Campo de Concentração do Tarrafal: Para uma história da liberdade na lusofonia
30 Set 2012

Campo de Concentração do Tarrafal: Para uma história da liberdade na lusofonia

Dos antecedentes à criação do “campo da morte lenta”

O século XX encontra o mundo de pernas para o ar. A Europa conhece momentos de pulverização política, sendo que a relação inter-estado conhece picos máximos de ebulição, chegando a haver, aqui e acolá, focos de convulsão política. A paciência entre os países acaba e a intolerância impera. Criam-se os blocos, formam-se as alianças e a guerra prova o sabor da globalização. Entre 1914 e 1919, o mundo conhece um dos momentos mais trágicos da sua história. É a primeira guerra mundial que mostra o rosto dos novos tempos em que quase tudo ganha a feição do global. Não é só a economia, a comunicação internacional, a transferência de capital e a internacionalização das empresas que se apresentam como o espelho desta nova roupagem que o mundo ganhou. A primeira guerra mundial teria dado, desde o início do século XX, sinais claros de que, cada vez mais, o mundo perderia fronteiras físicas, psicológicas e culturais.

O resultado é bem catastrófico. Os mortos contam-se aos milhões. Aqueles que ficaram com sequelas, às dezenas de milhões. Em quase todo o mundo, os países conhecem profundas transformações que se deram no tecido social, político e económico. A Europa perde cerca de metade do seu parque industrial, sofrendo uma inflexão negativa no seu potencial agrícola de 30 por cento. França e Inglaterra perdem cerca de um terço das suas riquezas. Portugal perde, claramente, a ‘paz política’. O Reviralho (esquerda republicana) afasta-se do regime ditatorial, travando contra ele um combate sem tréguas; o Anarco-Sindicalismo serve de base ao Movimento Operário Organizado para a conquista de terreno no seio da classe operária; O Partido Comunista Português (PCP), com fraca expressão, procura espaço de afirmação; e o Partido Socialista (PS) adota uma posição ambígua face ao sistema ditatorial. Lança-se as cartas na mesa e delineia-se as estratégias.

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Campo de Concentraçao do Tarrafal - Revista Nos Genti -

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Como uma corrente de água em direção à foz, a história desfila-se no tempo rumo ao Estado Novo, causando várias baixas no interior da Ditadura, fazendo emergir o Salazarismo como o vencedor. A vitória não é pacífica. O Reviralhismo e o Movimento Operário declaram guerra à derrota, não aceitando o triunfo do Salazarismo. O clima é de grande tensão. As desconfianças são mútuas. E, para assegurar a estabilidade da sua administração política, Salazar amplia os instrumentos de repressão e instala o Estado Novo. Polícia Política, sistema de saneamento, isolamento, encarceramento são apenas nomes próprios desse período. E como a ordem é superior a tudo, não há de haver fronteiras para as prisões. Cabo Verde é apenas uma de entre todas as possibilidades.

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A 29 de Outubro de 1936, Tarrafal abre as portas para receber os primeiros ocupantes da então Colónia Penal. Antes, o regime ditatorial tinha publicado o Decreto-lei 26/539, de 23 de Abril de 1936, com a finalidade de reorganizar os serviços prisionais, assinando o atestado de nascimento ao Campo de Concentração do Tarrafal. Trata-se de uma prisão especial, pensada para indivíduos que sobre as suas ‘culpas’ recaem ‘penas especiais’. Mas, as culpas não precisam estar formadas. O primeiro e o segundo parágrafos do Artigo n.º 2 do Decreto-lei 26/539, de 23 de Abril de 1936, são bem elucidativos. Mostram, como objetivo da Colónia Penal, o dever de receber os presos políticos e sociais, sobre quem recai a obrigação de cumprir o desterro; aqueles que, internados em outros estabelecimentos prisionais, se mostram refratários à disciplina; e ainda os elementos perniciosos aos outros reclusos. O documento abrange, também, os condenados à pena maior por crimes praticados com fins políticos, os presos preventivos e os presos por crime de rebelião.

