o primeiro embaixador de Cabo Verde em Portugal. Fiquei admirado com a missão que me tinham dado e disse-lhe — “Camarada primeiro-ministro, eu estudei direito e vim para dar o meu contributo precisamente nessa área, junto dos tribunais, não foi para ser embaixador” — ao que ele me respondeu — “E eu, camarada? Quando é que eu estudei para primeiro-ministro?” — Com esta pergunta retórica fiquei sem poder de argumentação, e não tive outro remédio que não fosse partir para Portugal.”

Corsino Fortes

Corsino Fortes inicia assim um período de seis anos como embaixador da República de Cabo Verde junto da República Portuguesa. Era a partir de Lisboa que dava cobertura diplomática em Portugal, Espanha, França, Itália, Noruega e Islândia. “Assim que cheguei ao aeroporto de Lisboa, apareceu uma jornalista da televisão a perguntar-me como estavam os portugueses em Cabo Verde. Havia a ideia de que pudesse existir alguma fricção. Eu respondi-lhe que, verdadeiramente, não lhe podia dizer. A senhora ficou indignada pelo facto de eu, indigitado embaixador de Cabo Verde em Portugal, não saber a situação dos portugueses no meu país. Então, calmamente expliquei-lhe que, em Cabo Verde, havia muitas pessoas que pensávamos que eram cabo-verdianas quando na realidade eram portuguesas, e o inverso também se passava, isto é, muitos que pensávamos ser portugueses eram, na realidade, cabo-verdianos. A senhora acabou por compreender a minha dificuldade em saber como estavam os portugueses em Cabo Verde. O certo é que, nunca houve animosidade entre portugueses e cabo-verdianos. Esse ambiente de conforto acabou por, no período em que fui embaixador em Portugal, ser fundamental para o exercício pleno das minhas funções, acabando por conseguir que Portugal nos desse quase tudo o que necessitávamos; praticamente nada nos foi negado. Conseguíamos uma cooperação com muita adesão dos portugueses”, afirma o ex-embaixador.

Esta cooperação com Portugal estendia-se do Governo às Instituições Públicas portuguesas, que ajudaram o embaixador a criar a embaixada de Cabo Verde em Lisboa, a elaborar alguma legislação específica e cooperaram na legalização de milhares de cabo-verdianos que estavam em Portugal e que queriam continuar a ser cabo-verdianos. Conforme lembra Corsino Fortes, “um dos problemas que existia na altura dizia respeito aos embarcadiços e que necessitava ser urgentemente resolvido. Nós não tínhamos consciência da grande importância dos passaportes. O embarcadiço que, até então, possuíra o passaporte português tinha-se legalizado cabo-verdiano. Ora, quando ele desembarcava num porto e precisava de regressar para o navio, não o deixavam, pois na fronteira alegavam que ele não tinha visto de entrada por ser cabo-verdiano e não português. Isso criou grandes e sérios problemas. Quanto tive conhecimento dessa situação, telefonei aqui para Cabo Verde para falar com o então Presidente da República, Aristides Pereira, e expliquei-lhe a situação. Disse-lhe que pretendia contactar o ministro dos Negócios Estrangeiros afim de se encontrar uma solução para o problema. O ministro dos Negócios Estrangeiros português, na altura Melo Antunes, recebeu-me e, para meu espanto, naquela mesma hora convocou uma reunião comigo e com os seus diretores. Solicitei-lhe que ele permitisse que os consulados não confiscassem os passaportes portugueses que essas pessoas tinham. Havia necessidade de eles poderem sair dos navios em trânsito. Imediatamente ele resolveu o problema. Perguntou-me se em seis meses conseguíamos fazer todo o processo administrativo. Apesar de ser um prazo extremamente curto, era um início. Solicitei-lhe 18 meses pois havia muitos contactos que tinham de ser feitos com outros países e diversos acordos de cooperação que tinham de ser estabelecidos. Ele acedeu. Este foi apenas um exemplo das extraordinárias relações que conseguimos estabelecer. Haveria muitos outros exemplos. Por isso, insisto em afirmar que, após a independência, havia um grande conforto na relação entre Portugal e Cabo Verde.”

