Amílcar Cabral: Dedicação e espírito de sacrifício (por Ana Maria Cabral)
30 Set 2012

Amílcar Cabral: Dedicação e espírito de sacrifício (por Ana Maria Cabral)

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Por causa das crises prolongadas devido aos períodos de seca que já naquele tempo Cabo Verde enfrentava, Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral, viu-se obrigado a emigrar para a Guiné-Bissau. Lá conheceu Iva, mãe de Amílcar, que também tinha emigrado. Juvenal Cabral e Nhá Iva não chegaram a casar, contudo, tiveram quatro filhos: Amílcar Cabral, duas gémeas e outro filho, que acabou por morrer após a independência nacional.  Ana Maria Cabral, mulher de Amílcar Cabral, conta o percurso de vida do homem a quem Cabo Verde deve os ideais da independência.

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17- Maria Cabral - Revista Nos Genti -A madrinha de Juvenal Cabral, D. Simoa, natural de Santa Catarina, tinha uma família com grandes posses, mas não tinha filhos. Assim, resolveu contemplar o afilhado no seu testamento. “No entanto, impôs uma condição”, acrescenta Maria Cabral, “Uma família portuguesa de quem era muito amiga veio cá passar umas férias com as suas duas filhas gémeas. Uma delas, Adelina, gostou tanto de Cabo Verde que não quis voltar a Portugal com os pais e ficou em casa da D. Simoa. A condição que a madrinha impôs era que Juvenal casasse com Adelina. Assim, Juvenal teve de deixar a mãe de Amílcar para casar com a portuguesa, levando-a para Bissau. Desse casamento, nasceu Luís, o meio-irmão de Amílcar Cabral.”

Quando a D. Simoa morre, “Juvenal teve de regressar a Cabo Verde para tomar conta dos terrenos herdados. Segundo as informações que tenho, ela tinha muitos terrenos e conseguiu mantê-los, apesar da seca. No entanto, o Juvenal, que não tinha jeito para o negócio, acabou por perdê-los aos poucos. Nessa altura, quando ele veio para Cabo Verde, conseguiu convencer Nhá Iva a trazer os filhos e, mais tarde, ela própria também voltou para Cabo Verde, ficando a residir na Praia. Quando ouviu dizer que a madrasta não tratava muito bem os filhos dela, resolveu ir buscá-los, apesar de não haver caminho e a viagem da Praia a Santa Catarina demorar dias. Quando finalmente se encontra com Nhô Juvenal, vê Amílcar todo sujo a tomar conta de umas cabras e as gémeas a arearem panelas”.

Nesse momento, Nhá Iva afirmou perentoriamente que os seus filhos “não tinham nascido para serem escravos” e levou-os para a Assomada. “Alguém foi avisar o Nhô Juvenal”, conta Maria Cabral, “que veio imediatamente a cavalo para impedir que Iva levasse as crianças. Contudo, ela jurou, diante de todos, que ia fazer de Amílcar uma pessoa especial. Levou os filhos para Assomada e mais tarde para a Praia, onde os colocou na escola a estudar, enquanto trabalhava como cozinheira, lavadeira e costureira. As meninas, além de estudarem, também tinham de aprender a coser. Depois de completar a instrução primária, só havia liceu em S. Vicente, por isso toda a família foi para lá. Nhá Iva foi trabalhar numa fábrica de conservas de atum e o Amílcar, mesmo estando no liceu, dava explicações para conseguir mais dinheiro. Foi assim que ele conseguiu terminar o liceu. De volta a Praia, ele foi trabalhar na Imprensa Nacional como escriturário”.

Amílcar e Maria Cabral

Maria Cabral recorda que conheceu Amílcar nos anos 50 em Portugal, “durante o despertar das consciências”, conforme diz. “Eu era bastante jovem e estava a estudar no liceu. A maioria desses jovens eram universitários, outros já tinham terminado, como Cabral, e tinham constituído família. Foram eles os mobilizadores da abertura das nossas consciências. Naquela altura eles não pensavam em luta armada – era apenas contestação às injustiças do regime. O próprio Amílcar Cabral confessou isso. Eles pensavam fazer greves, à semelhança do que tinham feito as colónias francesas e inglesas. Foi a partir do massacre na Guiné Bissau, a 3 de Agosto de 1959, que os fundadores do PAIGC, que já estavam no terreno a trabalhar, resolveram mudar de estratégia: não podiam combater as armas apenas com contestações. Resolveram então começar a mobilizar militantes a partir de 1959. Nós tínhamos informações dos mais velhos sobre o que se estava a passar nas outras colónias de África e no mundo. Em Portugal não havia liberdade, pois a PIDE estava sempre em cima de nós a controlar todos os nossos passos. Muitos desses jovens contestatários ao regime estiveram várias vezes presos. A única solução para se fazer alguma coisa era sair de Portugal, mas como eles estranharam o pedido de tantos passaportes, impediram que muitos se juntassem ao movimento que, entretanto, crescia. A única solução estava nas saídas clandestinas, muito ajudadas pelas igrejas protestantes de Angola, que financiaram essas viagens clandestinas”.