Antes de Tarrafal  houve Campos de Concentração

Historicamente, os campos de concentração traduziram-se num sistema de encarceramento de presos políticos, prisioneiros de guerra e grupos étnicos. O seu surgimento despontou sobretudo durante o século XIX, em que o Colonialismo europeu passou a pôr mão dura sobre alguns territórios, entre os quais Índia e Cuba. O objetivo era sobretudo sufocar as tentativas de insurreição e de rebelião dos indígenas a favor de um certo ideal de autonomia e libertação dos seus territórios. Napoleão Vieira de Andrade, cabo-verdiano com um percurso entre a academia e o universo militar, recorda que “o campo de concentração surgiu numa época em que os mundos políticos foram arrastados tanto pela Segunda Guerra Mundial como pela guerra das independências”.

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Tarrafal é, assim, o resultado de um conjunto de situações que se conjugaram no sentido do Estado Novo pensar no desterro de pessoas para Cabo Verde. A agudização da luta de classes em Portugal e a situação política da Itália e da Alemanha levam, então, o regime Salazarista a pensar na incrementação da repressão. Antes do Tarrafal, o regime opressor criara, na Ilha de São Nicolau, um Campo de Concentração que servira para o degredo, sobretudo, de oficiais do exército detidos na Revolução da Madeira de 1931. E anterior ainda às prisões de Cabo Verde, o Decreto-Lei de 17 de Fevereiro de 1907 havia criado, em Angola, uma Colónia Penal Militar. Contudo, o Campo de Concentração da Ilha de S. Nicolau e os campos de concentração alemães, principalmente o de Dachau, são apresentados por muitos, especialmente pelos presos que estiveram no Tarrafal, como os antecedentes que justificam a criação daquilo que, para uns, é Colónia Penal e, para outros, Campo de Concentração do Tarrafal.

O regime salazarista e os seus apoiantes defendem apenas que o Campo de Concentração do Tarrafal foi pensado como “Colónia Penal”, tendo como objetivo o acolhimento dos condenados a pena de desterro pela prática de crimes políticos e os prisioneiros de delitos comuns que, na Metrópole, mostraram-se intransigentes à disciplina prisional. O Governo justifica ainda que a Colónia Penal do Tarrafal é, em tudo, semelhante às prisões da Metrópole, dirigidas pelo Ministério da Justiça, como os casos de Caxias, Aljube e Peniche.

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Analisando a transferência de presos para Cabo Verde, durante o regime salazarista, Napoleão Vieira de Andrade põe o acento tónico na questão do isolamento: “sem dúvida que Cabo Verde, dado ao seu isolamento na altura, como colónia de Portugal, tinha maior possibilidade de manter a comunidade internacional desinformada, em relação aos maus-tratos que sempre caracterizam o quotidiano dos presos… Tarrafal, como interior e extremo norte da ilha, com seu colonato (com matas), servia de camuflagem perfeita para um lugar que não se queria ter exposto aos olhos do mundo”.

No seu livro intitulado Campos de concentração em Cabo Verde: as ilhas como espaços de deportação e de prisão no Estado Novo, Victor Barros trabalha a questão da dupla prisão para mostrar que, se as próprias ilhas podem ser entendidas como espaços onde se reduz a liberdade de movimento, estar-se encarcerado numa ilha faz com que se viva a dupla dimensão da prisão. Pensamento semelhante tem Napoleão Vieira de Andrade, segundo quem “os transportes aéreos e marítimos na altura eram raros e Cabo Verde, por si próprio, apresenta-se na sua posição de ilhas como prisão, dado à impossibilidade de fuga terrestre. As únicas vias de que se dispõem são aéreas e marítimas, o que, na altura, não era fácil”.

O histórico “campo de morte lenta”

Tarrafal, cujo silêncio da história ainda hoje lhe dorme sobre as orlas do mar, conhece um dos períodos mais negros da sua história nos corredores dos anos 30 do passado século, estendendo-se até a meados dos anos 50. O decreto-lei que injetou vida ao “campo de morte lenta” determinava taxativamente que fosse instalado, na localidade de Achada de Chão Bom, no Concelho de Tarrafal, em Cabo Verde, um estabelecimento prisional. Ainda hoje a história teima em não revelar tudo o que lá se passou. Mas, alguns pormenores vão, através de testemunhos, se desengrenando da máquina do tempo.