Corsino Fortes

Do período passado como embaixador de Cabo Verde em Portugal, recorda com satisfação muitos dos problemas que foram sendo ultrapassados, alguns nas comunidades de emigrantes cabo-verdianos que se encontravam espalhados um pouco por toda a Europa. Recorda a discórdia existente em alguns compatriotas emigrados na Holanda que, sempre que o Governo de Cabo Verde falava que havia situações de fome e pobreza no país, ficavam indignados e envergonhados, chegando ao ponto de se insurgirem com palavras de ordem contra o Governo. “Para acalmar a situação, decidi deslocar-me até à Holanda e dialogar com esses compatriotas. Antes de viajar, comuniquei ao meu homólogo holandês em Portugal quais as minhas intensões. Ele, por seu turno, sem que eu soubesse, comunicou com os serviços de protocolo holandeses dando instruções para me receberem com toda a pompa e circunstância. Ora, nascido eu na pacata zona do Monte Sucesso, em São Vicente, quando fui recebido junto dos meus compatriotas com aquele aparato todo apercebi-me que, apesar de não ter culpa alguma, tinha cometido o erro de me apresentar daquela forma. Quando me sentei para a reunião com a comunidade, disse para mim mesmo que não podia cometer um segundo erro. Mal o encontro tinha começado, levantou-se da plateia um individuo que eu conhecia bem desde miúdo, pois tínhamos jogado ténis juntos, que em tom exaltado me disse — “Sr. Embaixador, o senhor não venha para cá dizer que a fome em Cabo Verde está a matar pessoas, que nós não admitimos isso”. Eu, calmamente, respondi-lhe — “Camarada, vamos então esclarecer esta questão.” Quando ele ouviu a palavra “camarada” ficou possesso. Dizia-me entre gritos para não o chamar de “camarada”. Naquela altura, a palavra “camarada” estava fortemente conotada ao PAIGC e era comum e usual tratarmo-nos todos por camaradas, só que o homem não gostou que eu o tratasse dessa forma. Eu pensei para comigo: “pronto, já cometeste o segundo erro e gastaste todas as oportunidades. Agora não podes errar.” Senti que estava a haver uma conotação errónea à minha pessoa: a de um miúdo humilde que tinha crescido com dificuldades mas, fruto dos estudos, tinha-se formado em direito e ocupava agora o cargo de embaixador e estava cheio de empáfia. Era esta a imagem que aqueles compatriotas estavam a ter de mim. Foi então que vi na primeira fila o meu amigo Talona a quem eu emprestava os meus sapatos para ele poder ir aos bailes. Quando o vi, perguntei-lhe se ele ainda se lembrava do tempo em que trocávamos sapatos para irmos aos bailaricos no Mindelo. Ele, muito satisfeito, virou-se para a plateia e, num tom de satisfação, gritou: “Ele é um dos nossos, ele é um dos nossos!” O ambiente serenou imediatamente. Então, depois de verificarem que eu tinha as mesmas origens que todos eles, retomámos o diálogo e eu fiz-lhes ver que não era vergonha nenhuma admitir que, de facto, em Cabo Verde havia ainda focos de fome e pobreza. O diálogo e a compreensão dos pontos de vista dos outros sempre foram fundamentais para o exercício das minhas funções”, relembra.

Corsino Fortes

Em 1981, regressa a Cabo Verde para assumir a pasta de secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro e, em 1983, secretário de Estado da Comunicação Social. Um dos muitos projetos realizados na área da Comunicação Social e que mais o orgulham foi a implementação da estação pública de televisão. Fruto da experiência que tinha colhido na Islândia, na época um país com o mesmo número de habitantes de Cabo Verde, Corsino Fortes decide implementar um projeto experimental de televisão no país. Para tal, estabelece várias parcerias com a ex-União Soviética, alguns países de Leste, e com o Brasil, através da TV Globo. A viagem ao Brasil tinha como principal objetivo conseguir-se emitir em Cabo verde as telenovelas da Globo. Conforme relata, “a ida ao Brasil apenas tinha um problema, é que não tínhamos dinheiro para comprar um só episódio, quanto mais a telenovela toda”. O contacto do chefe da Rede Globo no Rio de Janeiro tinha-lhe sido dado pelo embaixador do Brasil, antigo conhecido e seu homólogo em Portugal. “Fui muito bem recebido e convidaram-me para almoçar. Ainda mais atrapalhado fiquei, pois sabia que não tinha dinheiro para podermos fazer aquele contrato. O senhor, a meio do almoço, disse-me para ficar tranquilo, pois sabia que nós podíamos pagar o preço que eles iriam estipular por cada um dos episódios das novelas. Quando estava para assinar o protocolo, os meus olhos apenas procuravam a alínea que descrevia o pagamento. Qual foi o meu espanto quando vi que o que eles pediam era um dólar por ano. Quando cheguei cá e contei ao primeiro-ministro, ele apenas me disse — “O camarada não tinha dez dólares para lhes pagar e ficarmos livres durante dez anos?” — Foi um grande presente a todos os cabo-verdianos que, através da recém-criada Televisão Experimental de Cabo Verde, puderam pela primeira vez assistir a uma novela brasileira”, recorda.