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22- Maria Cabral - Revista Nos Genti -

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Maria Cabral já era bolseira e casou em Portugal com um angolano. “Nós tínhamos decidido que enquanto os nossos países não fossem independentes eu iria colaborar com o PAIGC e ele com o MPLA. Conseguimos uma bolsa, ele do MPLA e eu do PAIGC e estivemos na Checoslováquia, onde tivemos um filho, que está agora em Luanda”, refere. Amílcar Cabral ia inúmeras vezes aos países que ajudavam o PAIGC, incluindo a Checoslováquia, para contar as novidades aos vários estudantes afetos aos dois partido – o PAIGC e do MPLA – sendo a maioria deles angolanos.

14- Maria Cabral - Revista Nos Genti -“Nós todos estudámos na época colonial”, recorda Maria Cabral, “mas das nossas terras não sabíamos quase nada. Lembro-me que em Angola fiz a instrução primária e o que estudávamos sobre a História de Angola era um livrinho com meia dúzia de páginas que não dizia quase nada. De resto, era só Portugal, porque punham no nosso espírito a ideia de que éramos portugueses. Foi na Rua António Vale que nasceu o movimento de reafricanização dos espíritos. Eles comprometeram-se a estudar várias matérias, além do estudo das suas especialidades, que eram obrigados a fazer. Um estudava a geografia de África, outro a sua História, entre outras coisas, e depois faziam as reuniões. Tinham de ter muito cuidado, porque se a PIDE desconfiasse iriam certamente passar a vigiar a casa, condicionando o movimento. Uma estudante minha amiga levou-me a essa casa e foi através dela que eu conheci o Amílcar Cabral. Ela é que mo apresentou, mas eu não liguei o nome à pessoa. Pensava que eram pessoas diferentes. Só mais tarde descobri que, aquele engenheiro que me tinha sido apresentado, era o mesmo de quem tanto ouvia falar”.

“Amílcar já tinha duas filhas”, afirma Maria Cabral, “mas a relação dele com a mulher não estava muito bem e já não viviam juntos. Depois dos contactos oficiais, ele falava com os estudantes. Nessa altura, eu e ele conversávamos sempre um bocadinho, havendo uma espécie de atração. Quando ele se separou da mulher e eu me separei do angolano, decidimos fazer uma experiência de vida a dois. Tive de interromper os meus estudos na Checoslováquia, porque havia demasiados problemas e eu estava esgotada. Fui para Conacri trabalhar com o meu filho. Em inícios de 1966, a luta já estava tão desenvolvida, que havia áreas libertadas. Teve de se administrar e organizar as populações dessas áreas. Umas das primeiras coisas que se fizeram foram escolas – ensinar a ler e a escrever. Isso iria ocupar as crianças e consciencializá-las para o que se estava a passar. Era necessário também tratar dos feridos. Estas eram as duas prioridades naquela altura: a saúde e a educação. A direção do partido resolveu criar uma escola, a escola piloto, em Conacri, que foi a sede do PAIGC”.

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Maria Cabral recorda que o trabalho foi bastante edificante. “Fazíamos e adaptávamos livros de outros países, ensinávamos o português e dávamos também aulas rudimentares de francês, porque era a língua que mais se falava em Conacri. Paralelamente à ajuda militar, Cabral procurou convencer os países que ajudavam o PAIGC a darem bolsas para cursos profissionais e cursos técnicos, porque os jovens não podiam ficar eternamente na escola piloto. Ficavam dois ou três anos no máximo e depois iam para o estrangeiro aprender eletricidade, mecânica e enfermagem. As nossas primeiras ajudantes de enfermagem foram todas enviadas para fora: União Soviética, Checoslováquia, Bulgária. Todos esses países ofereceram bolsas. Enquanto durou a luta, foram todos formados lá. Depois da independência, como eram jovens, Amílcar Cabral mandou-os para Portugal, para terminarem o liceu e aprofundarem os seus conhecimentos. Cabral era uma pessoa extremamente amiga e carinhosa com os filhos. Achava que tínhamos de nos sacrificar para dar o melhor aos filhos, para que todas as crianças tivessem um futuro melhor”.