O trabalho tosco de construção foi entregue ao Ministério das Obras Públicas e Telecomunicações, sobre quem também recaía a responsabilidade de encontrar o modelo arquitetónico do edifício a ser implementado. O mesmo Ministério concebe, então, um projeto que prevê diferentes pavilhões. Uns para albergarem serviços; outros eram tão-somente depósitos de seres humanos. A arquitetura, depois de pronta, foi aprovada. Depois de aprovada, a obra construída. Eram tão-somente 1.700 hectares de terra circundada, com uma extensa zona à volta, que serviriam para uma possível ampliação.

Para quem vai, de Assomada, na direção ao Monte Graciosa, quando chega na zona do ex-Campo de Concentração do Tarrafal, atrás de si, deixa a aldeia de Chão Bom, uma zona cujas famílias apresentam condições precárias; à sua frente, dorme a outrora Vila do Tarrafal (hoje cidade), com enormes potencialidades turísticas colocadas presas numa outra ‘colónia penal’, que é o marasmo ao qual o concelho se viu devotado; no lado esquerdo conta com a zona agrícola de colonato que, nos últimos tempos, tem contado com um percurso penoso; no lado direito, as achadas. Achadas com as mesmas características que tinham a Achada de Chão Bom, na primeira metade do século XX, quando o regime salazarista decidiu traduzir as suas fragilidades em desumanismo no solo cabo-verdiano.

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O “campo de morte lenta” não era apenas um campo. Mais do que isso, materializava o sonho do Estado Novo de travar a ascensão libertária das mentalidades em todas as zonas onde o seu poder se fazia sentir. Duas fases fizeram a sua implementação: a primeira acontece entre 1936 e 1954. Naquele ano de 1936, os meses corriam como água na ribeira porque os acontecimentos eram tantos: na Alemanha, os Jogos Olímpicos de Berlim marcaram o retorno do país ao cenário internacional, depois do seu isolamento após a sua derrota na Primeira Guerra Mundial; na outra ponta da Europa, deflagrara a Guerra Civil Espanhola, que se estendera até o ano em que se iniciara a II Guerra Mundial, denotando o fracasso da Sociedade das Nações e empurrando o mundo, depois dessa fase, para uma nova base de entendimento na esfera internacional; em Cabo Verde surgira, no Mindelo, a Revista Claridade, marcando, de forma indelével, a história social, política, cultural e humanista do arquipélago. Todas essas situações marcaram então o ano em que se deu o início à primeira fase de implementação do “campo de morte lenta” no Tarrafal de Santiago. Essa fase que se estende até 1938 é marcada sobretudo pela chegada dos primeiros 150 presos antifascistas. Entre eles, havia gente que sabia fazer de tudo um pouco: camponeses, operários, soldados, marinheiros das revoltas dos navios Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, entre outros.

Nessa altura, a concentração se fazia mais num campo destapado. Era mais a ilha a funcionar como prisão de que a existência de um local de alta segurança. Numa primeira fase, o espaço foi sumariamente equipado e hermeticamente fechado com arrame farpado, onde se regista uma desatenção aos direitos mais elementares do ser humano. Os pavilhões, nesta etapa, são improvisados. Os feitos de pedra e a chegada do médico Esmeraldo Pais de Prata marcam a segunda etapa, que se estende até ao encerramento, a 26 de Janeiro de 1954. Durante esse tempo, foram presos 340 indivíduos, sem qualquer tipo de defesa. A presunção de inocência e a necessidade de formação da culpa foram riscados dos livros de Direito que António Oliveira Salazar tinha lido em Coimbra, para iniciar a sua carreira de docente universitário. Ou dos livros ou da memória científica de um sistema político encrudescido.

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Dos 340 presos que foram levados para o “campo de morte lenta”, 32 viriam a pagar, com a vida, a sua sorte. De entre eles, destaca-se um nome: Bento Gonçalves. Este foi o primeiro Secretário-Geral do Partido Comunista Português (PCP). A sua morte ocupou a página da história do ano 1942. Depois dele, abriu-se uma frente de dirigentes dentro do PCP, até chegar-se à atual liderança de Jerónimo de Sousa.