Em 1985, Corsino Fortes foi convidado pelo Governo de Cabo Verde a assumir a pasta para o Desporto, contudo, devido a algumas situações que tinham de ser urgentemente resolvidas em Luanda, foi indigitado embaixador em Angola. A partir de Luanda, o recém-embaixador tinha de dar cobertura diplomática a São Tomé, Zâmbia, Moçambique e ao Zimbabué. Durante o tempo que foi embaixador em Angola, acompanhou todos os movimentos da guerra entre Angola e a África do Sul, assim como entre a Frelimo e a Renamo, em Moçambique. Havia muitos encontros negociais entre as partes em conflito que eram realizados na ilha do Sal e, Corsino Fortes, desdobrava-me muitas vezes na intermediação das partes. “Como não havia embaixadores entre Angola e Moçambique, aproveitavam as minhas deslocações para estabelecer linhas de diálogo entre os dois presidentes. Servi muitas vezes de mensageiro entre Aristides Pereira e Agostinho Neto e, mais tarde, ao presidente José Eduardo dos Santos.”

Em Angola, o embaixador assistiu de forma atenta às mudanças políticas que se estavam a verificar em Cabo Verde. “Na minha opinião, os dirigentes do PAIGC sempre tiveram em mente lançar as bases democráticas para o País para que as convulsões mundiais que então se verificavam não afetassem Cabo Verde. Daí tomarmos uma posição de não-alinhados e conseguirmos manter uma base de diálogo com todos os países, desde os Estados Unidos da América à União Soviética. A posição tomada na altura pelo PAIGC foi uma posição muito sábia. Dadas as nossas fragilidades, tínhamos necessidade de tomar essa atitude de não-alinhados e, até certo ponto, conter algumas movimentações internas que se começavam a manifestar. Foram 15 anos sem convulsões sociais e sem violência, à exceção de um acidente ocorrido em Santo Antão, no âmbito da reforma agrária, que foi uma questão acidental e totalmente isolada. Mesmo a nível político, havia muitas pessoas que não pertenciam ao Partido e que eram convidadas a integrar o Governo. Por isso, por vezes, fala-se erroneamente que, na altura, se vivia sob um autoritarismo que, na realidade, não existiu”, afirma, e continua dizendo que, “mesmo nessa altura, a divisão dos poderes era claro. Os tribunais tinham total independência do poder político e, neste caso, do Governo. Quando se deu a queda do Bloco de Leste, então estava na altura de se fazer a transição, isto é, passar de uma democracia nacional revolucionária para uma democracia mais universal. O próprio PAIGC ajudou a emergirem diversos partidos políticos.”

Apesar de não haver violência, sentia-se que eram necessárias algumas reformas capazes de ajudar a estancar as reivindicações que muitos faziam. Alterações ao nível da justiça e leis que permitissem ao setor privado o acesso a determinadas áreas sobre controlo do Estado, faziam parte do rol de reivindicações exigidas pelo povo. É neste contexto que Corsino Fortes cessa, em 1988, as suas funções como embaixador em Angola e regressa a Cabo Verde para assumir a difícil pasta da Justiça. “Como ministro da Justiça, uma das decisões que tomei foi, dentro da ideia da democracia plena, abrir os tribunais ao povo. Depois, alarguei o setor económico da banca e dos seguros à iniciativa privada. Na altura, até porque os privados não tinham condições, a atividade bancária e seguradora estava sobre a alçada do Estado, mas à medida que os privados foram conseguindo melhores condições, também o sistema se foi abrindo”, diz.

Corsino Fortes

Em 1991, nas primeiras eleições multipartidárias de Cabo Verde, o PAIGC perdeu de forma inequívoca as eleições para o recém-criado MpD – Movimento para a Democracia. “Como seria de esperar, após 15 anos no poder, houve uma votação em massa no partido novo e o PAIGC perdeu as eleições. Um dos episódios que me ficou gravado daquela noite eleitoral foi Pedro Pires ter dado os parabéns ao partido vencedor, reconhecendo a vitória sem a questionar, o que em África não é muito comum”, e acrescenta que, “durante os dois mandatos em que o MpD governou, nunca houveram problemas ou fricções políticas de maior relevo. Tudo se processou sempre dentro da Lei. O mesmo se está a passar agora, com a alternância do PAICV que vai já no final do seu terceiro mandato. Por isso, Cabo Verde é, e sempre será, uma referência na democracia mundial e um modelo em África. Há respeito pela alternância do poder e, independentemente de quem governa, as instituições funcionam. Por isso, é normal merecermos um reconhecimento, não só da parte dos nossos irmãos africanos, mas também da comunidade internacional.”