“Como eu era extremamente anticolonialista e estava de acordo com a nossa resistência, estava sempre absorvida com os assuntos do partido, com a luta e com a educação dos meninos. Uma ou duas vezes, fui com ele às áreas libertadas, mas, de maneira geral, ele ia sozinho, para contactar os combatentes armados. Dizia que nós não éramos militares, éramos militantes, mas havia uns que eram obrigados a estar com armas nas mãos. No entanto, os que estavam com os livros também lutaram; lutaram para deixar de ser analfabetos. Foram muitos anos de sacrifício”, desabafa.

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Cabral e a luta armada

Cabral queria a paz, por isso, antes da luta começar, escreveu várias cartas a Salazar e à ONU, às quais não obteve resposta, apenas tiros e bombardeamentos. Foi, por isso, necessário recorrer às armas. Amílcar Cabral recebeu instrução militar na China. Depois, formaram-se outros combatentes, instruindo-os a como se defenderem e usarem as armas. Cabral questionava-se sobre quais seriam as consequências de toda esta violência. Contudo, os princípios da libertação eram absolutamente justos, porque as assimetrias eram muito grandes.

“Cabral foi obrigado a conviver com as armas”, conta Maria Cabral, “Quando morria alguém, ele ficava extremamente perturbado e perguntava-se quais seriam as consequências de todo aquele sangue, quando a luta acabasse. Era uma violência para toda a gente, especialmente para os guineenses que nem sequer conheciam bombas. Tive uma aluna que disse que quando viram um avião, foram para a rua dizer adeus àquele pássaro de metal. Quando largou as bombas, ninguém fugiu”, recorda Maria Cabral.

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19- Maria Cabral - Revista Nos Genti -

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Amílcar Cabral discutia com os amigos e intelectuais a necessidade de se sair daquele impasse. Mesmo com Marcelo Caetano à frente da governação, Portugal continuava com a mesma política, sendo atacado pela ONU e já com poucos países ao seu lado. “Depois do 25 de Abril, decidiu-se criar as condições para a proclamação do Estado. A ONU apoiava esta decisão e Portugal seria considerado um agressor. Contudo, era preciso preparar a população para a criação do Estado. Não foi fácil explicar à população o que era uma assembleia e deputados, por isso. Foram precisos quase três anos para se criarem conselhos regionais, para que fossem eleitos deputados. Nesse ano, Cabral foi assassinado. Proclamou-se o Estado em setembro de 73. Foi logo reconhecido por todos os países africanos e criou-se as condições para se levar o reconhecimento à ONU”.

Cabo Verde e Guiné-Bissau

Maria Cabral, diz que, “Amílcar procurava convencer todos os países que havia uma ligação muito forte entre a Guiné e Cabo Verde. Afirmava que Cabo Verde fora formado por pessoas que saíram dessa costa africana, sobretudo guineense. Houve uma altura, na época colonial, nos primeiros anos da verdadeira colonização, que a sede da Guiné e Cabo Verde era em Cabo Verde. Sendo dois países tão pequenos, podiam perfeitamente complementar-se, mas a unidade dependeria dos dois povos e isso ficou definido no estatuto do PAIGC. Foi muito violento e traumatizante, mas não há dúvida que Cabo Verde evoluiu e desenvolveu-se muito. No entanto, o grande sonho de Cabral era que os dois países estivessem juntos e se complementassem”, acrescenta.

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4- Maria Cabral - Revista Nos Genti -

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Em nome de Amílcar, Maria Cabral gostaria que os guineenses conseguissem arranjar uma maneira de acabar com todo o crime, que conseguissem ter uma consciência nacional e que os militares e os políticos percebessem que devem servir o Estado. Além disso, Maria Cabral “gostaria que aprendessem com os outros países democráticos e, acima de tudo, com Cabo Verde, aproveitando a experiência positiva da administração na época da luta pela libertação e das áreas libertadas.”


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Comentários

  1. Antonio Martins Diz: Julho 15, 2014 at 7:35 pm

    Defacto a donaa IVA era uma mulher corajosa e amiga dos seus filhos. Em 1966 na Praia o falecido Ivo Carvalho meio irmao do Amilca Cabral.
    ja tinha contado uma parte da historia da vida do seu irmao.

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