No cemitério do Tarrafal permanecem, de forma quase intangível, as 33 campas dos antifascistas que, em Tarrafal, encontraram a morte. As campas, apenas, conservam a memória. Os corpos, estes, foram transladados para o cemitério do Alto São João, em Lisboa, em 1978, quatro anos depois da Revolução dos Cravos devolver a dignidade humana ao homem lusófono. Oficialmente conta-se menos um indivíduo morto no Campo de Concentração do Tarrafal. O trigésimo terceiro tinha estampado, no seu Bilhete de Identidade, o nome de Artur Santos Oliveira. Motivo da sua prisão: delito comum. Ano de falecimento: 1948.

Da chegada dos primeiros presos ao teste de resistência

Os primeiros presos que chegam a Tarrafal no atlético ano de 1936, marcado pelos Jogos Olímpicos de Berlim, têm que enfrentar enormes dificuldades, a começar pelas condições higiénicas e de habitabilidade. As barracas de lona, habitação improvisada, não garantem uma proteção adequada do sol e da chuva. A corrente elétrica não passa de um sonho; a questão da ventilação não é acautelada; e a saúde dos presos deve-se às graças da natureza. Em termos de contagem absoluta, é uma dúzia de barracas circuladas com arrame farpado. Em termos de dimensão, o cumprimento se estende até aos sete metros; a largura fica pelos quatro. Em cada barraca, doze presos. Prazo de validade: dois anos. A partir de então, surgem as barracas construídas de pedras. Durante a primeira etapa, o único edifício de pedra é a cozinha, que, entretanto, não fica acabada.

Hoje, quem se aproxima à entrada do edifício, recebe as boas vindas de uma placa que tem estampada: ‘museu de resistência’. Naquele tempo, a resistência estava marcada na alma dos homens. Pagando com corpo e alma, durante 16 anos na ‘jaula prisional’, o preço da liberdade, João Faria Borda deixa a voz da consciência soar como os sinos da igreja de Santo Amaro: “o Campo de Concentração é um retângulo (cerca de 250 metros por 180) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento, existem umas barracas de lona onde são metidos cerca de 12 presos em cada uma”. Resistência é a palavra de ordem: resistência ao regime, às vicissitudes do mar, à imposição de uma consciência cozinhada, às doenças tropicais e à morte que, todas as noites, dorme com os presos numa mesma cama, também ela improvisada.

O castigo das frigideiras é a outra parte que também puxa pela resistência. De 0.6 por 1.7 metros de altura, a frigideira apresenta a forma da morte. O denso portão de ferro, que mete medo, faz imaginar a entrada do inferno. Frigideira, uma pequena construção com as paredes completamente fechadas, tem o teto e o chão feitos à base de cimento. Ali o regime põe à prova a expressão máxima do seu combate sem tréguas ao livre pensamento. Ali o regime põe à prova a capacidade de resistência humana, na fronteira entre a loucura e a morte.

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Os presos, quando não estão na Frigideira, estão nas celas. Estas são separadas, também elas, por portões de ferro, que tudo têm semelhante entre si. Carregam sobre o dorso do metal a dor de seres humanos que transportam a liberdade no seu espírito. Alguns pagam o elevado preço da liberdade com a vida. A morte abraça-os. A frigideira é construída a uma distância considerável de qualquer outro compartimento da “casa da morte”, para que a sombra não proteja os seus habitantes do calor infernal que lá se faz, ficando permanentemente exposta ao raio solar durante o período diurno. No seu interior, só há dois companheiros: a solidão e o silêncio. Dias e noites a fios, os homens que lá estão apenas “falam” com a chuva que cai, apreciando o som da água que corre da Ribeira Prata para ir alagar os terrenos de Colonato. “Em Cabo Verde, região de clima variável, calha chover bastante nestes anos. A lona das barracas apodrece de tal maneira que lá dentro chove como na rua e de manhã acordamos com a cara negra da poeira que se pega à humidade que sobre nós cai. As águas acumuladas formam pântanos onde se desenvolvem mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruína-se”… desabafo de quem, durante 16 anos, dorme na mesma cama que a morte, abraçado por ‘putrificas’ condições higiénicas.