Após a sua saída do Governo, Corsino Fortes decidiu criar uma companhia de seguros. Depois de desenhar toda a parte de engenharia jurídica, tenta em Portugal parcerias económicas para este seu empreendimento. “Quiseram financiar logo 70 por cento do projeto, mas entendi que tinha chegado o momento dos cabo-verdianos terem algo que também fosse deles, e assim a companhia arrancou com 50 por cento de capitais portugueses e 50 por cento de capitais cabo-verdianos. Os 50 por cento cabo-verdianos foram todos formados por pequenos acionistas, provenientes de todas as ilhas do arquipélago, a quem eu ia contactando e explicando o projeto.” A Ímpar Seguros iniciou atividade em 1992, com quatro acionistas portugueses que detinham 50 por cento do capital, e 50 acionistas cabo-verdianos, com os quais repartiam os restantes 50 por cento, num total de 200 mil contos cabo-verdianos. “Quando criei a empresa, nunca pensei que ia ficar com o cargo de presidente, no entanto, as pessoas que convidava a participarem no capital da empresa diziam-me que só o faziam se fosse eu o presidente, pois caso contrário não confiavam o seu dinheiro e, desta forma, tive que assumir esse papel já lá vão 22 anos”.

Mas a vida desde ilustre cabo-verdiano não se esgota na magistratura, política ou no empreendedorismo empresarial. Corsino Fortes é um dos maiores vultos literários da atualidade em Cabo Verde. Presidente da Associação de Escritores Cabo-verdianos e presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras, Corsino Fortes conta com inúmeras obras literárias publicadas. O gosto pela escrita começou na juventude. Era frequente, nos encontros que realizava com os amigos, recitar-lhes poemas. Depois de ter conhecido João Manuel Varela aprofundou os conhecimentos literários e começou a escrever poemas que eram recitados na Rádio Barlavento, em São Vicente. “Eu não assinava os poemas com o meu nome, usava apenas um pseudónimo — ABC Corantes. Ora, no liceu, certo dia, o meu professor, Baltazar Lopes da Silva, levou um poema de um individuo que tinha ouvido pela rádio e que tinha gostado. Eu, com é obvio, fiquei caladinho, quase sem respirar! Depois de o ler, teceu grandes comentários e até elogiou o autor desconhecido. Um dias mais tarde, estávamos a estudar uma obra de Camilo Castelo Branco e aparece um parágrafo em que o autor fala de uma determinada noite e a descreve pormenorizadamente. Baltazar Lopes da Silva desafiou-nos então a resumir a descrição daquela noite num único adjetivo. Quando chegou a minha vez eu disse: “noite plúmbea” — ele imediatamente apontou para mim e disse: “ABC Corantes!”. Mandou-me sair da sala e ir buscar tudo o que até então tinha escrito.” É desta forma peculiar que os primeiros poemas de Corsino Fortes são publicados na última edição da revista Claridade.

Com a ida de Corsino Fortes para Portugal, o seu percurso literário ficou suspenso por quase dez anos. “Apenas lia, estudava e refletia. Passaram-se alguns anos até que, finalmente, encontrei a linguagem que pretendia para escrever os meus textos e, a partir dessa altura, nunca mais parei de escrever.”

Dono de uma escrita universal, o autor parte dos domínios de Cabo Verde para uma abrangência global. Tal como refere, “a universalidade dos meus textos é obtida por se incidir no completo, mesmo que seja sobre um pequeno espaço, e ganha uma estética literária provada, o que lhe confere uma certa universalidade, quer ao nível da expansão quer qualitativamente. Contudo, pretende-se cingir numa otimização de um Cabo Verde independente, pois sempre acreditei na independência do meu país como uma forma de libertação.”

Corsino Fortes

Na sua trilogia poética “A cabeça calva de Deus”, em que o autor condensa as obras “Pão & Fonema” (1974), “Árvore e Tambor” (1986) e “Pedras de Sol e Substância” (2001), o autor homenageia os cultores da tradição oral e os fundadores do Movimento Claridoso como os principais artífices da independência cultural de Cabo Verde. Esta extraordinária obra acompanha a evolução de próprio país. Tal como sintetiza Corsino Fortes, “primeiro teve de vir o pão e a palavra. A obra “Pão e Fonema” aborda exatamente essa primeira fase. Depois o pão alarga-se para a “Árvore” e o fonema para o “Tambor”, isto é, ganha comunicabilidade. Dado que o nosso país é desértico, cheio de pedras, há que transformar as pedras em substância e energia, daí o título do último livro ser precisamente “Pedras de Sol e Substância”.  Esta trilogia agrega todo o universo cabo-verdiano que, apesar das limitações geoclimáticas que o condicionam, fruto do engenho e da vontade do seu povo, tem conseguido a tão desejada expansão. Para Corsino Fortes, “o segredo do sucesso dos cabo-verdianos é a ideia universalista que têm do mundo” e é precisamente esta ideia universalista que sempre o tem motivado ao longo da vida.

 


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