O dia-a-dia dos homens, contra ventos e marés, levados a Tarrafal resume-se à vida do Campo: trabalhos forçados, provocações e castigos. O contacto com o exterior é precário, sendo-lhes dificultado a troca de correspondências com pessoas que se encontram do outro lado da vida. Hoje, 76 anos depois, o livro da história regista as palavras que permanecem elasticamente no tempo. Esmeraldo Pais de Prata quando chega a Tarrafal parece um médico morto. Apenas chega o corpo vivo de um homem que parece ter perdido o humanismo: “não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”. Fala Esmeraldo Pais de Prata, mas não é a voz do médico. A ditadura funciona como os finados para as pessoas do interior da Ilha de Santiago: entram nas pessoas, apossam do seu corpo e falam.

Edmundo Pedro, a face visível da resistência

Edmundo Pedro, histórico dirigente do Partido Socialista (PS) português, pertence ao lote de indivíduos que passaram pelo Campo de Concentração do Tarrafal entre 1936 e 1954. Por sorte e pela resistência, continua a respirar o mesmo ar que nós.

Edmundo Pedro transporta, hoje, sobre a pele do rosto as marcas do tempo. Se cada ruga fosse um livro de história, seria uma biblioteca viva da especialidade. Os seus anos, já se contam 94. Mas, no espírito, continua com a mesma firmeza de outrora.

Edmundo Pedro, que nasceu nas curvas do ano 1917, briga com o tempo para não deixá-lo apagar a história da sua vida. No livro “Um Combate à Liberdade” pinta, como se fosse um artista plástico, as marcas que o tempo deixou na sua vida. Nascido em Alcochete, Portugal, foi na Ilha de Santiago, em Tarrafal, no “campo da morte”, que vive os piores momentos da sua vida. Em 1936, recebe a voz de prisão e passa por várias cadeias: Aljube, Peniche e Caxias. Daí, é desterrado para Tarrafal.

Sempre a braços com o tempo, chega a Tarrafal com um selo: o mais jovem prisioneiro político daquele campo de concentração. O regresso a Portugal, conhece-o 10 anos depois.

Antes da prisão, Edmundo Pedro conhece várias ocupações: operário, correspondente comercial, entre outros. Depois da prisão do Tarrafal, conhece outras prisões. Entre 1962 e 1965, volta a ver o sol a nascer quadrado. Acusação: participação no assalto ao quartel de Beja.

O 25 de Abril rasga o lençol da história, deixando para trás a faixa ditatorial. De braços dados com a Liberdade, Edmundo Pedro adere ao Partido Socialista (PS), tendo sido eleito deputado à Assembleia da República na I e na III Legislaturas.

Em liberdade, Edmundo Pedro passa pela Presidência da Radiotelevisão Portugal (RTP). Mas, o vento da liberdade não está a jogar a seu favor: volta a tatear as paredes da prisão, acusado de armazenagem de material bélico. Na verdade, o acusado apenas junta as armas entregues ao PS no ‘Verão quente’ de 1975 para devolvê-las ao exército. Feitas as provas, merece absolvição para, alguns anos depois, reeditar a sua presença no Parlamento, na V Legislatura, desta feita, em regime de substituição.

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“Um combate pela liberdade” é o rosto do livro de um homem marcado pela história. E Edmundo Pedro tenta, no limite das suas possibilidades, ser consequente com a sua história de vida. Quando, em Setembro de 2007, soube que a então ministra da Cultura de Portugal faria uma viagem a Cabo Verde para visitar a ‘ilha prisão’ que o tinha acolhido, meteu-se dentro do mesmo avião e viajou para o conhecido ‘país da morabeza’. Apenas queria se deslocar ao ex-Campo de Concentração do Tarrafal no mesmo dia que a então ministra. Cumpriu o seu objetivo: pagou do seu próprio bolso uma viagem entre Portugal e Cabo Verde para vir dizer à sua ministra que é preciso não deixar que a antiga colónia penal fique abandonada. Sugeriu que ali fosse edificado um museu da resistência.

Em Tarrafal, Edmundo Pedro chora novamente. As lágrimas derramadas em 2007 deviam-se à memória dos cerca de 10 anos que se alimentou de amargura no Tarrafal.

Em 2007, Edmundo Pedro tinha menos cinco anos de que hoje. Estava na barreira dos 89 anos. É esse homem de 89 anos que apanhou, de surpresa, a comitiva de Isabel Pires de Lima, então ministra da República Portuguesa. Em 2007, Edmundo Pedro, que pagou a viagem do seu próprio bolso, não era um homem rico. Não era como não o é hoje. Por isso, não ficou sem queixar-se do preço da viagem, mas chegou a Cabo Verde com a mesma convicção que marcou, toda a vida, o seu combate pela liberdade. O preço que pagou pela viagem ficou justificado em poucas palavras: “quero aproveitar a presença da ministra para a sensibilizar. Quero que ajude a preservar algo que faz parte da história contemporânea, que ajuda a caracterizar o antigo regime e que está cada vez mais esquecido”, palavras de um antigo tarrafalista, entre um amargo da boca da história e umas tiras de lágrimas que se preparavam para brotar.

Tarrafal e a memória coletiva

A dialética da história faz com que os acontecimentos do passado não se desvaneçam no tempo, sendo preservados na memória coletiva das sociedades humanas, que sempre viveram a experiência da transmissão de conhecimentos de gerações para gerações. Tito Olavo Gonçalves já atravessou o portão de ferro dos quarenta anos. Estudou Filosofia em Coimbra, estando a doutorar-se em Psicologia por uma Universidade espanhola. Professor da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Tito Olavo Gonçalves vê para dentro da história que embrulha o Campo de Concentração do Tarrafal, abre a alma e deixa sair indignação: “a atitude filosófica é de tolerância, de humilde, de reflexão crítica e de paz perpétua contra todas as espécies de barbárie. Pensando que a filosofia e a educação sempre estiveram lado a lado, podemos afirmar que a tarefa da primeira é a busca do sentido da formação humana. Tudo o que for atrocidades fere a imagem do homem e da sociedade”. Este é o filósofo que acaba de falar. Mas, Tito Olavo Gonçalves cala o filósofo e deixa falar o cientista: “para mim estes meios nunca justificam aqueles fins preconizados; ou seja, o êxito político nunca desculpa os crimes cometidos para o atingir. O êxito político não desculpa o comportamento imoral. Essas atrocidades acabam por ser comportamentos eticamente reprováveis que podem ser vistos como problemas de origem ideológica como, por exemplo, atentados aos Direitos Humanos”. Depois do cientista, Tito Olavo Gonçalves dá a voz ao homem que, no cimo do seu descontentamento, deixa sair palavras de repulsa, que marcam, de forma acintosa, o seu desagrado: “trata-se um acto bárbaro, de trevas e de incivilidade, de brutalidade e crueldade, que fere a dignidade humana e desrespeita a pessoa. O homem nunca deve ser tomado como meio, mas sim, como dizia Kant, ele é um fim em si mesmo. O bem deve sempre sobrepor-se ao mal”. É o homem que fala, mas ao mesmo tempo dá a voz ao filósofo e empresta à filosofia as suas ferramentas para ler as realidades da história do Campo de Concentração do Tarrafal.

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Diferente de Tito Olavo Gonçalves, que é filho de Santa Catarina, Carlos Manuel Gomes, professor de ensino básico, quando abriu os olhos foi para ver o rasgo da rusticidade do Tarrafal naquelas redondezas da independência. Carlos Manuel Gomes, de meia estatura, exibe uma tez branca na pele e prefere olhar para os aspetos positivos do monumento, hoje batizado de Museu de Resistência: “no caso do Tarrafal, assume uma enorme importância, tanto para a sua história cultural, como para o lançamento ou elevação do seu nome a nível internacional. Para o nosso país, representa a resistência e a luta a favor da libertação de povos, contrariando a ditadura que operava na época”.

Depois de olhar para o monumento como um elemento de promoção do turismo e do concelho, Carlos Gomes prefere destacar também as partes menos positivas que envolvem o espaço, deitando a mão à história para trazer os elementos de tortura. Assim, defende que é preciso mais divulgação do passado junto da camada juvenil, de forma a que a história se mantenha viva na memória dos homens. Fala na construção deturpada da realidade vivencial, onde a própria ideia que muitos jovens têm hoje da frigideira não corresponde à realidade dos factos: “muitas pessoas pensam que ela existe debaixo do subsolo, o que não é verdade. Também [muita gente pensa] que há uma cadeia no subsolo. Sendo um património, porque não contemplá-lo na História Geral de Cabo Verde ou dos países da CPLP? A mim, [essa parte da história de Cabo Verde] marca-me pela positiva porque, se estou aqui hoje, é consequência da abertura [do campo de concentração do Tarrafal]”.

Assim como a vida e a morte andam lado a lado, também lado a lado andam a liberdade e a opressão. Passaram setenta e seis anos depois do desembarque dos primeiros presos políticos portugueses no Tarrafal, que tiveram que marchar entre a então Vila e o local de desterro, para, diante da população, desfilar todo o desprezo que o regime fascista tinha para com aqueles que pensavam contrário. Hoje, o monumento histórico que serviu de base às atrocidades do Estado Novo é apenas um rasgo de memória pouco eloquente do flagelo vivido pelos cidadãos que por ali passaram.

Ciclos e contraciclos: quando a memória se arrasta no tempo

O ano 1954 marca uma etapa na história do ex-campo de concentração do Tarrafal. A prisão mortífera é encerrada para vir a ser reaberto, em 1961, por ordem de Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar. O mesmo Adriano Moreira que aproveitou as rotas do tempo para fazer a paz com a História, tendo recebido títulos Honoris Causa por quase todo o espaço da língua portuguesa, inclusive, através da Universidade do Mindelo, em Cabo Verde, que o distinguiu recentemente. Porém, as distinções não têm sido pacíficas. Joana Lopes, autora do blogue “Entre as brumas da memória”, perfura a história para questionar o facto de Adriano Moreira ter sido laureado em solo cabo-verdiano. A blogueira vai desenterrar a Portaria n.º 18 539, da então Direção Geral da Justiça, sob a custódia do Ministério do Ultramar. O documento data de 17 de Junho de 1961. Quem o assinou foi o então Ministro da Ultramar. Nome Completo: Adriano José Alves Moreira. Indicação: “Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as províncias ultramarinas”.

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A última palavra do texto é Moreira, apelido de Adriano. O primeiro ponto do documento é categórico: “é instituído em Chão Bom um campo de trabalho”. Chão Bom era o outro nome que Tarrafal ganhara na sua projecção internacional. Muitas vezes, a história do campo tem-se confundido com a história de Tarrafal; a de Tarrafal com a do “campo da morte”; e a de Chão Bom com a da luta pela resistência. Será tudo a mesma coisa? Ao menos, demonstra-nos a história que aqui qualquer semelhança entre as realidades não é uma coincidência em estado puro. As semelhanças aqui se vestem de factos históricos.

Joana Lopes, no seu blogue, apenas nos deixa uma caricatura daquilo que eventualmente poderá ser a sua imagem física. Mas, a sua imagem psicológica fica plasmada no título do seu post: “A amnésia do leão é a glória do caçador”. O reconhecimento a Adriano Moreira pela Universidade do Mindelo, em Cabo Verde, programado para 10 de Dezembro de 2011 (Dia Internacional dos Direitos Humanos), foi apadrinhado por dois respeitados nomes da política e da cultura cabo-verdianas: Onésimo Silveira e Germano Almeida. Joana Lopes não entende a atitude e indigna-se: “não pondo em causa as qualidades académicas do Professor Doutor Adriano Moreira, não posso deixar de pensar que conceder-lhe o Doutoramento Honoris Causa no Dia Internacional dos Direitos Humanos, tendo sido ele o autor da Portaria 18 539, de 17 de Junho de 1961, que instituiu o Campo de Trabalho de Chão Bom – onde estiveram presos, em condições de inumanidade, mais de duas centenas de nacionalistas de Angola, Guiné e Cabo Verde – é, além de uma notável demonstração de humor negro, uma afronta à memória dos homens e mulheres que lutaram pela libertação dos seus países do jugo colonial português. Não se trata de perpetuar ódios, mas de respeitar a memória das vítimas”.

O texto de Joana Lopes não circunscreve somente o pensamento da autora. Resultou da conversa com duas outras respeitadas personalidades da sociedade portuguesa: Diana Andringa e Jorge Martins. Três individualidades, um único pensamento, para o qual existe uma justificação. Diana Andringa, reputada jornalista da capital portuguesa, viajou de Angola para Portugal a meio do século XX para cursar Medicina na Universidade de Lisboa. Abandonou o curso em prol do jornalismo. Diana Andringa justifica porque não concorda com o doutoramento Honoris Causa a Adriano Moreira em solo cabo-verdiano: “no cemitério da Vila do Tarrafal permanecem ainda os restos mortais dos guineenses Cutubo Cassamá e Biaba Nabué, falecidos no campo a 12 e 24 de Novembro de 1962. Morreram também, em consequência da sua detenção no campo, os angolanos António Pedro Benge (13 de Setembro de 1962) e Magita Chipóia (13 de Maio de 1970). Muitos outros presos – alguns dos quais cabo-verdianos – vivem ainda as consequências dos maus tratos sofridos no campo mandado reabrir pelo agora homenageado no Dia Internacional dos Direitos Humanos”. Por tudo isso, a jornalista considera a atitude da Universidade do Mindelo um desprezo à História de Cabo Verde.

Joana Lopes, Diana Andringa e Jorge Martins não são os únicos que se levantam a voz contra a decisão da supradita instituição de ensino superior. A Associação Cabo-verdiana de Ex-Presos Políticos (ACEP) considerou o acto de um ‘insulto’. Em declarações à Agência Lusa, disse Pedro Martins, Presidente da ACEP: ‘é um insulto porque foi ministro do Ultramar e foi sob a sua liderança que o campo de concentração do Tarrafal foi reaberto (Junho de 1961). Também foi nesse período em que a PIDE foi trazida para Cabo Verde’.

Refutando a ideia de que as feridas ainda não estejam saradas, Pedro Martins, um dos prisioneiros do Campo na sua segunda fase de funcionamento, defende que se trata de uma ‘questão de memória e de coerência’ para com a história cabo-verdiana: “O problema é a coerência. Foi um dos chefes máximos do sistema, sobretudo em relação às antigas colónias portuguesas, que levou muita gente para a prisão, para a tortura. Foi sob a sua égide que a PIDE foi aqui instalada. É História e é memória que todos os povos têm direito a preservar”, realça, colocando a imagem histórica de Adriano Moreira debaixo de fogo em Cabo Verde.

1995 foi o ano para Pedro Martins. Rasgou a mente prenha de imagens do passado para, em livro, trazer as suas recordações. Pedro Martins é, hoje, um arquitecto. Outrora era preso.

O agora arquiteto, que publicou em 1995 o livro “Testemunhos de um Combatente”, disse ter ficado “totalmente estupefacto” com a decisão da Universidade do Mindelo, anunciada a 22 de Novembro último, contando com a participação de outros ex-combatentes e ex-presos, bem como a do primeiro-ministro José Maria Neves. “Fiquei totalmente estupefacto, porque devemos pensar qual é a mensagem que vamos passar à juventude cabo-verdiana e também aos outros povos que lutaram pela independência em África e tiveram de sacrificar-se. O direito de memória de um povo é sagrado e deve ser respeitado”, afirma Pedro Martins, acrescentando que, “pessoalmente, nada tenho contra ele [Adriano Moreira]. Mas quando uma autoridade responsável por tantas atrocidades, parece-me incongruente e contra tudo aquilo que lutamos para pôr fim ao regime colonial fascista”.

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16- Campo de Concentraçao do Tarrafal - Revista Nos Genti -

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Sendo certo que a lusofonia é o resultado de uma história comum, Pedro Martins não vê considerações de fronteiras para as decisões que se tomam, no espaço lusófono, quando dizem respeito à existência de todos: “é um insulto à atitude dos povos que lutaram pela independência. Como vamos homenagear alguém que foi chefe e responsável por uma máquina que tanto mal fez contra os nacionalistas cabo-verdianos, contra o sentimento de independência também de Angola, Guiné e Moçambique”?

Tudo isso mostra-nos que, na história dos povos, o passado é apenas uma palavra que se encontra no dicionário do tempo. Salazar já não existe fora da memória coletiva de todos. Marcelo Caetano, que o substituiu até à derrocada do Estado Novo, também não. Mas, o ex-Campo de Concentração do Tarrafal está aí… à vista de todos.  Pedra sobre pedra, o edifício é testemunha de si próprio. Contraria todos os contra-argumentos que podem ser erguidos. O resto, aquilo que não couber na história, é tudo estória. Tarrafal é hoje a certeza viva de que a obra tem mais vida do que o próprio obreiro. E a história continua aí: sempre que necessário abandona os livros e sai à rua; continua impávida no tempo.


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